Slasher e Indeterminação

Ghosts Without Machines
22 min readMar 9, 2024

--

Sexta-Feira 13 IV (1984, Joseph Zito)

“ Mas a crítica do gênero tende — não sempre, mas com suficiente frequência — a deletar o sensual da dialética entre sensualidade e lógica que cria a arte; deste modo, este tipo de crítica costuma castrar o cinema de sua dimensão estética e o transforma num caduco veículo conceitual.”

(Tag Gallagher, Shoot-Out at the Genre Corral: Problems in the “Evolution” of the Western)

“A morte de uma mulher bonita é o tópico mais poético do mundo”.

(Edgar Allan Poe, Filosofia da Composição)

Acampamento Sinistro (1984, Rober Hiltzik)

1

O texto citado acima de Tag Gallagher consegue identificar o problema que eu tive com as leituras que realizei para tentar compreender o gênero do slasher em seus tropos formais. O que encontrei foi a caracterização da narrativa, da classificação de todos os elementos repetitivos que surgem no enredo e a relação entre estes para a definição e evolução deste gênero. Entretanto, não é exatamente este elemento repetitivo do enredo que me encanta. O que me deixa atraído pelo gênero é mais o brilho da faca, a contaminação de todo espaço pelo perseguidor, a indeterminação, a surpresa, o senso de enclausuramento em espaço aberto, é o espetáculo próprio que uma perseguição pode nos causar.

Com isso não quero dizer que essa classificação da narrativa seja inútil, ou infrutífera, ela cria ótimas hipóteses por vezes históricas, por vezes psicológicas do porquê cada elemento se transforma. Porém, como comentei em outro texto, me parece que ela deixa por escapar as transformações dos elementos estilísticos que criam o tom essencial dos filmes slasher. A meu ver é mais interessante compreender quais recursos estilísticos são mais comuns em diferentes épocas, assim como talvez perceber que as transformações narrativas, também exigem outros esquemas de construção de tensão.

Quando se fala em gênero talvez seja difícil separar plenamente estas questões. Assim, neste texto, vou tanto elaborar uma definição do gênero através de alguns autores canônicos, em especial o trabalho mais sofisticado de Carol J. Clover, que além de descrever o gênero, busca interpretá-lo. Passando pelo trabalho monótono de apresentar os seus ciclos poéticos. Por fim, a proposta será justamente articular os recursos visuais dessa atração causada pelos elementos estilísticos, em especial o uso do POV.

Halloween (1978, John Carpenter)

2

Uma das explicações mais instigantes para o gênero do slasher encontra-se na obra de Carol J. Clover, Men, Women and Chainsaws de 1992. Na sua breve análise sobre os motivos do sucesso de Carrie (1976, Brian de Palma/ 1974, Stephen King), tanto na literatura, quanto no cinema, ela argumenta que o medo se constrói a partir da identificação com a protagonista e o horror de ser humilhado publicamente na escola. Contudo, a forma com que Stephen King caracteriza esta humilhação, em entrevistas, sempre soa como o medo de um jovem masculino, um adolescente.

Então, um jovem tão humilhado e ameaçado que se identifica com uma jovem do sexo feminino. O livro carrega essa hipótese para este cinema de horror dos anos 70–80, com o surgimento dos gêneros de possessão, slasher, rape-revenge, de que o horror se organiza através desta identificação de um público masculino com estas personagens femininas. Para além das funções sintáticas e semânticas do gênero, o que Clover diagnostica, portanto, é este movimento identificatório.

Ela baseia sua proposta na obra de Laura Mulvey, em especial o ensaio Visual Pleasure and Narrative Cinema (1975). Lhe interessa menos a proposta política de Mulvey contra o prazer visual do cinema de Hollywood e mais a descrição que ela elabora de certas convenções do uso da figura da mulher no cinema. A autora reconhece que há momentos em que a fascinação fílmica não só reproduz como reforça outras formas de fascinação já existentes no campo social. Como ela mesma relata “(…) suas preocupações formais refletem a obsessão psíquica da sociedade que a produziu”.

Mulvey argumenta que há duas coisas distintas nos filmes de Hollywood, a narrativa e o espetáculo. Em suma, a narrativa avança, são ações, enquanto o espetáculo é um excesso, uma paralisação do avançar narrativo. A figura da mulher não é ativa como a figura masculina nos enredos hollywoodianos, ela tende a ser um momento de absorção narrativa, tende a existir para ser olhada, ou seja, é o momento de espetáculo do filme em que se interrompe de algum modo a fluidez da narrativa (um exemplo paradigmático Aventura na Martinica (1944, Howard Hawks).

Uma Aventura na Martinica (1944, Howard Hawks)

A figura feminina em termos psicanalíticos, para Mulvey, impõe o problema da castração. Enquanto a narrativa estaria estabelecida através da fantasia do controle de um universo, a partir do momento que a figura feminina surge sob o domínio do espetáculo destitui esse controle, ela institiu essa ansiedade associada à castração. A partir disso, as convenções narrativas produzem duas modalidades de ação contra essa castração.

A primeira seria a necessidade de desmistificar o mistério do ícone feminino o punindo, para que este possa continuar a fazer a narrativa avançar. Ou a completa substituição da castração pelo fetiche, o culto da estrela, o foco nos pedaços, nos inserts que fragmentam a imagem. O primeiro movimento, mais ligado ao sadismo, exige o avanço da narrativa, através das punições, da submissão da figura ao controle masculino; enquanto o fetiche mais ligado ao espetáculo, permite o avanço narrativo, porém evitando o todo da figura feminina. As duas possibilidades avançam a narrativa ou suprimindo a personagem no próprio enredo; ou mantendo seu teor espetacular aos pedaços.

O que Mulvey revela tão bem é que até mesmo a espectadora feminina acabava por ser masculinizada por esse olhar. É um processo no qual o destino do olhar masculino transforma a figura feminina numa proposição instável. Há ainda outros elementos reveladores de sua teoria como o trabalho que realiza sobre os melodramas, ou o cinema de vanguarda como deslocamento do olhar; contudo, o que interessa ao máximo Clover é a possibilidade do uso da figura feminina e das maquinações das convenções realizarem identificações que deslocam a posição de gênero dos espectadores. Para além disso, colocam o espectador num jogo que implica a fascinação e frustração, criando uma cumplicidade bizarra e poderosa para as experiências do horror.

É claro que ao dizer isto não implica que todos os exemplares do gênero slasher atinjam este nível de poder, mas é certo que todos estes filmes analisados por Clover até meados dos anos 80 parecem sobrevoar esse paradigma. Mesmo que seja demasiadamente psicanalítico e talvez preciso apenas para os slasher clássicos deste período, é uma proposta que busca compreender os efeitos da articulação destas imagens.

O que me parece sofisticado é localizar o fato inegável de que as mulheres são as figuras mais vitimadas do cinema de horror no geral, e articular um efeito inusitado através da estranhezas específicas do slasher. Ao tornarem-se figuras que impõem o espetáculo, paralisam a narrativa em prol de uma espécie de atração instigante que neste tipo de filme são grandes aventuras em volta de uma tensão sem igual.

3

O Massacre da Serra Elétrica (1974, Tobe Hooper)

Para Clover, o gênero slasher tem seu panorama principal de 1974–1986, pensando que a segunda entrada de O Massacre da Serra Elétrica (1986, Tobe Hooper) já nos indica uma queda para decadência e da autoparódia. Todos estes filmes, em especial os primeiros exemplares, tem uma dívida histórica com Psicose (1960, Alfred Hitchcock).

Deste modo, Norman Bates é o paradigma. A maior parte dos assassinos matam mulheres que os excitam sexualmente, consequentemente matam também homens, mas normalmente aqueles que os atrapalham na sua busca. Praticamente todos os assassinos são homens, com exceção de alguns poucos exemplos.

Mesmo que o filme de Hitchcock possua esse teor de paradigma, ele ainda me parece demasiado separado do que veio a se qualificar como slasher. Muito mais próximo de Psicose (1960) está os filmes de psicopata e serial killer que possuíam algumas conotações mais psicológicas. Os monstros nestes filmes são insiders, homens que funcionam normalmente e depois são revelados como assassinos, porém eles apresentam a encenação da perseguição já articulada pelos problemas do slasher.

Psicose (1960, Alfred Hitchcock)

É difícil definir um começo. Os dois filmes que são considerados precursores são Noite de Terror (1974, Bob Clark) e O Massacre da Serra Elétrica (1974, Tobe Hooper), mas definitivamente aquele filme que espalhou a tendência e retroativamente é o paradigma mais próprio do gênero é Halloween (1978, John Carpenter). O que veio a ser tornar um tropo do Slasher propriamente dito é o assassino ser o monstro outsider, “marginalmente reconhecidos como humanos”, além da sua “indestrutibilidade” sobrenatural. É certo que é muito mais ampla a realidade destes filmes, mas definitivamente aquilo que marcou o gênero foi esta figura.

O cinema de horror dos anos 60 em diante foi se afastando dos elementos góticos ou de ficção científica que permearam todo o horror até este momento. Eles passaram a tornar-se mais urbanos, mais mundanos. Grande parte dos primeiros slashers ou são ligados ao mundo urbano como espaço da multidão despersonalizada; ou ligados aos subúrbios e cidades pequenas, com seu isolamento social e lendas pregressas. O espaço e a forma com que se lida com este é essencial para o gênero.

O conceito central e essencial de Clover para a análise slasher é o de final girl. Normalmente, é uma garota que resta até o fim e tem força o suficiente para sobreviver até ser resgatada, ou matar este assassino. A final girl costuma ser destacável num grupo de jovens, é certo que ela possui uma consciência sobre o que passa ao redor dela, normalmente não é sexualmente ativa, provavelmente possui características que são consideradas masculinas.

A grande questão que ela apresenta e que parece ser definidora para os efeitos construídos pelo filme é o efeito duplo do uso do POV como ferramenta de inclusão da presença do assassino, mas de exclusão de sua localização. A princípio, ele nos colocaria em zona de identificação com o assassino. Muitos irão alegar que estes jovens estão a glorificar as mortes destas mulheres. Mas Clover propõe uma subversão tendo em vista a presença desta figura, a final girl. Afinal, estes mesmos jovens que se encantam pelas mortes em cena, também vibram quando esta figura passa a vencer o assassino, o que nos faz pensar se não é tensão de ser observado, ou seja não só um sadismo do olhar, mas também um masoquismo de ser olhado que causa fascinação.

A hora do pesadelo (1985, Wes Craven)

Assim, Clover acredita que aquilo de mais revelador no slasher é essa imisção dos gêneros, tomando esta categoria menos como um muro e muito mais como uma membrana permeável. É na dialética entre o assaultive gaze, que é prioritária para o horror moderno, e o reactive gaze da figura feminina que se encontra toda essa articulação. Olhar através dos olhos dos assassinos também é adentrar no universo da figura perseguida, e por vezes também é ser olhado de volta.

Portanto, o uso da figura feminina do slasher mais do que priorizar uma “fragilidade feminina” ou mero “sadismo da morte feminina” também estabeleceria uma sequência de absorção narrativa, do espetáculo de perseguição, que irá colocar esta personagem no lugar ativo, no controle da fantasia da narrativa; Nancy desvendando as regras dos mundos dos sonhos de Freddy Krueger, por exemplo. O espectador viveria nessa ambiguidade entre o masoquismo da paralisação, e o sadismo da perseguição. Sua identificação com a personagem feminina deve ser central para o medo e para a satisfação final. No fim, o slasher seria essencialmente um cinema do espetacular.

A análise de Clover, como informei, trabalha especialmente com as narrativas e com os efeitos no público, mesmo que trabalhe em alguma medida o uso do POV e como algumas técnicas são usadas, ela nos propõe uma leitura que busca definir qual o poder deste gênero, em que ele consegue produzir alguma atração. Outros autores vão focar-se unicamente no desenvolvimento das convenções de gênero para descrever e qualificar o slasher, deixando de lado o sentido, e o poder da fascinação que essas imagens causam.

4

Adam Rockoff vai buscar os precedentes do slasher no Grand Guignol. Este era um teatro de horror parisiense, famoso pela brutalidade e pelo gosto pelo mórbido. Foi criado 1897 e fechou suas portas em 1962 (curiosamente muito próximo do lançamento de Psicose). Além disso, como influências, há o já citado trabalho essencial de Hitchcock, assim como o filme A Tortura do Medo (1960, Michael Powell), os filmes do giallo, alguns trabalhos de William Castle, e alguma influência do Herschel Gordon Lewis, considerado como o pai do cinema gore e splatter.

Ele vai discordar da perspectiva de Carol Clover, em seu livro Going to Pieces — The Rise and Fall of Slasher Film, 1978–1986 (2002). Ele cobre mais ou menos o mesmo tempo que a autora, além de passar por um maior número de detalhes em relação às produções destes filmes, contendo diversas citações às entrevistas de diretores, produtores e outros grandes participantes deste período. Em certo momento, parece notório a sua intenção em desestimular uma interpretação, seja qual for, sobre as construções das convenções do gênero. Fazendo-se crer que qualquer mudança ou novidade deveria advir então de desejos comerciais.

Um exemplo claro disto é reduzir a “indestrutibilidade” do perseguidor, do boogeyman, a uma necessidade do estúdio de perdurar infinitamente em outros filmes. Além de comentar que o sadismo nas mortes também é pouquíssimo salientado, visto que elas costumam ser secas, rápidas, e às vezes acontecem fora de cena como aquelas de Halloween (1978). Ele busca assegurar que não há uma questão de gênero envolvida neste processo, pela quantidade de homens que também são assassinados e por vezes de maneira tão sádica quanto as figuras femininas.

Noite de terror (1974, Bob Clark)/ Tubarão (1975, Steven Spielberg)

Acerca do problema dos slashers acentuarem propriamente o sadismo é possível considerar, como Jantes Staiger em The Slasher, the Final Girl and the anti-denouement (2015), que o Slasher surge após o sucesso de Tubarão (1975, Steven Spielberg) e Carrie (1976). Não é exatamente o espetáculo do gore, mas do choque. Não é uma estética da demolição do corpo, mas do ataque do coração, muitas mortes são rápidas e ocorrem no off-screen. Ela argumenta que esta é uma estética do anti-desfecho. Esse choque cria um jogo de expectativa com o espectador, que torna a ideia de um desfecho algo menos interessante psiquicamente que a construção eterna de tensão. Este seria um dos motivos de tão facilmente essas histórias continuarem infinitamente, sem um desfecho, sempre com o perseguidor possivelmente vivo.

A meu ver os dois autores querem escapar à abordagem que seja possível a ver tais pregnância sociais ou psicológicas nos filmes. O próprio desenvolvimento do slasher passou a intensificar seus efeitos visuais, tornando-se cada vez mais violentos, não é à toa que o trabalho de Tom Savini é tão importante para o gênero. Ao acreditar no discurso institucional da expectativa das sequências, perde-se de vista uma quantidade imensa de filmes que foram produzidos aos turrões nos anos 80, sem nunca ter se tornado franquia (sua ressurgência como remake nos anos 2000 já é outro assunto).

O conhecimento das convenções institucionais para estabelecimento do gênero são importantes, nem tudo é aceitável, mesmo que possível socialmente, digamos assim. Se o slasher é um gênero do anti-desfecho, é certo que os melhores exemplares do gênero são aqueles que sabem nos seduzir antes de nos chocar.

Quem matou Rosemary? (1981, Joseph Zito)/Dias dos namorados macabro (1981, George Mihalka)

O trabalho de Sotiris Pestridi, Anatomy of the Slasher: A theoretical analysis (2019), é talvez a abordagem que alcança o maior número de tempo, cobrindo o período de 1978–2013. Ele argumenta que as questões que Clover trabalha como a exemplo da final girl estrita, o problema da imisção dos gêneros, e a ligação das mortes com o sexo são restritos ao primeiro ciclo de slasher, e perdem-se como valores para os outros ciclos. Sua definição generalista é a de que o slasher sempre é sobre um serial killer (não necessariamente humano) que com armas não tecnológicas espalha terror e morte numa comunidade de “classe média”.

Seguindo a abordagem de Rick Altman, ele trabalho com o que chama de elementos semânticos, isto é, os elementos estruturais ou tropos que organizam a narrativa, é através deles que se constrói todo o enredo. Os elementos semânticos do gênero são Normalidade, Outros, Sobreviventes Finais e Vítimas.

A normalidade varia conforme os anseios da sociedade americana naquele momento. É um conceito bem associado ao gênero do terror no geral pelo crítico Robin Wood em The American Nightmare: Essays on the Horror Film (1979). A normalidade do período de 1974–1993, por exemplo, é exatamente aquele ligado ao comportamento sexual e sua punição. O outro e a sobrevivente final devem seguir as regras da normalidade, o outro realiza tais regras de maneira perversa, para assegurar a continuidade da normalidade, por essa relação perversa que também será excluído desta sociedade. A sobrevivente será aquela que seguirá as regras de algum modo, mas sabe subvertê-las, especialmente na sua aparição perversa.

Os elementos sintáticos são justamente a forma com que se estabelece a relação destas estruturas fundamentais. Então, qual é a relação do outro com estes personagens, tanto vítimas, quanto sobreviventes? É uma vingança, é um trauma, é uma maldição, é apenas o mal? Que tipo de normalidade é essa estabelecida, como ela afeta os personagens? Estes elementos são os que realmente mudam durante os ciclos, enquanto os elementos semânticos permanecem.

Primeiro Ciclo (1974–1993)

Baile de Formatura (1980, Paul Lynch)

A história de origem do outro possui duas características, atividade sexual ou comportamento desviante e a relação vaga com os acontecimento presentes, ou seja, as vítimas só guardam uma relação muito pequena com essa história. Os anos 80 foram anos conformistas, considerada por muitos anos carregados pela nostalgia dos anos 50, não é à toa essa tendência temática por este período nos seriados de TV. Ademais, em 1981 iniciou a crise de saúde com o HIV e o acentuado problema da homofobia, aliado a isto, o repúdio e o puritanismo em relação ao sexo e àqueles considerados desviantes.

Importante dizer que no primeiro Halloween (1978), Michael é tratado como um mal encarnado, não existe nenhuma ligação existente específica com a protagonista, entretanto em Halloween 2 (1981, Rick Rosenthal) uma conexão direta é estabelecida. Nestes filmes, o sexo é sempre seguido de um assassinto, dinâmica mais explorada em Sexta-Feira 13 (1980).

O ambiente da escola (Baile de Formatura [1980, Paul Lynch], Assassinatos Misteriosos [1981,Herb Freed]), dos subúrbios (O Massacre [1982, Amy Holden Jones]), do acampamento (Acampamento Sinistro [1983, Robert Hiltzik], Chamas da Morte [1981, Tony Maylam]), dos dias festivos (O Dia dos Namorados Macabro [1981, George Mihalka], Natal Sangrento [1984, Charles E. Seiler Jr]); são todos propícios para um universo de normalidade que almeja falar de repressão e desvios.

Aqui há tantos assassinos que são figuras fora do grupo de protagonistas, quanto aqueles que fazem parte destes grupos, mas possuem um trauma disruptivo que os destina aos massacres.

Segundo Ciclo (1994–1999)

Pânico (1996, Wes Craven)/ Eu sei o que vocês fizeram no verão passado (1997, Jim Gillespie)

Tendo como origem os anos 90, sofre a grande influência do universo televisivo da MTV, o suposto mundo pós-moderno, a queda do muro de Berlim, as consequências do discurso sobre o fim da história, cristalizando-se no boom da intertextualidade no universo da cultura de massas. A paródia e o pastiche são os elementos centrais. É certo que diversos filmes desde o sucesso fulminante de Hora do Pesadelo (1985) abraçaram o lado cômico e pastiche do gênero, com filmes como Brinquedo Assassino (1988, Tom Holland), mas o tom de metalinguagem acaba por descortinar a estrutura dos filmes e criar um uma narrativa propriamente autoconsciente.

O Novo Pesadelo: O Retorno de Freddy Krueger (1994, Wes Craven) é com certeza o primeiro passo desta lógica, ao contar a história da atriz que realizou o primeiro filme e a invasão de seu outro para o mundo real. Assim como foi o próprio Craven aliado de Kevin Williamson que realizaram o paradigma máximo do slasher contemporâneo, que é Pânico (1996, Wes Craven). A partir disto, as narrativas passam a se estruturar mais como um whodunit, os personagens buscam desvendar quem entre eles deve ser o assassino e suas motivações. Tornando consequentemente a motivação dos assassinatos mais concretas. Muitas vezes no primeiro ciclo, a revelação da identidade deste outro era pouco importante, ou nem sequer fazia mistério sobre seu passado e conexão com os seus perseguidos.

Dentro deste ciclo existe uma diminuição da punição em relação ao sexo, contudo, é preciso dizer que pelo menos no primeiro Pânico isto ainda é relevante. O outro apesar de ser revelado no fim do filme, em toda a narrativa ainda guarda a aura misteriosa de encarnação do mal. Dessa vez, os sobreviventes não se destacam pelo caráter virginal, são praticamente indiferenciados dos seus outros amigos.

Terceiro Ciclo (2000–2013)

Halloween (2007, Rob Zombie)

Tendo perdido espaço para outros subgêneros como o found footage, o filme de espírito e outras modalidades de horror, o gênero perde em demasiado na produção de filmes originais. A grande façanha para os estúdios do filme slasher era sua simplicidade de produção, ou seja, um negócio de baixo risco e com grandes chances de retorno. O outro aqui passa a ser o protagonista, toda a história passa a ser organizada ao seu redor, tornando-o tridimensional. É como se fosse necessáario justificar ainda mais as causas das suas brutalidades. Petridis irá relacionar isto com o discurso hegemônico dos tempos de Bush que buscava justificativas para a brutalidade das guerras em associação ao trauma americano do 11/09. Aqui o crescimento do gênero Home Invasion é digno de nota, para tal interpretação.

Muito mais importante que a questão do gênero e da figura feminina, a questão de classes é crucial nesta era, evidenciado o lugar da normalidade em excluir este outro. A história de origem de Michael Myers por Rob Zombie, em Halloween (2007) é uma história de um conflito de classes. Michael é um jovem que, no interior de uma família disfuncional e precária, desperta um instinto assassino. Não à toa todas as sequências de perseguição são encenadas com um grau de ódio juvenil, com a câmera desestabilizada ao ponto de apenas atingir a confusão.

Se a identificação com o assassino é feita através do POV shot nos filmes clássicos, aqui é narrativamente que se busca uma identificação cognitiva. Isso tende a desarticular completamente o efeito fascinante de perder-se no jogo de olhares das perseguições. Não digo com isso que não há POV nestes filmes, porém perdem a centralidade.

De um lado, alguns dos filmes buscam ser mais violentos e realistas, normalmente essa tendência segue mais os remakes, mas também outros longas. Por outro lado, alguns filmes parecem querer assumir um trabalho mais fantasioso e avançam no metadiscursivo. Premonição (2000, James Wong), por exemplo, coloca no lugar do perseguidor implacável a própria morte, construindo sequência de morte surreais em lugar de perseguições clássicas, o mundo inteiro torna-se potencialmente ameaçador por uma via distinta. Já no quesito do metadiscurso há Por trás da máscara — A história de Leslie Vernon (2006, Scott Glosserman) e Segredo da Cabana (2011, Drew Goddard), o primeiro é um mockumentary sobre um suposto assassino que com toda sua obsessividade almeja seguir à risca as convenção do gênero, e o segundo cria uma teoria de conspiração para o formato do gênero.

Quarto ciclo? (2015-…)

A morte te dá parabéns (2017, Christopher Landon)/ Dezesseis facadas (2023, Nahnatchka Khan)

A era anterior termina no ano de 2013, quando o slasher se tornou algo mais rentável para a televisão, não é à toa que são os sucessos das séries que o trazem de volta, Scream Queens (2015–2016), Scream (2015–2019), Slasher (2016-…), Chucky (2021-…) e outras séries, além da retomada das franquias clássicas como Halloween, Pânico, Massacre da Serra Elétrica, Candyman, e Slumber Party Massacre. Alguns destes remakes apenas ampliam o teor violento das séries, outros tentam tornar alguns subtextos mais diretos, outros ainda entram no mar da mesmice do horror contemporâneo para nos falar de trauma.

A realidade é que a tendência do remake deve ser considerada ainda um resquício do ciclo anterior, e também uma tendência do cinema geral. Os filmes originais contém algo de mais novo. De certo, se baseiam no grande sucesso do tom oitentista que contaminou a TV há alguns anos e coloriu os sucessos comerciais da série Strangers Things (2016-…) e os remakes de It — A Coisa (2017). São filmes que dialogam de maneira muito direta com seus tropos e talvez possuam Pânico (1996) como paradigma, muito mais do que Halloween (1978) ou Psicose (1960). Afinal, seu interesse parece estar especialmente no gimmick, na construção de artifícios que possam inovar a lógica geral do perseguidor.

O sucesso de A morte te dá parabéns (2017, Christopher Landon) desencadeou uma série de high concept slashers como Freaky (2020, Christopher Landon), a trilogia Rua do medo(2021, Leigh Janiak), Dezesseis facadas (2023, Nahnatchka Khan), Um conto fatal(2023, Tyler MacIntyre). Talvez tenha como precursor de fato o filme Terror nos bastidores (2015, Todd Strauss-Schulson). Então, aqui temos viagens no tempo, pastiche de filme do Frank Capra, freaky friday, a realidade e ficção se misturando, o dia da marmota. O grande problema destes filmes é que parecem dar-se menos o trabalho de nos causar medo, fascinação, tensão, e muito mais em jogar com seu artifício e brincar com suas possibilidades.

Aqui me abstenho de relacionar tudo isso com a história da sociedade americana recente. Talvez em outro momento, mas no meu ponto de vista é certo que há uma tendência; Petridis comenta o trabalho de Landon em um escrito recente que não pude ler na íntegra, mas nega a possibilidade de uma nova tendência.

5.

Feriado Sangrento (2023, Eli Roth)

O título do texto evoca a ideia de indeterminação. Considero que todo o poder visual do filme slasher se dá em como constrói a indeterminação de seus assassinos. Essas convenções de gênero que descrevemos exigem que o perseguidor seja filmado de maneira que potencialize o espetáculo da perseguição, exigem que nos fascinemos num jogo preciso de masoquismo e sadismo.

Existem formas variadas de realizar tal efeito visualmente. Pode ser através de planos objetivos, ou ainda de planos subjetivos, como é o caso do POV. De uma maneira ou de outra, o que se busca é a contaminação de todos os planos pela presença ausente da figura deste perseguidor. Indo além da máscara que já implica um elemento de não humano do perseguidor, era preciso que, para não ser confundido com um serial killer, ganhasse uma aura sobrenatural através da forma.

Entre o jogo de luz e sombra, quadro e fora de quadro, primeiro plano e profundidade de campo, que se estabelecia formalmente os elementos para nos criar tensão. Se a câmera à espreita já era uma característica do horror desde seu início, ela passa a se tornar uma constante ao ser associada ao POV.

Apesar da técnica já ser usada no cinema americano desde filmes noir dos anos 40. É mais definitivo pensar na inspiração que o giallo causou, especialmente de Mario Bava e Dario Argento. Banho de Sangue (1971, Mario Bava) já realiza um uso POV como construtor deste suspense de indeterminação (além de ter sido amplamente copiado por Steve Miner em Sexta-Feira 13 2 [1981]). Dario Argento desde O Pássaro com plumas de cristal (1971) buscava explorar as possibilidade pictóricas do recurso ao assumir diversos pontos de vista indeterminados.

Banho de Sangue (1971, Mario Bava)/ O pássaro de plumas de cristal (1971, Dario Argento)

A influência do giallo não deve ser subestimada. O uso do POV ou das técnicas de indeterminação no gênero italiano são acompanhadas de zooms ou recursos mais disruptivos que causam efeitos de espetáculo ainda mais poderosos, e com certeza desestabilizam o espaço com mais sofisticação. Além disso, os tropos de cada um dos gêneros devem ser pensados como diferentes, mesmo que por vezes se encontrem (em especial no quesito do trauma do assassino).

É em Noite de Terror (1974, Bob Clark) que o recurso é ostensivamente usado para ocultar seu personagem através do POV, o que o indetermina ao ponto de fazer parecer que este é uma entidade sobrenatural. Em Halloween, John Carpenter optou por usar uma panaglide para evitar tanto o movimento muito estático do dolly, quanto o tremor excessivo da câmera de mão; criando então o efeito propício para evocar uma presença humana, mas insólita.

Nestes filmes, não é a identificação com o assassino que o POV nos incitaria, muito pelo contrário, ela trabalha essencialmente na nossa sensação de perigo iminente, de nossa fascinação pela tensão que mistura, então, medo, excitação e talvez sim, um pouco de sadismo, mas uma grande quantidade de masoquismo. É uma experiência emocionalmente mais complexa.

O principal efeito do POV é a sensação especial de incerteza geral que passa a contaminar todos os planos. Todo plano com a profundidade de campo aparente ou com espaços abertos que permitem sombras e continuações infinitas com o fora do quadro criam a sensação de tensão ininterrupta. Todavia, isso não quer dizer que só é possível produzir este efeito usando o recurso do POV. Eu apenas considero este o mais interessante, tanto por sua facilidade de nos hipnotizar, como também nos possíveis efeitos pictóricos. Tanto que com o desenvolvimento dos ciclos seguintes ele é usado cada vez menos, ainda que o esquema de produção de tensão seja o mesmo

Esse recurso é apenas uma etapa dentro do escopo das sequências de perseguição dos filmes. Me parece que com o passar do tempo foram tornando-se cada vez mais criativas e inusitadas a elaboração destas sequências e obviamente o crescimento da opulência das mortes. Se a fisicalidade das perseguições, em contextos diferentes e absurdos cresceu, perdeu-se um pouco na construção da tensão anterior. É a presença ausente do assassino que deve ser estabelecida, para que a explosão da ação seja mais eficaz.

Sendo bem estabelecido o elemento prioritário, qualquer plano pode tornar-se ansiogênico, todo objeto é estranho, todo o olhar nos diz mais. Muitos filmes acabam por não se importar com esse elemento, agindo apenas sob o atalho das convenções do gênero. Ao assistirmos um filme de slasher, sabemos que um assassino pode estar à espreita a qualquer momento; porém se o filme não produz em seus recursos visuais esse efeito é certo que não ficaremos fascinados ou tensos, no máximo um susto. Infelizmente, muitos destes filmes vivem por um susto.

Olhos Assassinos (1981, Ken Wiederhorn)

6.

Apenas para concluir. Existe uma mínima importância em descrever toda a história do gênero. As convenções se alteram conforme a visão da sociedade sobre estes tipos, assim como suas mudanças também incitam propostas visuais novas. Se o POV era uma técnica prioritária em estabelecer a presença do perseguidor e contaminar todos os planos com uma ansiedade, um terror iminente, nestes assassinos de aura sobrenatural; aos poucos com a mudança da figura deste perseguidor, cada vez mais escavado psicologicamente, seja nas histórias de origem social sombria do terceiro ciclo, seja no pastiche do pecado da comunidade nos filmes mais recentes, os efeitos formais que o tornariam monstruoso ou incompreensível diminuem.

Os slashers ainda carregam um grande atrativo na construção da perseguição. Podemos pensar, por exemplo, na sequência da cama elástica ou na sequência das cabeças em Feriado Sangrento (2023, Eli Roth), mas também no artifício da criatividade que a própria morte pode criar com os filmes da franquia de Premonição. Estes filmes não deixam de nos atrair com a forma com que permitem nossa curiosidade pelo enquadramento, por sua profundidade de campo, por suas arestas, por suas sombras.

Por fim, se não concordo plenamente com a interpretação de Clover, e muito menos com o reducionismo de Rockoff, penso que são interpretações importantes. Em Clover, para designar a cena de perseguição como certo potencial de espetáculo, assim como nos fazer entrever no meio do tão mal falado sadismo, uma boa dose de identificação masoquista; em Rockoff, ao menos podemos visualizar como a tradição se estabelece com base em problemas de produção no interior das instituições. Afinal, o desaparecimento do gênero e seu retorno também tem a ver com as transformações dos modos de produção e exibição.

Sei que me excedi, mas acredito que o teor expositório do texto possa ajudar como um mapa, para mim e para quem quer leia.

--

--

Ghosts Without Machines
Ghosts Without Machines

No responses yet