O cinema e o mundo
“A finalidade da arte é oferecer o objeto como visão e não como reconhecimento: o procedimento da arte é o de ostranenie dos objetos, o que consiste em complicar a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato da percepção é, na arte, um fim em si, e deve ser prolongado. A arte é um meio de viver a feitura do objeto; aquilo que já foi feito não interessa em arte.”
Viktor Chklovski (Arte como procedimento)
“A arte precisa do que é heterogêneo a ela para se tornar arte” (p. 247)
Theodor Adorno (Sem Diretriz, Parva Aesthetica)
“Limitar-se aos planos e procedimentos que compõem um filme é se esquecer que o cinema é arte contanto que seja um mundo, que aqueles planos e efeitos que se esvaem no instante da projeção precisam ser prolongados, transformados pela lembrança e pela palavra que tornam o cinema um mundo compartilhado bem além da realidade material de suas projeções.” (p. 15)
Jacques Rancière (As distâncias do cinema)
1.
De maneira resumida, concordo com Andrew Britton, crítico de cinema, que todas as obras de arte são uma intervenção numa cultura e que a interpretação é um processo de definição de qual é a natureza dessa intervenção. Com isso, me interessa sempre as condições que levaram a tal obra acontecer, tanto a sobredeterminação de tempos de que a obra emerge, como seu processo de produção; as escolhas propriamente formais que ela faz, e que efeito ela causa. Mas é claro que minha experiência com as obras de arte é mais errática do que isso. Quando me ponho a pensar, ou sou forçado por elas a pensar, são estes elementos que estão implicados no meu interesse pelas obras.
Eu estive a pesquisar sobre a história do subgênero slasher me fazendo algumas destas perguntas e me deparei com um campo de estudo bem desenvolvido, mas também estranhamente travado. Toda a abordagem sobre gêneros, especialmente no cinema, sempre parece remeter a uma organização narrativa específica, que possui seus elementos semânticos fixos, assim como seus modos sintáticos variáveis. Raramente conseguimos ter uma análise que seja propriamente estética e não meramente iconológica. Afinal, há uma longa tradição de iconologia no cinema em que, influenciados pelo Maio de 68, não conseguem adentrar na sintaxe sem remeter a uma ideologia específica, ou a um campo cultural específico.
Minha primeira questão com o slasher era “se é tão clara a transposição do conservadorismo americano para a narrativa, como ela chega até nós através do estilo?”, ou seja, como pensar o problema da forma social. A segunda questão era em como pensar para além da iconologia habitual, algo que por exemplo se dá também com a teoria do autor, a inevitável busca dos motivos, das repetições temáticas (que não deixam de ser ótimas para obsessivos como eu). Poderíamos falar de um estilo que se impõe ao subgênero do slasher, ou só poderíamos falar dos componentes narrativos habituais: o outro, a final girl, a normalidade? O POV é um elemento estilístico geral, mas que prevalece no gênero. É certo que o que se costuma fazer é uma união contínua entre sociedade e estrutura do gênero que exclui os processos mediadores do estilo.
Ao buscar uma fundamentação a estes problemas iniciei uma leitura mais geral da obra de David Bordwell, e passei a concordar com sua metodologia ao buscar uma historicidade pragmática e funcionalista dos mecanismos narrativos, assim como dos estilos cinematográficos. Se fosse possível delinear sua proposta é que a narração cinematográfica envolve três sistemas formais principais,a fabula, a syuzhet [trama] e o estilo, que levam o espectador a formular hipóteses e fazer inferências. Seu estudo sobre a poética do cinema é muito mais apropriado às propostas que centralizam o conceito de narrativa; além de se fundamentar no interior dos modos de produção da agência dos artistas. Eles fazem escolhas racionais a problemas práticos numa tradição contínua de normas e instituições.
Contudo, há dois pontos na abordagem de Bordwell que sempre me travam em sua análise. Estes dois pontos me levaram a uma reflexão que talvez tenha saído um pouco do controle. Este texto deveria ser apenas um pequeno adendo à problemática durante minhas leituras do filme slasher, contudo se tornou o maior interesse.
2.
O primeiro problema é reduzir a historicidade ao campo próprio do cinema. Ao fazer tal restrição cria uma falsa impressão de maior ganho explicativo do resultado estético de uma obra. É notório que uma obra é o resultado estético de seu processo de produção, isto se revela num filme, mas Bordwell nos conecta na simples lógica cognitiva de pensar que aqueles que realizam filmes são agentes racionais que fazem escolhas estéticas baseadas na lógica da resolução de problemas.
Assim, passa a compreender o trabalho do diretor, da produtora, e das normas institucionais como mais importantes que as relações com zeitgeist e outros problemas culturais. Contudo, isto seria como contar a história da pintura apenas no interior do atelier dos artistas e de seus núcleos (um pequeno adendo a essa questão, Sérgio Ferro realiza algo muito próximo disso, mas sem perder de vista um aspecto importante da divisão feitura/fatura que é a inserção do artista como trabalhador e que ascende ao campo do trabalho livre, algo que permite nos acentuar um caráter crítico na feitura, que é sempre desfavorecido pelas normas que Bordwell delineia, estas sempre absorvem tudo). Se o artista faz a escolha na história contínua das formas, essa história não existe num vácuo.
É uma ferramenta da abordagem de Bordwell para evitar afirmações espúrias.
Um longo exemplo do próprio autor em Poetics of Cinema (2007) “Só porque Homem-Aranha (2002) foi um grande sucesso não significa automaticamente que ele nos oferece acesso ao temperamento nacional da América ou às ansiedades ocultas. As pessoas passam tempo com uma obra de arte de massa por vários motivos: para matar uma hora ociosa, para se encontrar com amigos, para descobrir porquê tanta euforia sobre tal “estilo”. Alguns acontecimentos de grande escala, como os efeitos prejudiciais da Primeira Guerra Mundial nas indústrias cinematográficas europeias, serviram certamente como condições prévias, mas não causaram diretamente as mudanças estéticas. As causas mais próximas incluíram a renovação das indústrias cinematográficas nacionais, a relevância de novos modelos de narrativa cinematográfica (como a narrativa ficcional de longa-metragem) e o surgimento de uma geração mais jovem de cineastas sintonizados com o que parecia ser uma técnica de ponta. Estes e outros fatores mais próximos contribuem em grande medida para explicar a absorção mundial das premissas de continuidade. Da mesma forma, o estilo manteve-se constante na sua essência durante cerca de um século, face a profundas mudanças sociais, políticas e econômicas — em grande parte, supomos, porque continua a cumprir funções que os cineastas consideram valiosas. Isso não quer dizer que a sociedade não tenha impacto nos filmes. Claro que sim. Mas esse impacto não é único ou simples”
Em Sobre a História do Estilo Cinematográfico (1997) ele realiza a sua crítica usual à Grande Teoria, mas também ao que chama de culturalismo. Essa seria uma tendência que advogava que não seria possível explicar os padrões estilísticos recorrendo apenas às atividades na esfera artística. Para Bordwell o tema com certeza teria fontes socias, mas a composição, seu estilo não necessariamente. Ele critica também os autores que enxergam a relação íntima do cinema e de seu sugrimento com a modernidade (consequente de uma perspectiva sobre a transformação cultural da visão). Para ele não existem fontes ou argumentos fortes o suficiente para isso, e que a melhor explicação reside em especial na esfera institucional. Foram as consequências técnicas que fizeram o cinema mudar, consequências que eram ampliadas por questões históricas de larga escala.
Este seu livro consegue apresentar as transformações do estilo — que quase sempre se resume uma guia da atenção — como um processo quase universal, em diversos países soluções parecidas eram tomadas. Mas soluções parecidas em países e a partir de ideias estéticas distintas produzem efeitos distintos; mesmo que o visivél seja o mesmo, a sua visualidade é diferente.
Isto nos coloca a repensar também a forma com que ele constrói ou agrupa os modos narrativos que identifica, e como os separa do seu meio social geral. Ele nos dá 4 exemplos em seu Narration on Fiction Film (1985), que são o modo de Hollywood clássico (o de maior durabilidade e estabilidade), o cinema de arte dos pós-guerra, o cinema soviético e, por fim, a narrativa paramétrica.
Contudo, me soa estranho como os modos de produção, a situação cultural e a história das formas de países distintos como Itália, França e Japão deveriam compor uma norma que aglutine filmes como Os Incompreendidos (1959, François Truffaut), com La Dolce Vita (1960, Federico Fellini), ou ainda O Homem mau dorme bem (1960, Akira Kurosawa). Mas é justamente isto que ocorre com a ideia do modo do cinema de arte que contém também suas próprias normas. As normas parecem flexíveis demais, ou seja com uma dinâmica aberta enorme, mas que, ao mesmo tempo, soam como ações irrefletidas e mecânicas, justamente para abarcar e sintetizar o maior número possível de filmes.
Mesmo que Bordwell esteja se atendo unicamente aqui a um conceito de organização narrativa e não de estilo, parece problemático ignorar uma série de questões que conectam justamente a lógica dessas formas (mesmo que narrativas) com a historicidade de seus processos. Bill Nichols, em seu texto Form Wars: The Political Unconscious of Formalist Theory, pontua que mesmo que algumas vezes seja colocado por Bordwell a relação com que esses outros modos possuem com o modelo de Hollywood clássico, ele sempre acaba por “deixar cada modo existir em seu casulo temporal”. Há sempre a asserção de como a montagem soviética adentra o cinema de Hollywood, ou como o cinema da ambiguidade dos cineastas europeus chega à Nova Hollywood; mas que nunca propriamente compreende a batalha ou luta destes estilos num amplo jogo da história.
Ignora, portanto, o preceito do crítico de arte, Carl Einstein, “A história da arte é a luta de todas as experiências ópticas, dos espaços inventados e das figurações.” Visto que a história dos modos narrativos nunca é essencialmente uma história dos modos de produção e nem história dos modos de figuração, há uma recusa a todo custo de um viés materialista do problema. É a recusa de interpretar o desenvolvimento das formas, sejam elas narrativas ou estilística, como contendo uma relação apropriada com o todo social; ao fazer isso parece apenas acreditar que o desenvolvimento das formas é causada de maneira independente pelo desenvolvimento técnico.
Um outro comentário pertinente sobre esse problema é colocado por Andrew Britton, crítico de cinema, em seu artigo The Philosophy of Pigeonhole: Wisconsin Formalism and the Classical Style (1986). Ele argumenta de maneira direta que a articulação que é feita no trabalho The Classical Hollywood Cinema: Film Style & Mode of Production to 1960 (1985), de David Bordwell, Kristin Thompson e Janet Staiger, acaba por extrapolar o modo de produção hollywoodiano da história social do modo de produção próprio ao capitalismo dos Estados Unidos, no século XX. O conceito de modo de produção aqui não possui a mesma nuance de Marx justamente por essa atomização. Ao pensar o capitalismo, só o pensa como uma estrutura econômica e não como um regime de sociabilidade específico, relegando sua articulação a algo externo.
Introduzir a discussão histórica e social da forma não é mediar “assuntos” específicos determinados. Seguindo Theodor Adorno, é do interesse sobre a mediação na própria coisa, e não a mediação entre a coisa e as pessoas, que pode ser facilmente reduzido a um processo comunicativo simplório. Estabelecer essa relação com o todo social não é prender-se a uma abstração ideal, é preciso compreender esta relação como contraditória e que em grande parte a obra de arte não se encontra em uníssono com o todo social.
Assim, não é possível tomar as normas formais apenas como elementos institucionais, regidos no interior de Hollywood por problemas práticos da sua produção. Basta pensarmos na disparidade existente no modo soviético com estilos tão diferentes [Eisenstein e Vertov, Pudvokin e Barnet, Dovjenko e Medvedkin], ou ainda numa norma que guiaria Bresson e Ozu ao mesmo tempo; artistas lidam com problemas práticos, do mesmo modo que com ideias sobre a arte, ideias estéticas que por vezes ignoram ou se sobrepõem a estes problemas, ou ainda, estes problemas práticos podem tornar-se irrelevantes a depender de suas ideias estéticas, de suas condições sociais, ao tempo que vivem [aqui basta pensar no nosso cinema e sua relação com a precariedade e a gambiarra].
Contudo, o mais importante é algo já bem notado, nem o autor, nem o espectador, nem o próprio horizonte do tempo de uma obra poderá prever os efeitos de seus jogos de forma e, portanto, limitá-la. E isto não quer dizer que a deriva hermêtica da interpretação poderá fazer o que quer, não esqueçamos que Umberto Eco ao criar o conceito de Obra aberta, posteriormente escreveu Os Limites da Interpretação. O que quero dizer é que as formas nas análises de Bordwell são docilizadas e por vezes tornam-se irreconhecíveis; se ele deseja, como Sontag, trabalhar contra a interpretação deveria estar preocupado com uma erótica do cinema, ou seja “ economizar no conteúdo para que consigamos ver algo da própria coisa.” Coisa esta que existe num mundo maior que o cercado próprio da esfera da arte.
“(…) isto é, o estilo de qualquer artista é uma inflexão mais ou menos complexa, aventureira e idiossincrática de materiais culturais convencionais que, por definição, precedem e criam as condições para o trabalho do artista.”
(Andrew Britton, The Philosophy of Pigeonhole: Wisconsin Formalism and the Classical Style)
3.
O segundo problema é tomar como centro muitas vezes a recepção dos filmes através de um modelo cognitivo hipotético automatizado. Claro, isto é uma consequência de sua abordagem cientificista que acredita que é preciso se conectar com uma espécie de dado para que se possa extrair a verdade destas operações. Bordwell não realiza uma estética da recepção exatamente, e por vezes, lembra Umberto Eco interessado em como um espectador constrói o autor ideal e a partir de suas pistas aproxima-se de um espectador ideal. Isto é, toma a arte unicamente por seu paradigma comunicativo (sejamos justos é uma paradigma na semiótica, mas altamente redutível à mera comunicação).
É como se a forma dos filmes fosse um manual de instruções para o espectador produzir inferências determinadas. Não considero isto exatamente incorreto, o problema se encontra a meu ver em resumir isto a forma do filme e por assim podar as suas possibilidades. Por exemplo, eu poderia dizer que Carpenter, em Halloween opta por usar um Panaglide, ao invés da câmera de mão ou do dolly para alcançar um objetivo determinado que forçaria o espectador a pensar. Alguns exemplos 1) emular o POV do assassino; 2) identificar o espectador ao assassino, 3) desidentificar o assassino de uma humanidade; mas o que é obtido vai ultrapassar isto por suas conexões culturais e históricas. O que espectador bordwelliano capta é apenas a compreensão geral do uso da técnica para a narrativa, apenas o ponto 1. A nível de análise parece que outras possibilidades não são favorecidas, ou incitadas pelo modelo apresentado.
Ao adotar a perspectiva cognitivista do espectador por estar a ascender ao campo mais comum da ciência, nos parece que ele exclui qualquer sentido, significado ou sintoma que pode ser retirado das formas para fora dos âmbitos institucionais. O espectador chega com seus esquemas derivados de normas extrínsecas, ao mesmo tempo que capta as normas que o próprio filme irá apresentar (mas lembrem-se normas essas institucionais), fazendo um processo de comparação entre estas duas normas extrínsecas e intrínsecas o espectador articula o esquema geral, contudo parece que este esquema está ligado apenas à compreensão narrativa do filme.
Não compreendemos o filme primeiro e depois o interpretamos, nos engajamos subjetivamente com este. Não é um sinal que é captado, e sim algo sobredeterminado. Isto produz um modelo unidimensional que negligencia processos de interpretação subjetivos e socialmente limitados. Uma técnica, como a citada acima, usada por John Carpenter (que diga-se de passagem se tornou o maior tropo do slasher) só ganhará sentido compreensivo na teoria bordwelliana dentro da lógica desse esquema, sempre servindo ao esquema narrativo construído. Isso impede de vermos os diferentes e possíveis poderes com que o uso específico que o diretor faz desta técnica implica.
Parece que é o desejo de colocar o processo fílmico como processo comum a qualquer outro processo cognitivo que lhe impede de perceber esse problema. Apesar da influência que o formalismo russo lhe deu, não há uma atenção forte sobre o efeito da leitura retroativa, assim como do conceito de ostranenie (a desfamiliarização, ou singularização, ou estranhamento). Efeito que por si só desloca a experiência estética como campo que desautomatiza a percepção por nos fazer ler os signos com diferente valor semântico que na vida ordinária.
Annie van der Oven, em diálogo com Tom Gunning, no texto Viktor Shklovsky’s Ostrannenie and the ‘Hermeneutics of wonder’ (2020), demonstra como há implicado, portanto, dois modelos de se pensar os efeitos no espectador, de um lado o modelo da automatização, no qual a abordagem cognitivista de Bordwell se encaixa; ou o modelo da desautomatização, implicada no gesto de ostranenie das obras.
Kristin Thompson, grande companheira de trabalho de David Bordwell, articula, em Breaking the Glass Armor (1988)
“As obras de arte alcançam os seus efeitos renovadores nos nossos processos mentais através de um jogo estético que os formalistas russos denominaram ostranenie. A nossa percepção não prática permite-nos ver tudo na obra de arte de forma diferente da forma como veríamos na realidade, porque parece estranho no seu novo contexto.” (p. 10)
Tom Gunning argumenta que a adesão ao formalismo russo de Kristin Thompson e David Bordwell se dá nos trabalhos iniciais e que aos poucos vai ser levada ao cognitivismo, retirando propriamente essa problematização. A história do estilo deveria ser lida como a história das normas institucionais ou a história dos processos de ostranenie ? É uma pergunta importante para se repensar o modelo de espectador, mas em especial, sobre repensar o que é compreender os efeitos dos filmes como intervenções sobre o mundo e cultura.
O que este efeito acaba por colocar em pauta, no lugar das normas é a inevitabilidade da dialética no interior da forma. Assegurar uma norma sem contradições parece ser necessária para que Bordwell construa uma espécie de certeza, que assegure a cientificidade de seus enunciados. Em parte, é plausível pensar em “formas vazias” quando se observa na história como as mesmas técnicas passam por objetivos e processos diferentes, quando aplicadas em contextos históricos distintos. É a história clássica da profundidade de campo, comum no cinema de atrações e seus tableaux e que retorna como novidade estética nos anos 40 com Orson Welles, William Wyler, John Ford e diversos diretores que trabalhavam com Gregg Toland, para não falar ainda naquele que fez o melhor uso da técnica que foi Jean Renoir. Mas é preciso compreender que a própria tomada de posição do artista ao optar por determinadas técnicas, novas ou velhas, passam por um gesto na história.
Quando Georges Didi-Huberman propõe o conceito de sintoma para se pensar a leitura das imagens ele não a trabalha como uma coisa, mas como um processo de dois vetores. O primeiro vetor é que um sintoma surge, é uma aparição que impede o curso normal das coisas; o segundo é a ideia de que um sintoma nunca surge no tempo certo, é anacrônico. No fim, o sintoma é uma mancha que estrutura um dizer, impregnado por uma história subterrânea lógica e errática.
Quando um fenômeno como o uso da profundidade de campo surge como novidade é preciso o compreender para além das condições institucionais (que diz Bordwell foi absorvida pela indústria e tornada como norma, nos anos 40, para cair em desuso na era do cinemascope), mas também da pregnância histórica desta técnica, assim como, e talvez ainda mais importante, as consequências distintas neste meio social, neste mundo da qual fazem parte.
Não se meramente vê, capta informações e constrói-se uma esquema mecanicamente (mesmo que numa dinâmica construtivista). Ainda que Bordwell ressalte a atividade do espectador, a atividade nunca é propriamente emancipada das rédeas dos guias formais que ele supõe se encontrar na organização narrativas e nas normas de estilo colocadas em questão. Não me parece que ele saia do perceber. O estilo parece ser sempre uma forma específica de guiar a atenção, e apenas isso.
“(…) ver só significa perceber no campo das experiências triviais, ou, antes, no campo das concepções triviais da experiência. Se quisermos trabalhar o ver (na atividade artística), se quisermos pensar o ver (na atividade crítica), devemos então exigir muito mais: exigir que o ver assassine o perceber, se essa última palavra for compreendida como uma “observação passiva” da “realidade tautológica”, segundo definição de Einstein. Devemos exigir que o ver amplie o perceber, que o abra literalmente “como se abre uma caixa”, segundo a expressão já citada a propósito do espaço cubista”
(Didi-Huberman, Diante do tempo: História da arte e anacronismo das imagens)
Por fim, a fim de evitar leituras espúrias do filme realizadas por seus principais alvos “cultural studies”, “feminismo”, “psicanálise”, “marxismo”, “pós-modernismo” (o que lhe coloca no lugar comum dos acadêmicos americanos e sua rixa pueril). Acaba por bloquear a dialética imanente às formas da arte.
É certo que historicamente muitas abordagens apenas usam as obras de arte como objeto inerte de reflexo social. A análise formal com toda certeza é a estratégia necessária para não adentrarmos em exegeses que não se engajam propriamente com a obra, apenas enxergam aquilo que desejam enxergar, como numa espécie de subjetivismo travestido de leitura de mundo. Contudo, lhe falta em última instância ver as formas, ao invés de meramente percebê-las e catalogá-las como sinais.
É possível que tudo isso seja derivado pela problemática que Bordwell recusa-se a pensar no significado do filme ou lhe coloca em lugar demasiadamente rasteiro, o que pode ser uma análise para outro texto, com uma leitura mais apropriada de seus trabalhos. Além disso, seu desejo de alçar à ciência as formas do cinema, lhe impede de apreender o aspecto valorativo da arte.
Os sinais num mundo são apenas signos usados em deliberações comuns da comunicação cotidiana, a partir do momento que recebem uma forma estética eles se tornam sintomas e, por isso mesmo, falam sem querer, excedem, deslizam. Não podemos resumir o programa estético dos artistas medievais, por exemplo, às normas institucionais, quando no fundo estas normas se impõem através de uma teologia e da relação específica que este artista constrói com esta forma de pensamento. Posteriormente, estes quadros serão lidos e transformados, e ainda carregam as pregnâncias de outros horizontes históricos; elementos estes que nos estranham em seu caleidóscopio de possibilidades.
4.
Para concluir preciso dizer que o trabalho de David Bordwell é muito importante. Há um conhecimento imprescíndivel em toda sua obra, além desta trazer algumas propostas que já deveriam ser levadas como preceitos. Tanto o apreço aos detalhes formais e o close-reading que realiza é algo exuberante, detalhista e preciosista, ele nos conduz a uma atenção ainda maior ao próprio filme. Além de nos tornar mais conscientes de certos efeitos técnicos e do mapeamento de suas transformações.
Minhas críticas feitas aqui podem ser um pouco injustas, afinal é certo que ele relaciona-se com a história, que busca observar o caráter cultural de diversos aspectos. Além de que não diria que fiz uma exposição exatamente sistemática de suas propostas (gostaria, inclusive de observar com atenção como ele muda para uma abordagem mais cognitivista, ou sistematizar o uso da influência da cultura na forma fílmica, este último, já se tornou uma proposta de texto para o futuro, focando em Ozu). Talvez eu esteja exigindo de Bordwell algo que eu poderia exigir de um crítico que precisa explicar os efeitos de uma obra e o valor que eles teriam. Para Bordwell não se trata do valor, se trata de uma descrição. A importância está na incidência e nas viradas de curso das normas.
Também preciso fazer uma consideração acerca do problema histórico e social que tratei aqui. Como falei no início do texto, sobre a maneira de proceder que costumo fazer com as obras que entro em contato, as questões histórico e sociais do filme me surgem, mas de maneira imanente à forma; e elas só acabam por me interessar quando o efeito ostraneine me força a olhar atentamente para os detalhes da obra. O que quero dizer é que não penso em nada disso enquanto vejo um filme, mas é a obsessão por certos efeitos e poderes das formas dos filmes que me fazem buscar compreendê-los e que me levam inevitavelmente a estes problemas histórico sociais. O modo como Lubitsch filma os seus personagens, os organiza em cena e brinca com as repetições da lógica de seu humor me revelam e deslocam mais em direção ao mundo que supostos grande temas.
Neste ponto, me interessa o trabalho do crítico Fred Camper que consegue analisar minuciosamente os detalhes formais da composição dos filmes, guiado pela ideia de que mesmo com as diferenças entre o cinema de vanguarda e o cinema narrativo, os dois proporcionam essa estranheza que não necessariamente se conecta a uma compreensão narrativa. É o que ele chama de elemento abstrato, cabe ressaltar que Chklovsky, mesmo que influenciado pelos futuristas, descreve o efeito de ostraneine em obras com narrativas clássicas. Não vou dizer ao certo que os dois discutem o mesmo processo, é apenas uma hipotése (talvez absurda).
Camper separa três relações com o estilo que o filme possui, em seu texto O Mito do filme de vanguarda.
- Aspecto funcional: A câmera acompanha uma ação, acompanha um personagem, é o aspecto básico do cinema narrativo.
- Aspecto expressivo: A câmera evoca algo através de diversos recursos cinematográficos. Não há uma razão funcional para tal recurso que não o efeito evocativo. Mas um plano funcional, pode também conter aspectos evocativos a depender do recurso usado.
- Estilo profundo: É “uma noção geral e única do espaço.” Pode ser construído através de recursos expressivos, mas também no interior de aspectos funcionais através da composição, ritmo, e movimentação. Exemplo mais funcional é Howard Hawks. Citando o próprio Fred Camper “Howard Hawks criou um cinema baseado em personagens no qual seu uso sutil de perspectiva ao nível do olho e montagem quase invisível — uma sutileza que depende parcialmente do que ele não faz, como os artifícios expressivos que ele evita — criam uma aura misteriosa ao redor da fisicalidade de seus atores conforme eles parecem se misturar aos objetos no cenário e à luz em toda a composição”
Me parece que, no fim, é impossível negar a obra de Bordwell pelo seu teor sinóptico e por seu trabalho tão assíduo de close-reading, mas que pode torna-se um closed-reading. Para escapar de sociologismos, subjetivismos, etc, (Não há nada que um acadêmico americano se assuste mais que os “ismos”) ele evitará todo uso do cinema dentro do caráter gnosiológico, não se aprenderá nada sobre o mundo através da obra de arte, pior, a arte não poderá ser herdeira sobredeterminada do mundo, mas sim das instituições. Aqui diga-se de passagem não estamos discutindo a experiência da obra como um manual de instruções, ou uma busca incessante por lições de moral, mas de como a figuração propriamente está ligada às contradições sociais dos artistas. Um gesto na história da arte é também um gesto na História.
5.1
O texto sobre slasher sainda vai ser feito. Existem talvez conceitos em demasado nesse texto que se de fato sistematizados podem tornar tudo aqui mais apropriado, quem sabe no futuro. O medium é apenas para estruturar minhas angústias como alguém apaixoando por estes mundos.