Uma pequena aventura acerca da verossimilhança
Quando assisti ao Coringa (2019) de Todd Phillips não senti nada. Aos poucos fui entendendo o que parecia não me tocar e o que parecia de alguma maneira tornar o filme inofensivo em seu registro supostamente brutal. Ouvi comentários tanto colocando o Coringa como um incel, ou algo desse tipo, quanto o colocando como o sujeito que dá início a uma revolta proletária.
De fato, há algo que se organiza aí. Uma revolta explicam, de um lado, irrompe das ações do Coringa, contra a classe burguesa, contra a imprensa; do outro, do indivíduo contra o mundo. Mas algo me incomodava exatamente na forma que o Coringa encarna o sujeito político.
Em seu texto sobre o filme, Zizek aponta algo de interessante:
“Pode parecer que o novo filme do Coringa visa precisamente fornecer uma espécie de gênese social do personagem, retratando os eventos traumáticos que o tornaram a figura que ele é. O problema é que milhares de jovens garotos que cresceram em famílias arruinadas e foram vítimas de bullying sofreram o mesmo destino, mas apenas um deles “sintetizou” essas circunstâncias na forma da figura singular do Coringa. Em um dos primeiros romances sobre Hannibal Lecter, a alegação de que a monstruosidade de Hannibal seria o resultado de circunstâncias infelizes é prontamente rejeitada: ‘Nada aconteceu com ele. Ele aconteceu.’.”
A visão o filósofo esloveno é pertinente, do mesmo modo que incômoda. Pois não “parece” que o filme constrói uma gênese. Ele de fato a constrói sem deixar espaço para a imaginação, para o sensível. Afinal, Phillips orienta o filme na lógica da origem, da explicação do personagem, da organização verossímil do acontecimento Coringa. Sabemos cada uma das variáveis à exaustão, os flashbacks reforçam seus sintomas, diagnósticos apareceram lá e cá.
O Acontecimento Coringa, do qual descreve Zizek, parece ainda pautado em certas realidades extremamente verossímeis, e isso me assusta nos tempos contemporâneos. Em contrapartida, no quadrinho A Piada Mortal (1988) de Alan Moore, sua figura surge com uma explicação que podemos chamar de inverossímil:
“Só é preciso um dia ruim para reduzir o mais são dos homens a um lunático. Essa é a distância entre o mundo e eu… apenas um dia ruim.”
O que é um dia ruim? Uma experiência sensível mundana, quantos dias ruins vivemos? Sua frase é forte, por essa simplicidade, pela estranha insignificância das suas causas. Todavia, o Coringa contemporâneo tem que possuir diagnósticos, tem que ser extremamente violento, tem que ter traços sociológicos determináveis.
Será que estamos perdendo a nossa habilidade da imaginação política? Haverá revolta sem a imaginação? Existe, portanto, consequências para essa verossimilhança tão aparente do filme. Tendo isso em vista, fiz esse pequeno passeio por esse conceito. Esse ensaio mais do que responder perguntas ou criar uma ideia muita precisa sobre tudo isso almeja um passeio, uma aventura para pensar o mundo.
1) A Aventura de um conceito
Na Poética, Aristóteles diz
“(…) é evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade. ”
É importante dizer que a noção aparece aí como forma de diferenciar duas coisas. Uma coisa é a história, o que exatamente aconteceu, outra coisa é a ficção aquilo que parece que aconteceu, ou pelo menos o que poderia ter acontecido.
A verossimilhança é, deste modo, como a condição para que isso —o que parece que aconteceu — possa tornar-se crível. Não importa a complexidade ou a estranheza da ação, se ela for crível ela foi verossímil. Como Aristóteles afirma:
“(…) nas peripécias e nas ações simples, os poetas alcançam maravilhosamente o fim que se propõe alcançar, a saber, a emoção trágica e os sentimentos de humanidade. Assim acontece quando um homem hábil, mas perverso é enganado como Sísifo, ou quando um homem corajoso, mas injusto é derrotado. Isto é verossímil, explica-nos Agatão, pois é verossímil que muitos acontecimentos se produzam, mesmo contra toda verossimilhança. ”
Tendo isso em vista, o verossímil deve ser entendido como um ‘parece ser’ ligado diretamente ao emocional do público. Aristóteles chega a afirmar que é preferível o impossível verosímil do que o possível inverossímil, ou seja, mesmo que um acontecimento narrado seja completamente falso ele é preferível se parecer verdadeiro, ou melhor — e isto que é importante — se for sentido emocionalmente para o público como verdadeiro.
Já é possível observar uma ambiguidade no termo do verossímil. Em certo momento, ele seria o necessário, ou seja, o possível, em outros momentos ele seria o persuasivo, aquilo que convence o público.
Antoine Compagnon, em O Demônio da Teoria: Literatura e Senso Comum, salienta essas duas apresentações do conceito ao discutir o sentido da mimèsis:
“(…) mimèsis, cujo critério é, em Aristóteles, a verossimilhança em relação ao sentido natural (eikos, o possível), enquanto nos poéticos modernos, ela se tornou a verossimilhança em relação ao sentido cultural (doxa, a opinião)”
O próprio autor reconhece que essa ambiguidade já está implícita em Aristóteles, mas é enfatizada pelas teorias modernas da literatura.
Em resumo, o artista não deve atingir a verdade, mas apenas o sentimento obtido através do verossímil. Como Badiou comenta no Pequeno Manual de Inestética, este é um posicionamento clássico, no qual a arte só existe esvaziada de verdade e só pode alcançar o gosto do público. A catarse é terapêutica e não reveladora.
Enfim, o verossímil apresenta alguns problemas. O verossímil é o que demonstra sua eficácia com a realização de um senso comum, deste modo não seria ela de alguma maneira uma forma de restringir certas formas de narrar, certos conteúdos e ainda o próprio novo? Se a catarse é terapêutica que influencia isso causa na realidade do espectador, qual é a produção sensível de fato?
2) A Impossibilidade de escapar do verossímil
Em Poética da Prosa, Todorov, pode ajudar a pensarmos sobre o conceito. De início, ele enumera diversas definições do verossímil:
1) verossímil é aquilo que está conforme a realidade
2) verossímil é a relação de um texto particular com um outro texto geral: a opinião pública
3) verossímil é a relação de um texto particular com um outro texto geral: o gênero
4) verossímil é aquilo que tenta parecer real
De certo, Todorov reconhece que o primeiro é o mais ingênuo e não compreende sua diferença com o conceito de verdade. O segundo é o de Aristóteles, afinal, o que seria a emoção do público senão uma espécie de senso comum. A terceiro se aproxima de uma definição da Idade Clássica francesa, que retoma o senso comum como o possível do gênero. Por fim, o quarto, apesar de soar como o primeiro, ressalta que o texto não está conforme a realidade, mas torna suas leis invisíveis com a verossimilhança.
Podemos encontrar de fato, então, dois níveis a partir dessas definições:
“a verossimilhança como lei discursiva, absoluta e inevitável; e o verosímil como máscara, como sistema de processos retóricos, que tende a apresentar essas leis como outras tantas submissões ao referente. ”
São no fundo duas formas de pensar o verossímil: Aquele que o relaciona de uma maneira ou de outra com o referente. É isso que se expressa com “conforme a realidade” ou com o “parecer real”; assim como, o que o relaciona com uma lei ou código discursivo, seja o da doxa, o senso comum, ou do gênero.
Para exemplificar esses níveis, Todorov apresenta o exemplo do romance policial. Um gênero bem particular, pois seu próprio conteúdo opera na discussão do verossímil, afinal a pergunta é: quem é mais provável de ser o criminoso? Todavia, seu objetivo é invertido, pois todo romance policial instaura um anti-verosímil. Pelo simples fato de que a revelação deve ser possível e inverossímil, uma escolha amplamente não aristotélica.
A revelação é do campo da verdade, portanto está fora da verossimilhança. Todavia, ao fazer disto sua lei, cria-se um novo senso comum, um novo código a ser seguido, uma nova forma de verossímil. Afinal, o gênero só ataca o verossímil que se remete ao referente.
“Ao apoiar-se no anti-verosímil, o romance policial submeteu-se à lei de um outro verosímil, o do seu próprio gênero. (…). Portanto, não é difícil descobrir o culpado, num romance policial: basta seguir a verossimilhança do texto e não a verdade do mundo evocado. ”
Então, o que compreendemos dessas definições e com esse exemplo? Bem, o gênero e o senso comum são códigos mais do que referentes concretos e operam por verossimilhança, mesmo que essa operação seja pautada num contrassenso, que é o caso do romance policial. Em Todorov, o verossímil é a lei que rege os acontecimentos discursivos da arte, pois ela não pode produzir nenhuma verdade.
O senso comum é pensado como outro código, que parece intocado aos problemas históricos e políticos que o rodeiam. É uma lei impossível de escapar.
3) Há como produzir a verdade ou o novo?
Mas será mesmo que o verossímil pode ser pensando em sentido absoluto?
Em A Significação no Cinema, Christian Metz, propõe algumas definições sobre o verossímil, mas atesta que a ideia do senso comum e do gênero traduzem um mesmo problema, a ideia de um consenso inevitável, a própria impossibilidade de produzir verdade. Como afirma:
“Num caso ou noutro (senso comum, regras de gênero), é com relação a discursos e a discursos já pronunciados que se define o Verossímil, o qual aparece assim como um resultado de corpus: as leis de um gênero provêm de obras anteriores a este gênero, vale dizer, de uma série de discursos (…); e o senso comum não é senão um discurso inumerável e disperso que já se compõe, em última análise, do que dizem as pessoas. Assim, o Verossímil é logo de início uma redução do possível, ele representa uma restrição cultural e arbitrária entre os possíveis reais, ele é de chofre uma censura (…). “
Deste modo, o verossímil diminui o campo da enunciação, obrigando a existir um número fechado de enunciados, ele torna certas situações, relações, movimentos impossíveis.
Não é à toa que Aristóteles afirma que os personagens precisam se ater ao máximo a sua Verossimilhança. Os escravos e mulheres só poderiam cumprir sua função de insignificância.
“Tanto na representação dos caracteres como no entrosamento dos fatos, é necessário sempre ater-se à necessidade e à verossimilhança, de modo que a personagem, em suas palavras e ações, esteja em conformidade com o necessário e verossímil, e que ocorra o mesmo na sucessão dos acontecimentos.”
Mas o que há diferente em Metz é que ele acredita que não se pode estar em absoluto no verossímil, muito menos em absoluto no seu contrário:
“Um critério absoluto não pode bastar: não se encontrarão obras inteiramente presas ao Verossímil (os filmes mais convencionais oferecem às vezes, durante alguns planos, uma abertura para outra coisa), nem obras inteiramente libertadas de todos os verossímeis (seria necessário um super-homem).”
Assim, em Metz a obra que assume suas convenções de gênero como o anti-verossímil do romance policial, sempre exposto de maneira exemplar em Hitchcock — que chamava seus inimigos de “os verossímeis” — é uma forma de escapar de certo verossímil, aquele que busca a referência ao real. Do mesmo modo, os cinemas novos, aquilo que chamam de “modernidade” no cinema consegue quebrar com a doxa pela ruptura das convenções e pela criação de novas formas de narrar. É só pensar no Cinema Novo, o Cinema Marginal, Nouvelle Vague e tantos outros.
4) As consequências políticas de um conceito
Na obra de Aristóteles, há um gênero superior ao outro, pois sua organização é mais verossímil. Isto quer dizer que há uma hierarquização da concatenação da ação, que de alguma forma permite a certo temas e sujeitos se tornem sempre as únicas possíveis. Rancière salienta isso em seu artigo O Efeito do Real:
“Verossimilhança não é somente sobre que efeito pode ser esperado de uma causa; ela também diz respeito ao que pode ser esperado de um indivíduo vivendo nesta ou naquela situação, que tipo de percepção, sentimento e comportamento pode ser atribuído a ele ou ela. “
Isto é de suma importância para o filósofo francês, visto que a operação de partilha do sensível rege tanto a arte quanto a política. Remeter-se ao inescapável campo do verossímil é tornar o sujeito político impossível. Ele propõe que este regime representativo, do qual a mimèsis e o verossímil organizam a eficácia artística, está sempre em conflito com o regime estético, no qual há a igualdade entre sujeitos, gêneros e temas.
Assim, explica a ruptura
“O crítico reacionário revela, com franqueza, a base social da poética representativa: a relação estrutural entre as partes e o todo fundamentava-se numa divisão entre as almas da elite e as das classes baixas. Quando essa divisão desaparece, a ficção se entope de eventos insignificantes e de sensações de todas aquelas pessoas comuns que ou não entravam na lógica representativa, ou entravam nos seus devidos lugares (inferiores) e eram representadas nos gêneros (inferiores) adequados à sua condição. Isso é o que a ruptura da lógica de verossimilhança quer dizer.”
O que existe de mais interessante nessa leitura filosófica do conceito é nos fazer perceber que o verossímil não pode ser tomado como “uma regra de qualidade”, algo que muitos postulam de forma convencional, sem remeter-nos à sua historicidade. Ele deve ser lido de maneira crítica, levando adiante as consequências do conceito, que extrapolam em total o campo da poesia, no qual foi inserido inicialmente.
Afinal, é exatamente quando o leitor, o espectador, pode produzir de uma forma emancipada, que sua aventura intelectual a partir de qualquer obra surge, que há possibilidade de reorganizar toda uma sensibilidade travada na doxa.
5) O Fim da Aventura
Não importa muito saber se o personagem Coringa é revolucionário ou não, no sentido político, mas sim perceber o que de problemático a política de sua arte constrói.
Em O Espectador Emancipado, Rancière descreve bem algo próximo a forma com que organiza à sua narrativa:
“(…). Apresenta-se sempre como evidente a passagem da causa ao efeito, da intenção ao resultado (…)”
O que mais interessa aqui não é o exemplo do Coringa em si, mas como de maneira generalizada isso parece ser uma constante no contemporâneo. Tudo que é bom recebe certo selo de mais verossímil, é possível compreender como tudo se passa, afinal o campo do possível é tão limitado.
É o que acontece com a sensação de que o capitalismo é inevitável. Dentro do campo do verossímil, das possibilidade algorítmicas desse sistema fechado, não há produção de sensível, onde o saber e o não-saber podem se encontrar, há apenas um consenso de saber e saber, que acredita piamente na decifração de mensagens, no entendimento certeiro das lições dos artistas e da história.
Hoje, assistimos a filmes, séries e ao espetáculo trágico da política nacional à espera da resolução verossímil.