Uma inverossimilhança em cada verdade
“Direi portanto, de preferência: se você quer entender alguma coisa sobre democracia e a América, sobre a relação confusa entre uma e a outra, feche Tocqueville, vá à cinemateca.”
Ao assistir Vive-se uma só vez (1937) do Fritz Lang essa frase de Rancière me surgiu de repente. Um dos seus primeiros filmes na América, exilado da Alemanha, ele articula uma tragédia própria do universo americano, mas como toda tragédia, dos próprios horrores da história. A narrativa é intricada em um número quase que insustentável de situações, velozes, que colocam o caminho do protagonista no inferno.
Quando as portas da prisão abrem-se a primeira vez para Taylor, ele está receoso com o mundo, do seu meio social, mas tem uma crença poderosa no seu amor por Joan. Não é à toa a cena lírica que se articula com os sapos, onde podemos ver ali toda uma inocência, uma esperança genuína. Contudo, como que por crueldade a narrativa de Lang faz o destino desse personagem viajar num conjunto de reviravoltas que pouco a pouco o levam de volta ao caminho que saiu. Dessa vez, injustamente condenado à morte.
Em Lang, essa lógica do culpado e inocente, joga sempre no equilíbrio perfeito para a beleza aristotélica de seus enredos. É bem notado que, como bem aponta Gérard Legrand, o diretor assume o lugar do próprio destino. É inexorável, há de ser assim. Tom Gunning, em seu livro The Films of Fritz Lang — Allegories of Vision and Modernity, chega a dizer que em todos os filmes do diretor opera algo que ele chama de A Máquina do Destino.
Assumindo, por vezes, a figura de um relógio, em sua precisão continuada. Não há como escapar da sucessão de acontecimentos, um fato leva ao outro, o jogo de causa e efeito parece operar sem pausa, não há quem diga que possa lhe faltar esse jogo.
Henry Fonda encarna com um olhar impassível esse homem que perde tudo. A forma com que luz atravessa seu rosto, ou sua cela completamente exposta, nos indicam todo seu desespero. Se há nessa narrativa uma estruturação de tragédia clássica (o conflito do sujeito com o mundo), ela se alia com perfeição a uma tendência da tragédia moderna (o conflito do sujeito consigo mesmo).
Um homem inocente tornado culpado, logo depois um culpado tornado inocente, essa torção não ocorre puramente no seio da comunidade, que o julga, mas dentro de si, em seu desespero. E se é fato que Lang se alia a uma crítica social da máquina judiciária e à pena de morte é para descrever melhor o destino, ou como ele mesmo salienta “Não se pode propor soluções, mas deve-se sempre lutar para se designar o mal”.
É por isso que essa história, em seu formato de protótipo de Bonnie e Clyde, é muito mais que fuga apaixonada, é, principalmente, sobre a loucura da inocência e da culpa, da dialética do indivíduo e do seu meio. A sociedade moderna é um labirinto infernal. Quando um filme constrói-se em imagens precisas, mas ainda assim enigmáticas é que podemos chegar num âmbito crítico.
Um homem condenado à morte é mal? Possui uma maldade inata? O que há ao seu redor? O padre tenta consolá-lo, provar que a maldade é efeito do contingente, onde a fumaça, em seu tom mais pictórico, coloca Taylor a duvidar de que as portas se abrirão novamente. Quando se encontra com Joan novamente e o amor idílico floresce, numa fuga geral da polícia, é que as portas podem se abrir de novo, não é à toa que elas se abrem de fato.
“(…) esse lugar da visibilidade perfeita do semelhante se assemelha pouquíssimo à América que seus romancistas e cineastas — autóctones ou de adoção — nos têm mostrado. A América deles, de fato, é o território de um visível sempre problemático. É um território onde há, não apenas um índio ou um bandido virtualmente oculto atrás de cada arbusto, porém, mais profundamente, um segredo por trás de cada porta e de cada corpo: um alienado escondido em cada diretor de asilo, um culpado em cada inocente e um inocente em cada culpado, uma turba histérica em cada multidão de pessoas honestas e, para ficar nos termos de Fritz Lang (pelo menos em versão francesa…), uma inverossimilhança em cada verdade.” (Rancière, O Continente Democrático)