Um problema de horizonte ou o que fazemos com o que veio antes
Em Green Knight (2021), de David Lowery, há uma longa jornada, perpetuada por seus simbolismos e encantos esverdeados, assim como de seus monólogos intrusivos a anunciar a problemática destes terrores maravilhosos. O curto poema em que se inspira, Sir Gawain and The Green Knight, é uma obra medieval, uma renomada obra do gênero do “romance de cavalaria”.
Neste gênero se buscava explorar, num deslocamento da narrativa épica, a consistência do herói e seus valores cristãos. A nobreza, a castidade, a honra, a pureza, a bondade. É certo que se misturam aqui a honra de um guerreiro com a honra de um beato, pode-se dizer que era da construção da virtude que se tratava.
O que quero pontuar com isso é a formulação de um problema. Como é que Lowery trabalha com esse material deslocado de suas condições transcendentais? O que é que significa para nós hoje uma história de cavalaria e uma jornada em direção à virtude?
O maior interesse se dá pelo problema do anacrônico que Borges coloca em seu conto Pierre Menard, Autor de Quixote. Afinal, Menard reescreve letra por letra a obra de Cervantes para simplesmente produzir uma significação completamente distinta, porque as condições transcendentais de sua criação lhe são distintas. Ou seja, é possível fazer significar, ou trazer de volta aquilo que veio antes sem lhe transformar? Será que este sentido anacrônico que se busca é pensável e articulável para o tempo que constitui a obra atual?
Essa reflexão literária nos coloca a pensar as adaptações para o cinema de obra clássicas, mas também nos faz repensar sobre o chamado maneirismo, ou ainda o eterno retorno de nossos remakes. Mais do que o maneirismo, me interessa o sentimento de veneração ou esquecimento, uma relação singular com as obras do passado, o que se faz com as heranças.
Nesse sentido, outro filme lançado há pouco tempo que é digno de análise para explorar essa problemática seria Malignant (2021) do James Wan. Um filme que assume suas referências, como o Wan colocou em entrevistas, em Argento, De Palma, Bava. Dentro da plasticidade da imagem e na condução flutuante de sua câmera.
Mas é certo que Wan não tenta imitá-los, isto que é interessante, ele busca repensar justamente essas características centrais de seus estilos para algo muito próprio, mesmo que isto não signifique a produção de algo de genioso. A autoconsciência de Wan, e de outros cineastas do horror contemporâneo lhes serve para bem ou para mal, seja em Mike Flanagan, Ti West ou Adam Wingard.
A questão central, que se deriva dessa problemática, é: como estes dois filmes se relacionam com suas heranças, ou será que sequer se relacionam com elas? O que acontece com o sentido ou estilo de uma obra de outro tempo, quando se refletido para hoje?
Artimanhas de uma não relação
Essa reflexão surge de uma leitura de A Teoria do Romance de Georg Lukács, que em uma prosa sofisticada, busca articular como o romance do século XIX acaba por ser, não uma retomada, mas de fato aquilo que chega no lugar do épico, como bem descreve o autor:
“O romance é a epopeia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido da vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade. ” (p. 55)
Este é um fenômeno interessante visto que a tragédia conseguiu permanecer quase intacta pela história, mas a epopeia desaparece, perde todo o seu valor e sua eficácia simbólica. O romance surge como forma simbólica nova que representa o estatuto do homem social, do mesmo modo que a epopeia, e assim revela as mudanças históricas que este personagem passou.
Este acaba sendo o problema central de seu empreendimento. Para nós, o que importa — para além da própria condição de possibilidade de pensar este problema — são seus comentários sobre o romance de cavalaria e os efeitos de tentativas de ressuscitar o épico no romantismo alemão.
Em relação ao segundo, é importante dizer que a epopeia continha uma condição histórica para seu poder, isto é o mundo fechado da Grécia em que o cosmos se fechava em sua própria imanência e a ética se articulava nos gestos. Isto não quer dizer que a cultura grega era ideal, mas sim que este ideal era transmitido culturalmente e absorvido de algum modo, para além de estar expresso na própria forma do épico.
O mundo moderno fragmentado e aberto ao infinito, não continha o mesmo sentido e poder em sua totalidade. É nisso que Lukács considera um erro de Hebbel, no século XIX, ao construir Cantos dos Nibelungo. Ele o descreve como
“(…) o desesperado esforço de um grande escritor para salvar a unidade épica de um assunto verdadeiramente épico — unidade esta que se desintegra num mundo modificado. (…). Na ação da Ilíada — sem começo e sem fim — floresce um cosmos fechado numa vida que tudo abarca; a unidade claramente composta do Canto dos Nibelungos oculta vida e decomposição, castelos e ruínas por trás de sua fachada engenhosamente articulada. ” (p. 54)
É neste mesmo sentido que os romances de cavalaria são interpretados no livro, mas com uma nuance distinta. Elas são obras realizadas quando suas condições transcendentais deixaram de existir, a obra de Dom Quixote lhe serve de prisma para a reflexão deste problema. A nuance que se coloca é que a Idade Média, diferentemente de outros períodos, tinha condições históricas para a produção de uma forma épica, por conta da relação em cosmos que se fazia entre comunidade, Deus e sujeitos.
Todavia, o paradoxo deste cosmos cristão era a existência com todo furor do pecado do mundo; e a teodiceia, isto é a benevolência eterna de um mundo do além. Ou seja, o mundo aparecia de imediato dilacerado.
Na Epopeia, a relação com os deuses era equiparada, no sentido de seu aspecto divino conter um teor humano; o teor inapreensível e inexplicável do Deus cristão criava um cosmos talvez por demais confuso para limpidez grega, por demais abstrato. O Romance de cavalaria era, portanto, como um gênero onde se jogava com formas mortas — isto que ele chama de literatura de entretenimento.
Isto nos leva a pensar que Sir Gawain e o Cavaleiro Verde não pode ser tratado exatamente como um épico, mesmo que saibamos de suas ressonâncias. O que há de mais interessante na análise do filósofo húngaro é que a forma e aquilo que ela coloca em ressonância se transformam por completo a partir das condições históricas em que se dão.
O Romance de Cavalaria, no qual se insere esse poema, agora se apresenta num filme de 2021. O poema contém um humor latente, sua religiosidade é mais expressiva, assim como o problema central — a virtude — está em movimento o tempo inteiro. Todavia, a obra não é uma imersão cega na jornada de Gawain em tornar-se um cavaleiro virtuoso, mas sim a construção da virtude posta em questão.
Afinal, quando entra no jogo do Lorde de Hautdesert, e começa a ser tentado pela a esposa do mesmo, o que se coloca em jogo é que sua cortesia, um dos principais elementos do virtuosismo da cavalaria, é aquilo que lhe coloca em perigo, é aquilo que é usado para tentá-lo.
A partir disso, a diferença básica de como Lowery toma o filme é que, a primeiro momento, sua jornada é destituída de qualquer humor, sua aventura busca ressaltar não a fragilidade humana perante ao valor dos cavaleiros, mas uma estranha decadência perante ao valor dos cavaleiros. Isto me parece notório com a falta de horizonte visual com que a obra se apresenta.
Afinal, tudo é filmado em tom derivativo aos trabalhos da A24, a frieza e a rigidez, o simbolismo exacerbado que torna todo o segundo ato do filme uma jornada de hieróglifos, elementos puramente decorativos que arrastam-se esvaziados de toda imanência. Não há o céu ou as montanhas — se estes existem nunca funcionam como um horizonte — , há apenas o sujo, a pequenez, a morte.
As imagens não produzem uma contradição entre a fragilidade e a virtude, que se sintetizam na obra original, mas uma espécie de uniformidade indiferente de decadência.
No poema, durante o grande desafio final, o Cavaleiro verde desce o seu machado, porém não por completo, já que o ferimento de Gawain logo se cura, por conta da faixa mágica que carrega. Isto acaba por produzir uma grande humilhação, pois terá que carregar para todo o sempre sua incapacidade de ser um cavaleiro perfeito. Todavia, o perdão, elemento crucial do cristianismo, do Cavaleiro busca aliviar e divinizar a fragilidade humana deste herói.
No longa, Lowery expõe uma longa cena temporal, como uma visão do futuro, em que Gawain foge do seu dever e vê-se tornar rei, consegue viver por complet, porém carregando a culpa. Com isso, vê sua imagem destruída aos poucos. Tendo isso em vista, decide retirar a faixa verde mágica e aceitar a morte. O filme se encerra antes do último gesto do Cavaleiro Verde.
Qual a diferença aqui? A questão problemática não é que há uma mudança em si — já observamos que a mudança é inevitável — mas sim, compreender o que significa esse novo final dentro de seu cosmos, ou melhor de nosso curioso caos atual. De maneira nenhuma o filme de Lowery coloca o dever, o ethos da cavalaria em questão, talvez por nossa falta de ethos — ou de encanto no mundo — , o que ele buscou foi a necessidade de se buscar um ideal, em meio a um mundo decadente.
Aliás, enquanto no poema temos como refletir o herói dentro de um campo que toda sua jornada está em conexão com a comunidade, pela sua ligação hereditária com A Távola Redonda. O filme de Lowery me parece distanciado disso ao querer expor os traços decadentes do grupo; é neste ponto que ele perde a própria noção de herói.
Por conta disso, a sequência de premonição é por demais distanciada para nos fazer crer em sua culpa e de nos fazer entender a sua aceitação a um ethos que lhe parecia incerto. O que fazer com toda fragilidade exposta? Torná-la superável dentro de um ideal? Estranhamente o desejo de viver, e a graça do perdão e do frágil eram mais comuns na Idade Média que hoje.
Mas talvez isso seja uma consequência direta de nossos tempos, entender o que de fato acontece, como se chega a aderir a um ethos qualquer num mundo que flutua para todos os lados. Ao optar, para além de tudo, por omitir o último movimento, me parece acima de tudo assumir um lugar vazio, logo após assumir uma posição, acaba por negá-la. É nesse sentido que toda mudança se torna vazia.
Das boas más leituras
James Wan é o maior diretor de terror que surgiu no século XXI. Maior não indica aqui qualquer tom qualitativo, mas apenas a centralidade que ocupa na indústria do cinema de horror de Hollywood. Desde Jogos Mortais (2004), ele parece buscar construir um cinema de horror barato e que de algum modo restituísse uma harmonia histórica entre essas formas clássicas do horror do passado e o horror contemporâneo.
É certo que seu estilo só chegou ao ápice disso com suas duas sagas Sobrenatural (2010) e Invocação do Mal (2013). Estes dois tiveram sequências dirigidas também pelo Wan, e ainda mais sequências já seguidas por outros diretores. Assim, este quarteto sedimentou o seu estilo.
Não devemos esquecer também o quanto o artesanal passou a se transformar com o uso dos efeitos especiais, e seus trabalhos com a franquia de Velozes e Furiosos, assim como em Aquaman (2018), foram grande influenciadores nesse sentido, em dar vazão para uma olhar que podemos chamar até mesmo de gameficado.
Gameficado aqui não significa inclusão de interatividade concreta, como em certos experimentos recentes — uma discussão problemática que ignora o papel ativo de todo espectador e leitor. Isto significa menos a ideia de fases, e estrutura de jogo, com suas gratificações usuais, mas sim em relação ao visual, os movimentos de câmera impossíveis, que se estendem de maneira falsa, o teor digital de algumas imagens com o seu uso de CGI.
Malignant (2021) parece o ponto mais extravagante e sofisticado de todo o estilo de Wan. Ao citar Brian de Palma, Dario Argento e Mario Bava, ele seleciona um bloco de cineastas que por muitos receberam o título de maneiristas, pela forma com que trabalhavam com as formas quase que puras, pela forma que produziam distorções de imagens clássicas. Mario Bava talvez uma posição aquém ao maneirismo, mas não deixa de ser uma influência direta dos dois primeiros.
A característica central que Wan emulou em todos seus trabalhos, mesmo que não com o mesmo poder sublime, foram a poderosa mobilidade da câmera, que flutua pelos espaços como uma entidade fantasmagórica, e a plasticidade da imagem, que sem medo em cair nos exageros ou no ridículo, dá corpo material a tudo que é filmado.
O que proponho aqui é que Wan, em especial neste trabalho, trabalha com o desvio daquilo alçado por cineastas anteriores, com formas propriamente do passado. É por isso que o termo maneirista aparece de forma demasiada em diversas leituras críticas, visto que o nosso cinema desde os anos 80 vive fixado em repetir as formas antigas em suas criativas deformações.
O conceito de maneirismo no cinema, que foi colocado em pauta pela Cahiers du Cinema, desloca o conceito usado na história da pintura para descrever certa tendência dos pintores entre o renascimento e o barroco. Muitas vezes usado como um conceito depreciativo, visto que desvirtuavam os modelos renascentistas de harmonia e gravitação, em prol de uma desproporção.
É certo que o conceito na pintura veio a descrever um problema histórico, o de compreender o que o obsedante efeito do ideal de perfeição renascentista causou na arte posterior. E assim, Bergala, em De Certa Maneira, descreve o efeito da angústia da influência:
“Ele se caracteriza pelo sentimento que tiveram pintores como Pontormo ou Parmigianino de chegarem “tarde demais”, depois que um ciclo da história de sua arte tenha sido completado e uma certa perfeição atingida pelos mestres que lhes tinham precedido de perto como Michelangelo ou Rafael, a “Maneira” se constituindo como uma das respostas possíveis (com o Academicismo e o Barroco) a esse esmagador passado próximo. “O maneirismo”, escreve Patrick Mauriès, “se situaria, desde a origem, à beira, no limite de uma ‘maturidade’ que teria concretizado todas as suas potências, queimado seus estoques secretos”.”
O deslocamento nos coloca numa espécie de analogia, a má consciência na história do cinema faria surgir o maneirismo cinematográfico também, após a exploração modernista dos anos 60 e 70. É como se reutilizasse figuras do passado, sem suas condições transcendentais como Lukács havia falado outrora.
Isto é algo bem descrito por Harold Bloom, porém, numa escala menos abrangente, visto que foca-se em autores individuais e suas linhagens, mais do que formas históricas precisas como Lukács, ou como o maneirismo. Todavia, sua descrição e sistematização do que faz cada autor com as influências é algo notável. Harold Bloom argumenta em seu livro A Angústia da Influência:
“(…) a angústia da influência resulta de um complexo ato de forte má leitura, uma interpretação criativa que eu chamo de “apropriação poética”. O que os escritores podem sentir com o angústia, e o que suas obras são obrigadas a manifestar, são as consequências da apropriação poética, mais que a sua causa. A forte má leitura vem primeiro; tem de haver um profundo ato de leitura que é uma espécie de paixão por uma obra literária. ” (p. 24)
Essas referências nos ajudam a pensar o cerne da questão. O que é e como os autores trabalham com o que veio antes. Não entrarei no mérito de se Brian de Palma ou Dario Argento possuem de fato uma má consciência, ou se são maneiristas de forma precisa, isto inclusive já discuti em postagens anteriores. (Sobre De Palma[aqui] e Argento [aqui])
Muito menos se Wan o é também, acredito que esse conceito ainda é impreciso para descrever o que ocorre no cinema desde os anos 80. Mais certo é descrever o que me parece ter sido a operação desse diretor com seu filme mais recente.
Sua narrativa contém o Wan mais virtuoso — há quem diga exibicionista — que já vimos, em que mescla com estranha precisão seus movimentos aberrantes e por vezes completamente absurdos (o plano zenital cobrindo a totalidade da casa de sua protagonista) com a continuidade digital que já se encontra nos seus filmes de ação(a cena na prisão, em especial a sequência com os policiais).
Deste modo, a ponte que ele constrói entre esse cinema do passado, a partir de seu frankenstein, de sua colcha de retalhos absurdas, é de alguma forma filtrado pelos seus interesses estéticos. Encontra neles, nos movimentos virtuosos e na plasticidade uma via de extrapolar seu estilo entre a simplicidade artesanal (os efeitos práticos e suas derivações divertidas como a construção da arma mortal) e o gameficado (do CGI das visões de nossa protagonista, às cenas de violência).
É certo que Wan, consciente e angustiado por suas influências, decidiu propor algo com elas. Pode se argumentar que o que fez não foi interessante, não foi bom, está aquém de suas referências. Este último ponto não negarei, mas é certo que ele articulou uma continuidade que é estimulante e que nos coloca em reflexão com a história do terror. Como se sua ponte fosse uma demonstração de um caminho que se tornou explícita.
Sua narrativa alude o ato de ver os assassinatos, de ver aquilo que há de mais horrível, como nos giallos de Argento, em especial Opera (1987), onde se é forçado a ver todas aquelas mortes, onde o horror se torna a aventura do olhar. Se em Argento a dialética da precisão e do desprendimento do olhar são cruciais, diria que com Wan a aventura e o frenesi criam um novo caminho.
A cisão que existe entre o que fazem comigo e o que faço com os outros, o olhar que presencia os assassinatos sempre implica num trauma que precisa ser desvendado, uma cena primordial que precisa ser evocada e investigada. O assassino já não é coisa externa aqui, mas também não é mero dispendido psíquico, é algo incorporado, encarnado nas fissuras do corpo.
É nisso que ele se diferencia do filme de Lowery, que constrói o que me parece ser uma não-relação com a obra que adapta. Claro, posso estar sendo injusto nessa comparação visto que ele adapta um poema, enquanto Wan conta uma história original a partir de estilos e tropos antigos refratados.
Não acredito que fazer relação ou não-relação seja um critério valorativo, afinal, apesar do filme de Wan ser divertido e estimulante como seus outros bons trabalhos, não contém nenhum alarde de qualidade, ou de obra-prima, a não ser o sentimento de que o poder de certo horror existe ainda, em seu charme desviado.
Em conclusão, essa reflexão que proponho, a partir de filmes que estão longe de serem obras-primas, me faz pensar em duas coisas mais. A primeira é que até mesmo com os filmes que acabamos por achar ruins há algo que se possa pensar, para colocar em movimento; em segundo, é que há de se historicizar as formas criticamente, não para compreendê-la por completo, mas para colocar em jogo suas forças.
Aliás, aqui vale um adendo derivado das reflexões de Georges Didi-Huberman e Jacques Rancière. Pensar a obra através da história não é reduzi-los a suas condições transcendentais — ou pelo menos não deveria sê-lo. Estes compreendem a história das imagens como a história de objetos complexos e sobredeterminados, e que por vezes o que há nas imagens é o canto de algo porvir, algo de outrora, uma verdadeira malha de tempos, resta-nos fazer a trama desta montagem.