Tecnologias do Encantamento
I
As artes decorativas são postas em oposição às artes representativas, todavia sabe-se bem que o modernismo em parte destituiu a representação de seu lugar e tornou essa divisão mais arenosa (pelo menos em alguns fios narrativos).
Alfred Gell, comenta em Arte e Agência o quanto a arte decorativa é depreciada por ser associada diretamente ao ornamento. Todavia, ela possui uma eficácia social que a faz persistir contra todo o cânone do gosto. O antropólogo chega a nomeá-la de tecnologia de encantamento. O problema a ser trabalhado aqui é a oposição entre o ornamento e o funcional, o artesanal e o industrial, do qual Gell parece demonstrar toda sua inutilidade ao dizer que toda decoração é intrinsecamente funcional, visto sua eficácia dentro do aparato simbólico que nos rodeia.
Seguiremos as reflexões que Rancière, em especial acerca do Arts and Crafts como abertura para o desenvolvimento moderno deste campo da arte. Estas propostas, de certo, são reações ao mundo moderno. São produtoras de novas tecnologias de encantamento.
A partir disso, teremos a consequência de repensar a modernidade. Proponho que toda a modernidade se articule menos como uma tradição da ruptura, do novo, e sim uma nova leitura do que veio antes. Não é à toa que Rancière diz que o complemento mais coerente para o que ele chama de regime estético é a novidade da tradição, é a constituição de uma nova relação com o antigo, portanto sua temporalidade é heterogênea.
Do mesmo modo, mas por um caminho e ambição muito distinto, Merquior articula sua ideia de tradição moderna, contra os resíduos românticos (não o romantismo que constitui o classicismo, mas o romantismo do inefável ao Sturm und Drang) que nos colocariam dentro do que ele nomeia de formalismo. Portanto, o que proponho aqui é que analisar esse desenrolar da arte decorativa e sua relação com a ideia de modernidade.
II
William Morris, fundador do Arts and Crafts resumia os preceitos do seu movimento como “(…) a unidade que caracteriza a arte é a ‘morada de um grupo de pessoas, bem construída, bela, adaptada a seu propósito, decorada e mobiliada de modo a exprimir o tipo de vida de seus habitantes. ” (p. 155, 2021). Aqui há, em primeiro lugar, a localização da arte decorativa como uma verdadeira arte social, em segundo lugar ele recusa a divisão das artes nas ruas, casas, cidades e as belas artes dos museus (até, então, sob o véu da representação).
A base de toda a perspectiva de Morris se dá com a leitura de John Ruskin acerca do gótico, contudo deve se entender o gótico de Ruskin para além de seu enquadramento histórico. É menos uma releitura histórica, e mais uma ideia de arte que se constrói. Uma ideia propriamente moderna.
“O Ornamento, como tenho frequentemente observado, tem duas fontes inteiramente distintas de prazer: uma, aquela da beleza abstrata de suas formas, a qual, no momento, podemos supor ser equivalente, tanto quando provém da mão como da máquina; a outra, o sentido de trabalho e cuidado humanos nele dispendido. A dimensão desta última influência nós podemos talvez avaliar, considerando que não há nenhuma touceira de ervas crescendo em qualquer fenda de ruína que não tenha uma beleza em todos os aspectos quase igual, e, em algumas, imensuravelmente superior, àquela da mais elaborada escultura de suas pedras; e que nosso interesse na obra esculpida, nosso sentido de riqueza, embora seja dez vezes menos rica do que os emaranhados de grama ao lado dela; de sua delicadeza, embora seja mil vezes menos delicada; de sua admirabilidade, embora um milhão de vezes menos admirável; resulta da nossa consciência de que é obra do pobre, desajeitado, laborioso homem” (John Ruskin)
Em parte, certos críticos resumem as indicações de Ruskin a uma nostalgia romântica do trabalho dos artesãos, como uma reação à chegada do mundo industrial. Do mesmo modo, que se reduziu o movimento do Arts and Crafts a reconstrução de um imaginário mobiliário longínquo. O que nos faz compreender a real novidade dos conceitos é situar o campo problemático ao qual os postulados de Ruskin e posteriormente de Morris vão responder.
Por conta de certo classicismo desenvolvido pelo mundo romântico de Goethe à Hegel, haviam associado a perfeição grega à liberdade de um povo que desconhecia as separações e a servidão da divisão do trabalho. Para Ruskin e Morris, essa perspectiva estava incorreta, pois fazia desaparecer o elemento mais humano das obras, isto é, o trabalho dos artesãos; esse elo entre liberdade e classicismo estava desfeito.
Portanto, Ruskin propõe algo que desafia o desinteresse ligado aos preceitos kantianos do belo. A oposição entre o útil e o belo reforça essa hierarquia, e é justamente isso que a ideia de Ruskin e Morris vai contradizer, não há oposição entre o belo e o útil, e portanto, o gótico pode ser revisto como a partir de duas leis, a adaptação a um fim funcional e a livre expressão da imaginação. Afinal, há de se intencionar nos ornamentos o belo (interessado), onde se exercita a livre imaginação.
III
A retomada do gótico, em especial, ocorre por questões culturais, visto que na Inglaterra retomada dos contos de cavalaria por Sir Walter Scott deram maior visibilidade aos quadros do pré-rafaelismo. Estes remontam aos contos arturianos e lógica da cavalaria; assim como traziam à tona o funcionamento das guildas dos artesãos que acentua o caráter comunal da produção artística.
Outro ponto em particular, que une Ruskin à Pugin — que trabalha o neogótico como retorno a uma cristandade perdida — é a necessidade do espaço interior guiar a estrutura, e não sua aparência externa, nesse sentido é digno de nota que o que lhes importava não era propriamente a beleza da obra na cidade, mas o seu poder decorativo interior, ligado à moradia e ao espaço de ócio e descanso dos homens perante ao mundo industrial.
É interessante mostrar como as diferenças culturais vão dando uma vazão distinta para diversos países entrarem na mesma lógica do Arts and Crafts. Nos Estados Unidos, onde não havia um passado de castelos e catedrais, o estilo se desenvolveu com o mesmo espírito romântico anti-industrial, inspirados pela literatura de Thoreau, Whitman e Emerson. Mas criando a influência da arquitetura dos Shakers.
No Brasil, as ideias — fora de lugar — chegaram posteriormente, com o português Raul Lino e seu livro A Nossa Casa — Apontamentos sobre o Bom Gosto na Construção das Casas Simples. Essa foi uma influência decisiva para Lúcio Costa que vivia entre o neocolonial e o modernismo.
“Acho indispensável que os nossos arquitetos deixem a escola, conhecendo perfeitamente nossa arquitetura da época colonial — não com o intuito de transposição ridícula dos seus motivos, não de mandar fazer falsos móveis de jacarandá (os verdadeiros são lindos) — mas, de aprender as boas lições que ela nos dá de simplicidade perfeita, adaptação ao meio e à função, e consequente beleza” (Lúcio Costa)
Deste modo, as ideias de Morris que marcam todo o movimento são a de uma renovação e desalienação perante ao mundo hodierno. “O homem necessita que a morada habitada após o tempo dedicado ao trabalho lhe ofereça não somente um abrigo, mas também o sentimento da própria vida em ação, feliz consigo mesma. É por isso que necessita que os cômodos destinados à vida comum sejam ornamentados.” (p. 160)
O ornamento aqui não servirá para esconder o mundo real, mas para tornar os espaços do comum, em especial as casas, praças e espaços de convivência de fato vivos. É só pensar na Casa Standen, construída por Philip Webb, onde o acesso ao espaço de moradia fica rodeado pelo celeiro, a casa de energia e o jardim, assim como a cozinha é a primeira coisa que se vê, para tornar visível a existência do trabalho doméstico e acopla-lá ao aspecto de aconchego.
“Decerto, a arte gótica é uma arte essencialmente imperfeita: feita de partes que raramente são simétricas, com frequência acrescidas ao longo da construção sem que se leve em conta o plano inicial, ornamentada com uma multidão de pequenas figuras ingênuas ou grotescas, executadas por artesãos desiguais no talento, mas igualmente desejosos de deixar sua marca, como o escultor do minúsculo duende perdido em um interstício acima da Porta dos Livreiros da Catedral de Rouen. Essa imperfeição pode ser descrita nos termos clássicos de um desacordo entre habilidades ” (pp. 161–162)
Os românticos, por sua necessidade da hierarquia social, construíam certos dilemas que Ruskin busca superar. Por exemplo, quando foi afirmado que Homero poderia ser um coletivo de autores anônimos, que simplesmente destituíram o ideal de gênio e individual de certos preceitos românticos, Hegel prontamente afirma que ainda assim há a necessidade de um sujeito singular; para Ruskin as obras góticas já demonstravam a puerilidade desse pensamento.
A era Vitoriana vivia com medo do caos, visto os movimentos revolucionários na Europa, assim como a grande industrialização; a literatura de Dickens conseguia trazer com seu realismo popular todo o grotesco desta época. Esse grotesco e imperfeito que assumia em Ruskin um aspecto de naturalismo, é a imperfeição do gótico que lhe animava como leitura ideal do seu tempo.
Morris acende o aspecto mais incisivo contra o mundo moderno, pois ele acreditava que essa mudança poderia trazer de fato uma nova forma de se relacionar com a vida. Mas é certo que não se pode controlar para onde vão suas influências, nesse sentido, com o passar dos anos sua estética virou o idioma da vida burguesa. Com a chegada da Primeira Guerra Mundial, o aspecto gótico e medieval foi se esvaindo por um aspecto mais rural, em que se estabelecia uma relação forte com a literatura de Thomas Hardy e John Masefield; e a música de Vaughn Williams e Elgar.
Do mesmo modo, na França e na Áustria, deu-se a origem ao Art Nouveau que se apaixonava pelas curvas e pela influência da arte decorativa japonesa; em que se perdeu o poder artesanal e até mesmo o caráter mais regional que foi alçado por Ruskin e Morris. Se algumas características marcantes do movimento se perdiam, algo permaneceu corrente em diversos outros movimentos, inclusive no Art Nouveau, isto é, a dualidade entre o funcional e o ornamental, assim como a necessidade de mudar o mundo pela forma de habitação. O que este movimento produz é justamente a possibilidade de aderir à industrialização (ou ao tecnológico) para produzir algo belo.
É nesse sentido que Rancière diz que “o destino moderno das artes decorativas se decide em torno desse suplemento expressivo”. A modernidade aceitou de antemão o preceito funcional, ainda mais radicalizado, porém o lugar expressivo, propriamente grotesco se torna problemático, assim cria-se uma linha evolutiva que vai do Arts and Crafts e Art Déco ao Bauhaus e Esprit Nouveau; do expressivo à pura linha. Mas essa oposição ainda é problemática, demasiada simples.
“O ideal de arte decorativa pode então rejeitar o vetor ruskiniano ao uso da máquina e à distinção dos materiais, uma vez que estas são úteis à concepção ruskiniana de uma arte comandada pela união entre utilidade e expressividade. Roger Marx leva essa concepção ao extremo ao exacerbar o caráter criativo dos artistas decorativos: estes se tornam os artistas por excelência, por nada dever ao gênero que praticam e tudo à sua própria invenção. Qualquer móvel ou bibelô de salão se torna, então, um poema, e a igualdade de todas as artes corre o risco de se traduzir na sobrecarga expressiva de qualquer objeto de uso.” (p. 167)
Deste modo, o neogótico escapa a de ser um modismo, pelo simples fato de que com Ruskin e Morris ganha propostas de fato estéticas (o que com Pugin se tornaria apenas uma propaganda cristã), que abrem espaço para tudo que viria a ser o modernismo. Assim, sua modernidade se encontra nos problemas que ela suscita, ao retomar o paradigma gótico, a articulação funcional e ornamental, a reação ao mundo moderno e a necessidade da arte provocar uma mudança na forma que habitamos o mundo.
IV
Eis que surge o nome de Peter Behrens, o designer que fará todo ideal ruskiniano entrar no mundo industrial. O Werkbund, grupo de Behrens, aceita a expressividade das máquinas, mas rejeita de imediato as ondulações, as linhas orgânicas próprias do Arts and Crafts.
Mas essa rejeição não chega sem construir novas antinomias, pois em suas construções o que há de se demonstrar é de certo uma nova forma de se relacionar esses dois opostos, como comenta Rancière “a simplificação de formas e procedimentos que normalmente associamos ao reino da máquina aí se encontra, ao contrário, relacionada à arte, a única a ser capaz de espiritualizar o trabalho industrial e a vida comum. ” (p 174).
É preciso de tudo reconhecer que todos esses movimentos possuíam esse senso de comunidade por vir, isto é a uma missão, um preceito ético para arte, na qual esta devia educar a humanidade de algum modo, na formação de uma paideia. Mas não confundam aqui a eticidade pedagógica dos gregos, baseada na arqui-semelhança, com a ética moderna, de um Rimbaud e um Mallarmé.
Inclusive, Rancière, em O Destino das Imagens, articula a relação que há no estilo moderno de Mallarmé e o de Peter Behrens, algo que pode soar ultrajante. Afinal, como misturar a obra de um poeta com um artesão industrial? Porém, a ideia de arte que ele impõe a suas obras, é justamente a possibilidade de uma montagem, de articular um símbolo (isto é um objeto, um lugar, um espaço) que abra vazão para a verdadeira vida. O que esses movimentos modernos realizaram foi, a partir do que fazer em relação ao elemento de expressão, dar fim às hierarquias das artes.
O que essa reconstrução histórica nos fornece é a possibilidade de encontrar tanto a dialética de opostos tão caros ao modernismo, como também fornecer uma leitura uma génese de um problema estético dentro do campo de sua práxis.
V
Quando escrevi este texto, acredito que no início do ano de 2022, tinha muitas linhas de pensamento se cruzando por este problema “o destino do elemento expressivo”. Ao que me parece, este não era um ponto único das artes decorativas, mas das artes como um todo.
O intuito seria poder visualizar essa questão desenvolvida nas artes como um todo, no teatro, literatura, cinema, e por aí em diante. Localizar essa cisão ou o ponto de identificação da cesura em seu estado incipiente; e buscar as linhas desenvolvidas através deste ponto.
Isso seria um projeto enorme. É certo que essa foi apenas uma reflexão ainda muito precária, muito simplória, mas me deixou com essa coceira que posteriormente voltarei a coçar. Foram reflexões derivadas da leitura do Aisthesis e do O Destino das Imagens (de onde vem quase todas citações do Rancière), assim como do ótimo artigo de Maria Lúcia Bressan Prinheiro Repercussões dos Arts & Crafts no Brasil: O encontro entre Raul Lino e Lucio Costa, 1935 (2021) [ainda devo citar aqui o livro Arts & Crafts Style de Isabelle Anscombe, que me ajudou a adentrar mais na cultura que formou o movimento e os seus efeitos].
Com o tempo pude ler outras obras sobre a questão da autonomia estética; que ampliaram e o complexificaram a visão deste problema. Portanto, é bem provável que a linha de raciocíonio seja toda revisada, mas que o ponto de cesura permaneça como foco e a conexão deste problema com o conceito de tecnologia do encantamento (como possível fundamento das obras de arte em geral).
Há ainda outro fator curioso. Muitos dessas obras ficam na linha tênue entre um revival histórico (nostálgico) com algo realmente distinto ou mesmo crítico. Não é à toa que Lúcio Costa em sua fase inicial lembrava mais o estilo neocolonial que propriamente algo moderno, ou como essas obras foram absorvidas pelo gosto burguês em seu teor nostálgico e romântico de fato. É aqui que me interessa a leitura de Rancière da novidade da tradição e da perspectiva do Merquior de tradição moderna; e como especialmente os erros destas são considerados résquicos românticos.
Assim, uma outra coisa que me interessa é adentrar a partir daí na discussão do kitsch ou ainda do tal middlebrown, o terror do jugenstill que Adorno tinha, como há essa apropriação, o que realmente ocorre?