Sutil e vulgar

Ghosts Without Machines
12 min readOct 6, 2024

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“I made that sign. That way I never allow myself to write one sentence that I would be ashamed to show to my great friend, Ernst Lubitsch.”

Quando assisti One, Two, Three (1961) do Billy Wilder imaginava que esta era uma boa peça de propaganda anticomunista, tanto no sentido de atingir em cheio seu alvo, demonstrando a corrupção do Estado Burocrático soviético, assim como a árdua transformação de Otto em um dia, de jovem revolucionário para o mais tradicional business man.

Contudo, ao mesmo tempo era possível, por trás da velocidade absurda com que James Cagney corre suas falas, perceber uma crítica mordaz à subjetividade do nosso protagonista. É como o Wilder diz “eu amo irritar todo mundo.” Eis que você percebe que quanto mais o nosso protagonista avança ao seu posto de sucesso, mais duas coisas acontecem. A primeira é que mais e mais os traços nazifascistas da Alemanha Ocidental começam a convir com seu pragmatismo; do mesmo modo que quanto mais chega no seu objetivo, mais ele perde o seu sentido.

Parece que há um certo desmanchar desses personagens, aqui perdidos na velocidade da trama. Em conjunto deste filme, gostaria de tratar também de outros dois filmes seus que também não obtiveram êxito diante do público e de certo modo da fortuna crítica também, mas que possuem pequenas revelações curiosas.

I

One, Two, Three (1961) parte do pressuposto de fazer um filme veloz, talvez o mais veloz. Não é à toa a presença ilustre de Cagney, um dos atores mestres dos anos 30 e 40. O filme possui uma certa velocidade de falas que nos faz lembrar as screwball comedies, em especial His Friday Girl (1941) de Hawks. C.R. MacNamara é o diretor da Coca-Cola na Alemanha Ocidental e possui planos para realizar acordo com a Alemanha Oriental para abrir suas fábricas e vendas em território socialista, porém, como um bom business man, ele é multitask. Portanto, no meio disso, precisa lidar com um caso extra-conjugal, com sua família e com a linha principal narrativa deste filme, que é cuidar da filha de seu chefe por um período de tempo.

Esse tipo de situação é propícia aos filmes de Wilder, um personagem que deve encontrar-se numa situação complicada devido às relações formais que possui, seja com o trabalho, seja com o matrimônio. Quando a rebelde Scarlett chega, é claro que ela irá ter um caso com um homem do outro lado do muro (deve se dizer que o filme iniciou suas filmagens quando o muro sequer existia e a essa possibilidade de trânsito na fronteira era mais comum, mesmo que regulada).

Em certo sentido, toda narrativa do filme se desenvolve como uma tentativa de resolver o problema dessa relação por parte de MacNamara. Contudo, chega um momento que a velocidade com que as coisas acontecem e se realizam é tamanha que os objetivos começam a se confundir. É quando o protagonista pronuncia a frase título que o mundo começa a correr desesperadamente, mas também é quando se percebe melhor o problema do seu comportamento.

“Um, dois, três” como o comando de uma marcha. Quando Otto, o jovem revolucionário, reproduz a fala “um, dois, três”, bem entende-se como encontra-se corroído o universo destes personagens. Não sei com precisão qual crítica Wilder quis realizar, mas definitivamente, me parece que pela repetição desta fala e a forma com que ela coaduna no fim do filme com os resquícios do nazifascismo dos trabalhadores apresentados no filme, que critica um comportamento generalizado da intrumentalização dos humanos.

Se no fim MacNamara consegue jogar tudo para os ares para retomar seu casamento, como se tivesse conseguido passar como uma doença para o jovem Otto sua celeridade capitalista, a piada final com a Pepsi nada mais é que uma possibilidade de mudança. Wilder não me parece plenamente um cínico, um mestre do niilismo. Mesmo que enxergue o mundo completamente corroído, ele parece encontrar possibilidades não só nos nossos risos, mas na forma com que seus personagens podem se desmanchar.

Um fato curioso ainda sobre este filme. Quando foi exibido o filme iniciou com um discurso de James Cagney com a seguiente peça de propaganda:

On Sunday, August 13th, 1961, the eyes of America were on the nation’s capital, where Roger Maris was hitting home runs №44 and 45 against the Senators. On that same day, without any warning, the East German Communists sealed off the border between East and West Berlin. I only mention this to show the kind of people we’re dealing with — real shifty.

II

Kiss Me, Stupid (1963) esperava contar com a presença de Peter Sellers, que ao que tudo indica iniciou as gravações do filme, mas não pôde continuar devido aos problemas no coração. O Rat Waltson o substitui com toda competência possível, mas não deixa-se de sentir que Sellers transformaria esse personagem em algo ainda mais visualmente engraçado. Neste filme, Wilder coloca seus olhos sobre uma cidadezinha americana e diante da hipocrisia desse universo, de certo, o que propõe aqui é mais direto. O inesperado é em alguma medida ser um comentário ao casamento que nos lembra o que Kubrick irá realiza em 1999 com De Olhos Bem Fechados.

De um lado, Dean Martin chega à cidade pequena, uma estrela do show business (sempre há algum negócio envolvido), do outro, Orville é um professor de piano, que compõe pequeas canções e é casado com a mais bela mulher desta cidade. Isto o torna comicamente ciumento, já sabemos o que esse encontro irá causar. Mas como de praxe, estes personagens de Wilder caminham por estradas tortuosas.

Ele e seu amigo armam um plano para que o famoso cantor fique em sua casa para que possa lhe apresentar algumas canções, mas com o receio dele capturar sua esposa, cria uma briga falsa para que ela vá embora e a substitui por uma prostituta do bar imoral das redondezas. Esse filme causou certo alvorço na época, foi considerado demasiadamente vulgar, foi pedido que cenas fossem censuradas.

Apesar das personagens femininas estarem neste pressuposto narrativo como meras peças no jogo de disfarce masculino, a maior força do filme surge justamente com elas. De um lado, Polly the Pistol, que vive por pelo menos uma noite uma certa vida dos sonhos que nunca pôde ter. Vive numa casa pacata, tem um companheiro que a ama de fato. A forma com que Wilder filma seu encantamento por esta vida de casada que não pertencia ao seu destino é singela, no meio de toda vulgaridade da situação. Do outro lado, Zelda, a real esposa do protagonista, diante do sentimento de rejeição acaba embebedando-se e vai parar no trailer da própria prostitua, numa ironia do destino ela encontra-se com o Dean Martin, de uma maneira ou de outra.

Há uma beleza em como essa narrativa acaba por realizar aquilo que a tragédia edipiana faz tão bem: realizar a profecia mesmo contra toda expectativa. Há uma espécie de revelação quando, no fim do filme, quando Dean Martin canta a canção de Orville na TV, enquanto Polly vai embora com um carro e Zelda diz a frase do título do filme. A cena parece sedimentar a hipocrisia desse pequeno e pacato universo.

Há uma linha narrativa anedótica sobre como a moralidade da cidade encontrava-se irritada com o bar de prostitutas, é como se nessa última fala houvesse tanto a autoconsciência da hipocrisia de todos os seus personagens, mas também a realização do círculo operado por essa narrativa. Ela sugere um efeito semelhante do “Fuck” em De olhos bem fechados. Claro, sem o mesmo místerio, mas está incutida aqui uma espécie de mapeamento do ritual do casamento e a quase necessidade de seu contrário para sua existência. Desmancha-se o homem ciumento e pacato, desmancham-se quem esses personagens eram.

É numa aproximação de certo obtuso que a frase é dita. Se tem algo que Wilder aprendeu com Lubitsch é fazer uma única fala carregar muitos sentidos e sentimentos, às vezes por acumulação, às vezes pelo tempo exato que ela é dita, aqui a frase vem carregada com a comicidade deste movimento de câmera.

III

“Frankly, I regard it as a compliment. Who the hell wants to be in touch with these time”

Muitos considereram este seu filme como áquem ao seu tempo. Estamos falando dos anos 70, um tal de novo cinema americano surgia, os chistes elaborados e talhados com marfim de Wilder já não interessavam tanto; nem mesmo aquilo que podia ser vulgar nos anos 50 e 60 parecia agora afetar tanto todos aqueles que o assistiam.

Armbruster Jr. vai à Itália para enterrar seu pai que morreu num acidente. Há dois movimentos que são operados de maneira muito precisa pela narrativa do filme. De um lado, é a história de como esse corpo ganha valores e conotações diferentes, um corpo como esse exige tratos distintos, algo bem notado pela crítica de Pascal Kané na Cahiers; do outro, é a história desse business man a se desmanchar.

A princípio, a situação é tratada como um grande empecilho para Armbruster Jr., afinal teve que deixar seu jogo de golfe às pressas, do mesmo modo, quer resolver a situação com velocidade e fazer um grande enterro para as fábricas da família. De empecilho à propaganda. Contudo, um mecanismo tão potente como um morto passa por uma série de burocracias para chegar da Itália aos EUA. É aí que o Carlucci se torna um personagem hilário com todas as tramoias corruptas que relata para se adquirir a possibilidade de viajar com estes corpos.

O ponto de partida do filme é que não é só um corpo. Seu pai tinha um caso e a filha dessa amante, Pamela, também está resolvendo as pendências do funeral. Mas ela vê tudo de outro modo, ela se encanta pelo amor que sua mãe pôde viver, se encanta pelo universo que permitiu isto. Para ela, portanto, os corpos são de fato histórias ainda vívidas.

Então, enquanto os corpos tornam-se objetos de barganhas infindáveis, da burocracia, dos problemas políticos e econômicos, Armbruster Jr. vê-se desmanchado aos poucos, sendo guiado pelo sonho romântico vivido outrora.

Muitos irão dizer, como o McBride, que Wilder passa a ter um estilo mais arrojado com a progressão de sua carreira, em especial neste seu último período. Prefiro não entrar aqui na discussão do estilo tardio. Mas ele realmente permite que a construção da cena se faça com uma delicadeza rara. Um homem larga no mar seus últimos resquícios do universo que está sob ataque em cada filme citado. Acho singelo que é escutando e descobrindo uma história que seu pai nunca revelou que o protagonista consegue descobrir algo, como o próprio Wilder talvez tenha se sentindo ao percebe-se sendo esquecido pela indústria.

A crítica do Pascal Kané é recheada de pontuações pertinentes acerca do lugar do ideológico no cinema, e como esse filme lida com ele, de certo, o que há de mais importante é que ao repetirmos uma história clássica como essa (assim como os personagens a repetem) existe uma consciência sobre os mecanismos em volta da história de amor, dos mecanismos por trás da propaganda anti-comunista, dos mecanismos atrás do casamento. O filme, como os antecedentes, usa sua frase título mais uma vez, como uma permissão para essa mudança, para essa revelação.

Permesso?

Avanti

IV

“O que eu defendo é a ditadura do implacável das opiniões. Ninguém mais deveria ser mentalmente constrangido a reconhecer as inegáveis virtudes de um amigo cuja mera aparição causa dor de barriga. Pense na sua saúde! Vamos voltar aos bons, irrefutáveis, frescos palavrões que nosso povo tem ricamente ao seu dispor. Que se dane a palavra que está na ponta da língua. Tudo menos a objetividade!”

É muito mais fácil falar do tom de seus filmes, dos seus motivos narrativos. Advindo do jornalismo, sendo um cronista detalhista e atento ao seu universo, não impressiona a tendência de seu cinema a tratar de questões por vezes consideradas vulgares. Sempre lhe interessou a possibilidade de dizer algo que por toda a complexidade do mundo não seria permitido; aqui ele está no fundo, sendo contra o inefável que a polidez nos trás.

Contudo, rara são às vezes que se lembra de falar da forma nos filmes de Wilder. Não à toa por vezes ele parecia desinteressado acerca dela, se atendo à fama de escritor. Afinal, como jornalista ele sempre foi um homem do texto. Joseph McBride, em seu livro dedicado à vida e obra do diretor, argumenta que seu estilo era elegante e funcional, evitando efeitos brutos. Seu estilo está mais ligado a presença constante do ator e foi se tornando mais visualmente instigante com o passar da carreira, chegando a deixar-se por levar completamente pelo espaço de um filme como Avanti! (1972).

Uma coisa que impressiona em Wilder é um controle éximo com o todo do filme, é certo que podemos pensar isto como mero efeito de um roteiro bem escrito, redondo, com a perfeita amarração que visualizamos tão bem nas frases-título de cada filme. Mas como o próprio Lubitsch ao tentar descrever o que seria o seu famoso “Lubitsch’s touch”, ele aponta para a obrigação de se ter o filme como um todo na mente quando se grava cada cena. Wilder parece que faz o filme evoluir com essa precisão e lucidez, é por isso que se encaixam e que uma mesma frase pode ter não só sentidos novos, mas sensações díspares, até mesmo complexas, mas certeiras, como bem ele queria, sem eufemismo.

One, two, three (1961) e Kiss me, Stupid (1963) são gravados em scope, o que permite uma enorme visibilidade, do qual o cômico deste período usou tão bem. São dois filmes que não possuem uma grande quantidade de locações, o primeiro quase estritamente ocorre no escritório de MacNamara, enquanto o segundo ocorre quase que por completo na casa de Orville.

Mesmo sendo lugares fechados, Wilder prefere filmar os personagens com certa distância, dando a oportunidade para maior movimentação no interior do plano, seja de um lado ao outro, como o caminhar rápido de Cagney de uma ponta a outra de sua sala; ou ainda a profundidade de campo, em que Orville não consegue esquecer da figura de sua mulher. Para um diretor do texto seu humor visual é muito criativo, se ele não é um diretor do quadro, ele é definitivamente um diretor atento a como o seu ator usa o espaço enquadrado.

Avanti! não possui um quadro tão alongado, mesmo que seja widescreen, mas novamente, ele permite, por não nos prender no close-up, por apenas usá-lo para atingir os pontos certos, observar em como cada personagem gesticula, anda e ocupa o espaço ao seu redor. Criando em suas cenas novos sentidos e sensações. A cena de reconhecimento dos corpos, por exemplo, que vai da grande distância solene à comicidade da burocracia. Se seu texto nos faz revelar esse caráter mordaz, seu olhar é sutil, o que não quer dizer amaciar a potência e força com que ele quer nos atingir. Portanto, um texto vulgar para um estilo sutil.

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