Sobre filmes vistos em Março, 2021

Ghosts Without Machines
18 min readApr 2, 2021

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O Príncipe das Sombras (1987) John Carpenter

Março é um mês que me parece comparável à Terça-Feira, fica ali em lugar nenhum. Talvez seja o mal do número três, sempre meio estranho, meio deslocado. Assisti esse mês menos filmes, mas também menos filmes bons, talvez tenha sido minha incursão pelo cinema do ano de 2020.

Farei um pequeno comentário sobre o problema de alguns dos filmes que assisti deste ano. É bom salientar que só comento nesse balanço mensal os filmes que gostei bastante, tudo aquilo que gostei pouco, ou não gostei deixo de fora, mas dessa vez quero fazer esse breve comentário, que talvez já sirva de preâmbulo para um texto futuro sobre o cinema do “agora”.

Terror

O Príncipe das Sombras (1987) John Carpenter

Carpenter me parece ser genioso com a progressão da narrativa. Seus filmes andam em linha reta e afunilam os grupos à condição do cerco, encurralados, diante de uma figura do incompreensível. Em O Príncipe das Sombras (1987), se toda verborragia dos cientistas e religiosos sobre o que é que há debaixo daquela igreja pode soar um pouco insonsa, não se enganem, em nenhum momento o filme quer usar a ciência como prova da verdade, é justamente o inverso. Aquilo que se apresenta é tão estranho que confunde o que há de mais tecnológico com o mais arcaico das línguas mortas, muito mais que um efeito explicador, é um efeito de ineficácia desses esquemas de compreensão.

Não só a claustrofobia gótica da Igreja nos aprisiona, como o próprio tempo, a figura arcaica do passado que nos assombra, mas também a mensagem do futuro nos avisando: isto vai ocorrer. E nessa guerra cósmica, Carpenter consegue nos fazer sentir o fim do mundo com seu pequeno núcleo no porão de uma Igreja, esse é o poder imediato de sua eficácia de trabalho com a progressão, há o ritmo dos acontecimentos, e há a transformação do espaço.

Não consigo deixar de ver um poder político nessa forma de narrar, há de se pensar que o ato milagroso, o ato que cinde o visível, que põe fim a opressão da história e de seu eminente fim há de acontecer. Concretizar a história é impedir seu fim. É na escolha final de uma personagem que compreendemos isto com precisão, em que ao quebrar de um espelho, há o acesso ao Real, o futuro é outro. Admitir que o impossível existe é o primeiro, e mais importante, passo para a revolução, este é o acontecimento que se articula

É por isso que um filme como este, um longa de terror, que trabalha com a dinâmica do grupo e com a vida íntima das coisas consegue ser mais político que qualquer outros.

A Síndrome Mortal (1996) Dario Argento

A Síndrome Mortal (1996) já foi comentando aqui, apenas reitero sua presença ilustre neste mês.

Ação

Aliens — O Resgate (1986) James Cameron

Se o realismo e a tensão do primeiro filme somem aqui, não é por desconsideração ao que foi feito. Cameron, em Aliens — O Resgate (1986), assumiu a ação (mais que a tensão) para fazer o seu filme sobre a guerra do Vietnã. Em que militares vão a um planeta colonizado para resolver uma situação, mas se deparam com uma guerra que não podem ganhar. É certo que se esse é o pressuposto do longa, é de muito interesse como o aspecto de poder de fogo e mesmo da tecnologia, parece menos arrojado e poderoso. Mesmo com armas poderosas em grande parte do filme elas são inúteis.

A grande utilidade para a sobrevivência, muito mais do que para a vitória, é a confiança. Ripley confia na garotinha, que por viver nessa selva futurista compreende melhor o que há de se acontecer, do mesmo modo a confiança que é preciso construir com um androide. Há nessa personagem um grande senso materno que nos parece inexplicável, mas diga-se de passagem não é à toa o espelhamento feito com o Alien materno, gigantesco, que para defender sua prole quer destruir tudo. Cameron realiza aqui, portanto, um cinema do encontro com Outro e do encontro consigo mesmo, o horror e a paixão, a aventura.

Rambo — First Blood (1982) Ted Kotcheff

John Rambo é um homem traumatizado. Eu não sei bem o que aconteceu com as sequências Rambo — First Blood (1982), e como ela se tornou essa peça publicitária de um republicanismo que não aceitou a derrota nas guerras. Mas talvez, junto com O Franco Atirador (1978) de Cimino, este seja um dos melhores filmes sobre o trauma americano da guerra do Vietnã. Desde o primeiro encontro que revela que seu amigo está morto, até a captura absurda da polícia por ele, compreendemos o quão marginal ele é considerado nesse universo.

Herói de guerra? De uma guerra perdida? Como se é herói após uma derrota? Após perder tudo, ainda há algo? Nesse sentido, quando Rambo ativa sua selvageria ao ser incitado aos policiais em suas torturas cotidianas, ele de fato se entrega às florestas, veste-se como um monge franciscano, e evita o máximo que pode matar qualquer um dos que o persegue. Acaba sendo perspicaz como a floresta americana se torna o próprio Vietnã, no sentido de que é certo americanismo que propõe a guerra, e aquele atacado deve se defender.

Clássico

Rocky — Um Lutador (1976) John G. Avildsen

A jornada de um protagonista deslocado da comunidade, imersa em sua sujeira. Ele aprende a conviver com ela, com esta sujeira. Os treinos de Rocky — Um Lutador (1976) mais do que um tratado sobre “motivação”, como bem lhe serve a essa ideologia, é um retrato da articulação de um sujeito com a comunidade. O espaço aberto das ruas, que se alongam, enquanto ele caminha sozinho pelas calçadas expressa isso. Podemos dizer que essas ruas são comuns no cinema americano dos anos 70, mas o deslocamento preciso de Rocky é poderoso, justamente pela forma com que o filme o faz se reconciliar com a comunidade a partir de uma farsa.

Toda a partida de boxe é uma farsa. Adorável Vagabundo (1942) de Frank Capra me veio à mente, quando uma farsa acaba servindo de trampolim para aquele que deveria ser apenas uma peça no espetáculo da estrela. Creed como Ali é uma figura incômoda para a classe conservadora americana, mas aqui ele parece querer jogar esse jogo do espetáculo, confirmar o americanismo aos americanos. Se a simpatia da simplicidade de Rocky nos faz torcer para ele derrotar Creed em toda sua extravagância, é justamente pela contraposição de duas Américas. Os americanos brancos de classe baixa (imigrantes quer queira, quer não), e uma classe que acabou de ascender, representada por Creed, um homem negro que gera uma posição ambígua para os americanos.

Cada vez mais raro filmes tão abertos em todas os anseios da população americana. A tensão racial, a de classe e o teor do espetáculo farsesco que opera a vitória do sujeito sobre o território.

Sócios no Amor (1933) Ernst Lubistch

“Immorality may be fun, but it isn’t fun enough to take the place of one hundred percent virtue and three square meals a day.”

Em Sócios no Amor (1933), primeiro, há o encontro onde opera-se uma inversão. A mulher artista observa os dois homens a dormir, os enquadramentos mudos nos revelam um olhar atento a dois objetos de desejo, a mulher como figura desejante surge aqui. Claro, que logo depois há o inverso, quando os dois homens acordam e por acaso Georgie encosta no tornozelo. Assim, ele captura o encontro dos corpos, a delicadeza dos olhares e dos toques. Depois, há a genialidade da palavra.

Lubistch como cineasta advindo do teatro se adaptou muito bem ao cinema falado, as cenas que uma frase (a citada acima) se repete em quatro contextos diferentes é muito perspicaz porque ele faz um processo de síntese absurda de construção numa frase só. É a partir dessa frase que todo o filme se organiza em quase dois atos inteiros. Sua mudança de contexto nos revela sempre novas informações, novos efeitos, e sustenta o humor pela sua repetição e eficiência. Isto é o jogo de eficácia da dimensão metonímica da linguagem, usada para fazer o sentido deslizar.

É sempre a partir de reorganizações entre frases no diálogo que certas mudanças ocorrem, do “gentlemen’s agreement” ao “well, I’m no gentleman”, tudo está intricado, mas nada disso nos serviria se não houvesse uma grande organização cênica. Há toda uma leveza nos movimentos de câmera até mesmo constantes que o filme opera, principalmente quando reenquadra a cena. Além de trabalhar com todas a insinuações possíveis, seja do “it still rings” da máquina de escrever, ou aquele plano aberto, em que Gilda fuma sozinha ao lado da folhagem, em que o corte não só diz o contrário, mas nos revela emocionalmente sua presença.

Se a imoralidade não nos dá três refeições ao dia, ou a virtude, os personagens se perguntam o que importa tudo isso se não se pode ser sincero com seus sentimentos. A imoralidade aqui é uma sinceridade. Contra toda essa pompa que aos poucos eles vão adquirindo. Se em algum momento o longa nos parece jogar também com a expressão “por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher”, ele revela a própria loucura disso, a grande mulher Gilda não só revela o melhor destes homens que estão ao se redor, mas revela que a felicidade só pode ser alcançada com a sinceridade.

Meu Tio (1958) Jacques Tati

Há de se dizer o óbvio toda vez que se assiste um filme do Tati. Afinal, é aquilo que torna seu cinema particularmente estranho, é onde ele parece dar um passo à frente no burlesco. Isto é o seu filme sinfonia, seu filme em que o espaço é protagonista, suas articulações, em que todos os seus personagens parecem até mesmo estranhos figurantes a se perderem nas linhas e cortes dos cenários.

O cenário de Meu Tio (1958) é uma casa modernista, com seus eletrodomésticos que surpreendem por seu mal funcionamento, ou sua estranheza. O tio e o seu sobrinho alcançam uma aliança sem palavras, pois se sentem expulsos num universo que não faz sentido para eles, enquanto todos os outros vivem presos. Na esteira de Keaton, o mundo das coisas se anima, como uma máquina, e funciona sozinho, mas há uma diferença iminente é que o mundo de Tati parece aberto com sua absurda profundidade de campo, seu apreço a assistir o tempo e a música se desenrolaram ao filmar o espaço vazio, a espera da alteração mínima.

Não é à toa que consiga nos emocionar com uma cena tão breve quanto a última, a liberdade dos pequenos cachorros ao se desenrolarem das cortinas em nossa visão. Onde este cão doméstico pode fugir da loucura com os vira-latas

Alguns Diretores

Eu vi alguns filmes de dois diretores que gostei muito. Agnès Varda, a precursora da Nouvelle Vague, e John Cassavetes, o precursor do cinema independente americano. O que os dois têm em comum é justamente a mistura de seus estilos com uma espécie de documental.

Mas Varda usa isso de maneira mais lúdica, principalmente por que brinca com a forma e composições até mesmo rigorosas. Já Cassavetes faz um cinema de ator, em que a câmera absorve todo um fluxo de movimentos e reações, é um estilo mais paradoxal que consegue unir perfeitamente o cru com o mágico.

La Point Courte (1955) Angès Varda

O primeiro longa de Varda, La Pointe Courte (1955) é justamente um filme híbrido, entre o documentário e a ficção. Por vezes parece que as duas não se encontram, a história da cidade, dos idosos, da pesca, com a história do casal em decadência passeando por esse ambiente agridoce. Ainda não há aqui a leveza com que seus personagens irão se expressar, mas já temos o grande gesto de seu cinema. O vaguear pelo ambiente aberto, seja a floresta, o campo ou a cidade, ou até mesmo ao redor do mundo, o vaguear é com certeza seu gesto primordial, em que os personagens perdidos, confusos, cheio de sentimentos ambivalentes entram em acordo, ou desacordo com o mundo ou com os outros.

Cléo das 5 às 7 (1962) Agnès Varda

Cléo das 5 às 7 (1962) é um filme que surge carregado pela influência da Nouvelle Vague. Mas talvez seja presunçoso afirmar tal influência, quando o estilo de Varda já estava implicado anos atrás, se Cléo vagueia por Paris como uma flâneur não é porque sente necessidade de se inserir na “nova tendência”, mas é simplesmente pelo fato de que o vaguear é a condição que os personagens foram jogados.

A espera da protagonista em saber o resultado de seu exame, o tempo real passado, o anúncio da cartoamante, tornam impossível de Cléo andar em linha reta, ela se esconde na selva de concreto, se mistura a multidão em sua própria solidão. Varda joga com a forma ao expor um pequeno curta mudo com a presença de Godard, ou no momento musical de Cléo, o filme se abre. Se há uma grande precisão e cuidado com a composição, mas com menos rigidez que o seu primeiro filme, Varda usa justamente para dar abertura ao filme, para que ele mesmo vagueie.

As Duas Faces da Felicidade (1965) Agnès Varda

Mas é em As Duas Faces da Felicidade (1965) que sua composição rigorosa em consonância com seu vaguear intenso ganham talvez uma forma superior. O filme parece se articular por caminhos harmoniosos, a composição simétrica, o colorido bem pontuado. A família feliz que vive entre a existência proletária e o campo com seus sonhos e prazeres, a ingenuidade das crianças que contamina os cuidados nos gestos.

É uma harmonia que chega a ser excessiva. Não como em um Wes Anderson, que o tom blasé e artificial é acentuado (e não digo isso no mal sentido), mas no sentido de que em Varda essa rigorosidade implode. Implode em seus excessos que aos poucos fazem toda essa harmonia ruir, mas não é com um excesso de movimento, de extravagância, nem nada do tipo. Mas é justamente neste vaguear, como uma pequena linha que guia os personagens a se perderem.

Faces (1968) John Cassavetes

Em Faces (1968) Cassavetes retorna ao estilo que o marcou com Sombras (1959). A câmera que corre livre ao redor de seus atores, que captura seus gestos brutos e mais delicados com uma estranha abertura. Se há algo de incômodo nesse aspecto meio cru que se deriva das suas propostas estéticas, também nos revela uma estranha alegria em tudo isso.

Aqui estamos enclausurados em existência íntimas, de um cenário propriamente burguês, onde a alegria, o uso de substâncias, e até os impulsos intuitivos dos personagens nos evocam os gritos contra a clausura. Gena Rowlands é com toda certeza uma atriz poderosa em que sua variação de humor (não digo nem de expressão), parece ser a figura exemplar para todo o longa. A alegria inebriante com as lágrimas surgindo.

Talvez, o diálogo mais articulado do longa, aquele do final, em que o homem salva uma mulher do suicídio, nos revela um projeto de Cassavetes; demonstrar os estranhos mecanicismos dos nossos hábitos, a face, o semblante de tudo isso, e sua construção desconcertante, e os súbitos momentos de paixão, descontrolada.

Maridos (1970) John Cassavetes

O desespero de Faces (1968) que está sempre latente, nos risos e no choro, em Maridos (1970) ele explode com o peso da morte desde seu princípio. Os amigos se deparam com a própria morte quando um membro da trupe morre. Cassavetes não perde tempo construindo uma personalidade, uma pessoa dessa amigo, bastam as fotos em que os quatros estão reunidos já entendemos a proximidade.

Antes de mais nada é preciso dizer que é muito difícil gostar desses personagens num sentido identificatório, são falastrões, irritantes, perturbados, bêbados, desesperados, alegres e cruéis. Eles são como qualquer personagem classe média dos anos 70, porém o que Cassavetes admite neles é justamente uma crueza em seus desesperos por felicidade. É por isso mesmo um de seus filmes mais tristes.

O mais fantástico do cinema dele é conseguir nos aventurar no jogo fugaz dos sentimentos de todo e qualquer personagem. É talvez o maior cinema contra a moral, não porque quer ser transgressivo ou qualquer do tipo, é simplesmente por ser sincero com a aventura sentimental e absurda de seus personagens.

Assim Falou o Amor (1971) John Cassavetes

Assim Falou o Amor (1971) é como uma comédia romântica, dois personagens que a princípio não conseguimos ver como ficariam juntos se encontram, e daí nasce uma história cheia de complexidades. De um lado Minnie, uma mulher que tem relação com um homem casado, mas é infeliz com seus encontros arranjados. Do outro, Moskowitz, que em sua estranha felicidade, está sempre a perder as estribeiras. É como se seu amor em viver transbordasse por seu corpo.

Minnie usa óculos escuros para esconder seus sentimentos, já Moskowitz com seus longos bigodes está a tocar em tudo. A presença dos dois atores contamina toda a as cenas, e como os dois são polos opostos sempre constrói uma tensão.

Com certeza é um filme menos caótico, o que não diminuiu a turbulenta relação deles, os momentos desesperados. Mas também consegue acentuar seu amor pelas nuances, pelos detalhes, pelas contradições, a aventura pelos caos dos sentimentos humanos é justamente possível por amor ou por olhar crítico. Como o de Spinoza, na introdução da terceira parte da Ética:

“A maior parte dos que escreveram sobre os afetos e sobre a forma de viver dos homens, não parecem tratar de coisas naturais que se seguem das leis comuns da natureza, mas de coisas que estão fora da natureza. Eles parecem conceber o homem na natureza como um império dentro de um império. Pois eles creem que o homem parece mais perturbar do que seguir a ordem da natureza, ter uma potência absoluta sobre suas ações e só ser determinado por si mesmo. Eles atribuem a causa da impotência e da inconstância do homem não à potência comum da natureza, mas a não sei qual vício da natureza humana e por isso choram por ela, se riem dela, desdenham-na, ou, mais frequentemente, execram-na.”

Cassavetes contra o império da moral!

2020

O ano pandêmico não foi um ano muito positivo para o cinema. Muitos filmes foram adiados, como também algumas tendências um pouco perniciosas foram evidenciadas, ainda mais agora nos momentos de premiação. Gostaria antes de comentar dos filmes que gostei, apenas explorar os problemas de dois filmes em via transversal. Os 7 de Chiago de Aaron Sorkin e Bela Vingança de Emerald Fennel.

Os dois são filmes de assuntos importante, de um lado uma revolta pública e a repressão do Estado; do outro a cultura de estupro. Se Sorkin opta pelo seu usual “walk and talk” genérico, o lugar comum do cinema americano, onde os personagens falam, falam e falam, mas nunca dizem nada além do mesmo discurso liberal, é porque sua encenação é inebriada por uma crença que a mensagem é o filme.

Já Fennel opta por subverter um subgênero já polêmico, o do rape revenge. Na tentativa de dar um tom feminista, didático e político, para além da catarse trágica habitual, a diretora conseguiu simplesmente retirar toda a impureza do gênero. Não só a protagonista é intocável moralmente, quanto sua narrativa não expõe além do habitual de discursos genéricos de redes sociais.

De um canto, ao outro, me parece que a vontade pela revolta ou do político se esvai na tentativa de ser moralmente correto. O medo da ambiguidade, o modo de produzir personagens ambivalentes, o medo de dizer o que pensa, o medo do medo. Estes filmes jogam a seus espectadores tudo o que eles já sabem, o senso comum do senso comum, com frases retiradas diretamente dos jogos de likes das redes sociais, para que assim a identificação seja rápida e a gratificação narcísica. Todavia, ainda pretendo elaborar algo maior sobre os dois filmes, principalmente sobre este último, como disse, é apenas um preâmbulo.

Cabeça de Nêgo (2020) Déo Cardoso

Em Cabeça de Nêgo (2020) há todo um didatismo que por vezes contamina certos diálogos a soarem muito exagerados, mas em compensação existe um senso de progressão narrativa muito bom. O ritmo que Déo Cardoso impõe a esse filme é impressionante, pois vai do papel na parede, que anuncia o debate e a denúncia, à explosão de uma revolta, sem medo de ir até onde as possibilidades do filme apresentam.

Se o cinema de Spike Lee é invocado muitas vezes para encontrar uma linhagem, visto certo uso lúdico do quadro, eu sinto que aqui o didatismo é invocado numa espécie de cinema de formação. O quadro de cinema se torna por vezes o quadro de um professor, a recontar a história da revolta, o espírito dos Pantera Negra. É um filme que parece agregar com muito mais eficácia o senso de revolta que os atuais indicados ao Oscar que têm a presença concreta destes homens da revolta. Aqui, são adolescentes, a princípio um filme de colegial precário à brasileira, para terminar como dissidentes, ao resistir à tentação de apenas expor falas certinhas ou de impacto, aqui tudo se resolve na ação, mas uma ação que significa tudo, é o filme sobre saber quando não apertar a mão da mediocricidade.

Spy no Tsuma (2020) Kiyoshi Kurosawa

Spy no Stuma (2020) é um filme de guerra aos moldes de Fritz Lang, uma jornada paranoica de espionagem. Mesmo que no fundo não haja nenhum espião concreto. Satoko se vê torcida entre seus dois companheiros, com qual ela os enxerga como pessoa. Um dele é seu marido, um homem de negócio acima de tudo, e do outro, seu amigo de infância, um homem do estado, militar. No fundo, os dois seguem duas abstrações, novamente, de um lado o certo ideal de universal (que aqui me parece muito ligado a certo liberalismo), do outro um teor nacionalista, a abstração imperial.

Mas é o seu amor ao espião que a guia nessa jornada, mas quem é o espião? Novamente, ela toma na realidade o partido de mais uma abstração a do homem que amava. Nesse jogo de fantasmas, Kuroswa usa de películas antigas para construir um terror. O terror da guerra só aparece aí, no granulado, na luz que estoura. É nesse universo também que há as respostas, as verdades, mas é por ele mesmo que descobrimos a farsa. É certo que o sujeito precisa de uma ficção para seguir em frente, é com ela que perseveramos.

Les Choses qu’on dit, les choses qu’on fait (2020) Emmanuel Mouret

Les Choses qu’on dit, les choses qu’on fait (2020)é o ponto culminante de duas tendências básicas do cinema de Mouret que se encontram aqui em total sintonia. Temos um cinema do relato, em que os personagens constantemente contam histórias uns aos outros, pequenos encontros cotidianos, sonhos aleatórios, aventuras sexuais, ideias ridículas. Não é à toa que todo esse filme se organiza em quatro relatos, sobre desejo, traição e amor. Do mesmo modo, os encontros furtivos do cotidiano, é quando um pequeno acidente muda nosso roteiro, ou quando um filme muda nossa ideia, uma frase, um copo de água, um olhar.

Em 2006, por exemplo, em um de seus primeiros filmes Changement d’addresse, Mouret cria uma narrativa singela sobre um homem e uma mulher que passam a morar juntos, mas que amam outras pessoas. O filme inteiro é uma tentativa de unir o relato dos amores ao aos encontros e absurdos cotidianos. Sendo o ponto crucial que o próprio fato de morarem juntos se dá pelo relato e pelo absurdo.

Changement d’Addresse (2006) Emmanuel Mouret

Não é à toa que a grande cena do filme é o momento que os dois, relatam e encenam como gostariam de estar com seus amados. Pois é na mistura das palavras e das coisas, mas principalmente na força motora do relato que se impulsiona seu humor até meio vulgar sobre o segredo das paixões.

Portanto, em Les Choses qu’on dit, les choses qu’on faitque percebemos o quanto essas duas tendências se condicionam, ou melhor se potencializam. Aqui como em A Arte de Amar(2011), um relato leva ao outro, carregados por uma fluidez narrativa que as entrelaça, mesmo que sejam histórias que envolvam figuras distintas, elas parecem por vezes se encontrar conectadas pelos laços invisíveis da ficção. Assim, é em cada gesto, mas também em cada palavra que o cinema de Mouret cresce, a forma com que a câmera se movimenta em direção ao rosto de seus personagens para captar o momento exato com qual se encantam, se apaixonam, ou que tomam suas decisões.

Se é certo que uma ideia chave do filme é exposta pela ideia de “Desejo Mimético” de René Girard, em que desejamos o que o outro deseja, e por isso, toda história de amor aqui parece ser também a história de uma traição, essa seria uma visão bem imaginária do conceito de desejo em Lacan, por exemplo. Contudo, me parece que cada um desses personagens tem uma espécie de fantasia sobre o amor que eles constroem, e em performances precisas elas ganham corpo.

Seja na cena elementar de seu cinema, os amantes na escuridão a se olhar, ou ainda num jogo de performance no qual não é possível distinguir mais eu e outro, fantasia e realidade, é nesse sentido que acredito que o relato e o acaso cotidiano ao se tornarem um coisa, tornam também a fantasia e a realidade uma só.

Les Choses qu’on dit, les choses qu’on fait (2020) Emmanunel Mouret

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Sócios no Amor (Design for Living, 1933) — Ernst Lubistch

La Pointe Courte (idem, 1955) — Agnès Varda

Meu Tio (Mon Oncle, 1958) — Jacques Tati

Cléo das 5 às 7 (Cléo de 5 à 7, 1962) — Agnès Varda

As Duas Faces da Felicidade (Le Bonheur, 1965) — Agnès Varda

Faces (Idem, 1968) — John Cassavetes

Maridos (Husbands, 1970) — John Cassavetes

Assim Falou o Amor (Minnie and Moskowitz, 1971) — John Cassavetes

Rocky — Um Lutador (Rocky, 1976) — John G. Avildsen

Rambo — First Blood (First Blood, 1982) — Ted Kotcheff

Aliens — O Resgate (Aliens, 1986) — James Cameron

Príncipe das Sombras (Prince of Darkness, 1987) — John Carpenter

A Síndrome Mortal (La Sindrome di Stendhal, 1996) — Dario Argento

Changement d’Addresse (2006) — Emmanuel Mouret

Cabeça de Nêgo (2020) — Déo Cardoso

Spy no Tsuma (2020) — Kiyoshi Kurosawa

Les Choses qu’on dit, les choses qu’on fait (2020) Emmanuel Mouret

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