Sobre filmes vistos em Maio, 2021

Ghosts Without Machines
36 min readJun 14, 2021

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Fuga de Nova York (1981) — John Carpenter

Com a CPI da Pandemia acontecendo, Maio foi um mês ambivalente. Cheio de tristeza e também de alegrias. Valente de forma ambígua, talvez. De qualquer forma me concentrei plenamente na filmografia de alguns diretores: Johnnie To e Tsui Hark, da cidade em chamas que é Hong Kong; e Rogério Sganzerla, o cineasta brasileiro que não só radicalizou a estética como também criou uma musicalidade própria.

Me impressiona a falta de musicalidade no cinema nacional contemporâneo. Aliás, o cinema musical tem se tornado para mim algo muito especial, pela clareza com que expõe as habilidade da mise en scène, como também pela audácia performática de seus atores, Gene Kelly, Fred Astaire e Ginger Rogers.

Musicais

O Picolino (1935) — Mark Sandrich

A história de O Picolino (1935) é mais uma moldura para as performances de Fred Astaire e Ginger Rogers, isto parece notório. Mas é de certo, também inegável, que a figura cômica da confusão de identidades faz com que nossa atenção e antecipação esteja sempre preparada, atiçada e talvez mesmo seduzida. Nada de muito diferente do habitual, mas ao ser complementada pela leveza divina dos pés de Astaire é como se fossem a moldura necessária e ideal. O que mais impressiona nas performances é a leveza com que o corpo de nosso protagonista sapateia — claro, há a cena da sua performance propriamente dita, os sapatos como arma, a leveza não é um som, mas a fisicalidade de um gesto.

Sua leveza é tamanha que com um pouco de areia sapateia para Ginger Rogers dormir, assim como é impossível não comentar da própria leveza de Rogers. A última dança dos dois é com toda certeza um dos momentos que o cinema suspende o tempo, não é à toa dizerem que os musicais aludem a um tempo outro, é esta cena, em que os fios do vestido parecem pesados e criam a aparência de estarem dançando em câmera lenta. A leveza de Rogers para além de estar na forma como performa, está principalmente em seu olhar de encanto.

Sinfonia de Paris (1951) — Vincent Minnelli

O musical sempre aproximou o cinema de um aspecto surreal, por vezes até mesmo dadaísta, um gênero que é o embrulho perfeito para a indústria de Hollywood, mas também se aproxima das vanguardas da arte. É só lembrar do trabalhar excepcional de Bubsy Berkley desde os anos 30. Mas isto não quer dizer que Minnelli nos joga num mundo completamente surreal, assim como não é um mundo industrial qualquer. O primeiro ato, carregado pela alegria contagiante de Gene Kelly e Guétary, com as cores de um Paris que só existe na cabeça destes que a amam profundamente, é a paixão à primeira vista.

A performance das canções “By Strauss” e “I Got Rhythm” são exemplares nesse sentido, nessa alegria contagiante em que Minnelli usa um espaço meio restrito e o preenche com pessoas, as conduz para dentro da canção, com participações ilustres, absurdas e divertidas. É a atenção à todos os elementos que compõe o quadro que criam este aspecto contagiante.

Sinfonia de Paris (1951) — Vincent Minnelli

O desenvolvimento do longa nos traz o melodrama, o mundo impedido dos artistas, a questão essencial para eles é sempre agarrar-se aquilo que há de mais absurdo — o amor; ou realizar seus sonhos de vida em toda sua concretude — o sucesso. É um impasse duplicado. A felicidade, a alegria parecem um pouco ofuscadas por essa tristeza contagiante, também. Há poucas coisas mais bonitas, mas também tristes que o concerto de Adam, o concerto imaginário.

Então, acontece o famoso corte onírico propriamente dito, a fumaça do cigarro de Guétary invade a cena de forma soturna, o movimento da câmera de Minnelli, o vento que reconstrói o desenho. Tudo que se passa nesses 17 minutos é pura performance. Não há aqui recusa do ficcional a favor da pura performance, há mesmo é a síntese avassaladora deste amor ficcional realizado através da performance. É assim que harmonia entre a alegria sonhadora, o melodrama e a intrusão onírica produzem o amor à primeira vista.

Hong Kong

Running on Karma (2003) — Johnnie To e Wai Ka-Fai

O prazer de ver Andy Lau com a falsa vestimenta musculosa em seu corpo como ex-monge que agora é stripper por si só é algo de notável. A premissa deste longa é absurda e contém uma insistência em certa estranheza, que é bem comum aos trabalhos de parceria de To com Wai Ka-Fai. Apesar desse humor, todo o longa possui um senso budista, em que o ex-monge ajuda a investigação de uma policial para a evitar que o destino de seu karma se realize. É como se o fatalismo heroico do diretor retornasse aqui pela via do karma e sua inexorabilidade, que pouco a pouco vai ganhando gravidade. Tudo soa cômico durante o início da investigação, a cada nova descoberta, a cada história do passado que retorna, as situações vão ficando tensas.

Então, entendemos que a estranheza desse falso corpo é justamente uma consequência direta de um passado traumático. Mas não é como se houvesse um corte, é mais uma síntese destes modos apreensão que qualquer outra coisa. É possível dizer que aqui importa mais a possibilidade de se abrir às estruturas de vários gêneros do cinema de Hong Kong e ao mesmo tempo manter um poder sintético do destino, há a comédia, o romance, o policial, o horror, ação, todos enlaçados.

PTU (2003) — Johnnie To

Tudo começa quando duas coisas acontecem um homem é assassinado, uma arma de um policial é roubada. Mas toda a ação fica abstraída no tempo imenso da noite em que os membros da equipe tática da polícia passeiam pelas ruas. Isto nos remete diretamente à Cão Danado(1949) de Akira Kurosawa. Nos filmes de To os personagens só possuem suas identidades na noite com suas armas, é notório a necessidade honrosa — isto é talvez a única explicação para o motivo elusivo com que a equipe resolve a ajudar o policial comum — de recuperar esse objeto perdido que é de alguma forma, a única coisa que pode manter sua presença viva. E nesse processo observámos um jogo em que tanto os mafiosos, quanto os policiais estão realizando suas táticas como uma forma de autopreservação.

A atmosfera que se constrói nesse espaço é a de um mundo fulgido e eterno, esta incongruência parece aumentar a tensão para que o grande tiroteio faça seu poder mítico usual. Quanto finalmente enquadra todos esse grupos num espaço só, povoa o enquadramento de maneira harmônica criando assim a perfeita conexão estrutural entre esses falsos polos, que são os policiais e os bandidos.

Breaking News, Cidade em Alerta (2004) — Johnnie To

A diferença básica entre Johnnie To e Tsui Hark (diretor que comentarei mais abaixo) não reside precisamente na batalha do estático e do movimento, respectivamente. O estilo cinético de Hark é mais expressivo, isto é fato, mas acredito que a diferença está mesmo na condução do movimento, a câmera de To se movimenta bastante, mas tentando ao máximo impedir que suas arestas se descarrilhem ou ainda criando um ambiente de suspensão do tempo. É isso que acontece nos minutos iniciais deste filme que já nos joga no meio da ação, num plano-sequência cuidadoso que nos coloca dentro do movimento, mas se não alcança o frenesi e as dobras (ou ainda o absurdo) da câmera de Hark, é porque ele se mantém numa abstração, isto é, ele captura seus modelos como formas.

Aqui temos um grande jogo performático entre bandidos e policiais, como em PTU (2003) há um igualdade estabelecida pela ação de todos eles ser direcionada ao público, mesmo que não atingido a mesma elegância e atmosfera, esse filme vai mais longe no sentido da igualdade. Toda a sequência no prédio — que parece conversar com uma sequência até similar de O Tempo e a Maré (2000) de Hark — acaba por ser o núcleo da narrativa, seja da performance ou ainda do espelhamento, entrelaçado por todos os momentos de pequenos encontros suspensivos de olhares e diálogos.

Throw Down (2004) — Johnnie To

Homenagem direta à Akira Kurosawa, especificamente à saga de Sanshito Sugata, seus dois filmes sobre judô. Os três personagens que compõem todo o cenário são um dono de um bar, vivendo alcoolizado e apostando dinheiro; um jovem judoca que busca enfrentar esse dono de bar, afinal este é um renomado ex-judoca; e por fim, uma moça que pretende ser cantora e busca um lugar para expor seus talentos.

É muito poderoso como To explora os problemas individuais de cada um desses personagens e ao mesmo tempo mantém uma unidade poderosa desta conjunção, duas cenas em especial revelam este poder com mais força: o trabalho em equipe para roubar o dinheiro de um mafioso num fliperama; e as conversas paralelas no bar que terminam em uma grande pancadaria. É possível dizer, inclusive, que grande parte de seu cinema, principalmente deste período, conseguia manter com precisão o icônico e o cômico em uma harmonia muito singular.

Para além de toda a homenagem ao mestre japonês, To constrói a atmosfera de seu cinema. O que sustenta todo esse filme e o torna destacável perante à toda sua filmografia é como esses três personagens criam um universo vivo que nos captura. Seja o precioso momento em que após fugir com o dinheiro, e deixá-lo perdido por toda a rua, a personagem retorna para buscar o sapato perdido de seu amigo. Todo o longa é um processo para reascender a vida num homem que desistiu dela, muito antes de chegar a seu fim. Talvez seu filme mais otimista, mesmo que se fatalismo costume ser glorioso, aqui ele ganha um tom verdadeiramente de superação.

Eleição (2005) — Johnnie To

Como já disse anteriormente existe uma diferença crucial, uma divisão de espaço que sustenta dois universos opostos. Um mundo dos capangas e o mundo dos mafiosos, raramente esses mundos se misturavam nos filmes de To, a não ser para justamente demonstrar um conflito total. No mundo dos capangas o heroísmo, a fatalidade icônica, o personagem que transborda em seus gestos; no mundos dos mafiosos apenas o mesquinho, o vilanesco, inclusive, as sombras quase que sem imagem. Aqui nesse filme que muitos caracterizam como desmistificação das sociedades de mafiosos de Hong Kong, me parece ser um filme que demonstra em quase sua totalidade a mesma tese.

Não me parece existir uma desmitificação do fatalismo do capanga; isto é possível de se observar na cena em que o recorrente Lam Suet é quase assassinado e não aceita de forma nenhuma entregar o objeto do ritual de passagem da eleição. To parece imergir no mundo dos rituais e dos códigos, no mundo dos chefes que são as entranhas da instituição; sendo o foco nestes personagens o que temos é um universo muito mais podre.

Eleição (2005) — Johnnie To

A meu ver, é confuso propor essa filme como “o real do mundo crime”, ou coisa parecida, principalmente se tratando de To, que logo mais iria realizar Exilados (2006). Mas ainda assim, o sentimento que a parcimônia e o amor cínico ao código destes mafiosos causam um terror absurdo, a última sequência é realização própria de certa violência bestial que ocupa os homens do códigos, completamente destinados a dar ordens e impor os outros a suas leis.

Eleição 2 (2006) — Johnnie To

A continuação direta de seu filme de 2005 consegue ser até mesmo mais assustadora que o anterior. Afinal, fica cada vez mais claro que nesse universo mafioso em que To tenta ao máximo dividir os homens que defendem o código, e os homens que o impõe, há inevitavelmente uma linha que é sim transponível. A última cena do filme passado é quase que reencenada neste longa, em uma de suas primeiras cenas num tom quase que perverso, Lok parece olhar para gente como se afirmasse "você já sabe o que vai acontecer". Contudo, o que de fato faz com que a sequência seja tão boa, ou até melhor que a anterior não é pelo fato de se tornar "maior" ou coisa do tipo, assim como não é pelo fato de repetir certos motivos, como o citado.

Eleição 2 (2006) — Johnnie To

Afinal, o foco em Jimmy (personagem do sempre interessante Louis Koo) é muito proveitoso. Ele continha em sua composição a maior consciência de até onde devia ir, até onde poderia ir, como se tivesse uma noção distanciada do código supostamente saudável. Podemos até argumentar que o amor ao código é mera fachada para realização da meta da nossa formação social: ganhar dinheiro. É difícil dizer o que diferencia Lok de Jimmy. Mas o que os iguala é justamente a consciência distanciada do código, enquanto os heroicos de outrora são aqueles que morrem sob o código (mesmo que seja para subvertê-los, os heróis sempre seguem código metafísicos que ultrapassam o entendimento consciente dos chefes). Ao colocar Lok e Jimmy em contraposição nos demonstra que a tradição, o dinheiro e a consciência se entrelaçam por toda a lógica do filme.

Além disso, acredito que To nos dá uma compreensão geral do funcionamento das instituições, a Tríade, a polícia, e até mesmo o governo chinês, suas relações, suas trocas, suas transformações necessárias para continuarem vivas no mundo do capital. É só no último plano do filme que Jimmy finalmente entende que não se foge dos códigos e dos rituais, alguns são apenas mais fortes que outros, o código da Tríade se dobra ao do capital, e onde não há heróis também não há metafísica possível que resista ao dinheiro.

Exilados (2006) — Johnnie TO

Muitos acusam este de ser o filme maneirista ou o “run for cover” de Johnnie To. Depois de dois filmes complexos no universo dos chefes da máfia, onde a crueldade e a bestialidade são mais que certas, este filme vai ao inverso, do mesmo modo que reedita The Mission (1999). São exatamente os mesmos quatro atores deste filme que reaparecem aqui como um grupo de capangas em revolta com a código dos chefes. É como se o último ato como um todo de The Mission (1999) tivesse se tornado um longa, no qual a camaradagem, e a metafísica do herói fossem levadas ao extremo possível.

Se este é seu filme mais próximo de Leone, acho que é justamente pelo poder da suspensão do tempo ser ainda mais rigorosa, seja no primeiro tiroteio entre amigos, ou ainda, na absurda sequência no médico clandestino. Cada peça em seu lugar, cada espaço ocupado num jogo aberto da mise en scene, se o rigor da construção de suas formas já era poderoso aqui parece ter chegado numa precisão ideal, pois a alcançou a estranha harmonia à dionisíaca felicidade desses homens fatais.

Por isso acredito que a saga da Eleição da Tríade, mais do que ter revelado o “segredo” do horror da máfia, mostrou na realidade o mundo destes chefes bestiais que se comportam de forma diametralmente oposta a dos heróis deste filme, capangas que por desenvolver o laço não cínico com a metafísica deles podem abdicar de todo ouro do mundo em prol de uma verdade da irmandade.

O Pardal (2008) — Johnnie To

Numa entrevista To diz que o que o separa de Takeshi Kitano, diretor que em muito é comparado — afinal, dois cineastas do mundo sentimental dos mafiosos e também de suas violências humanas — é que ele romantiza, Kitano não. A violência no diretor japonês sempre é mais indigesta, menos orquestrada, muito mais como um salto, um susto.

Em To há justamente o balé dos corpos no enquadramento aberto capaz de nos dar a visão de todo um universo abstrato. Ele diz que seu cinema é essencialmente o do espetáculo. Não é à toa que esse é seu filme mais musical e orquestrado, até mais do que Escritório (2015) — que é um musical de fato -, ou ainda Chasing Dream (2019). Aqui os gestos dos batedores de carteira atrelado à hipnotizante trilha sonora faz com que todo o universo deste filme flutue, em seu humor e também em sua tensão. Não é bem um mundo de mafiosos aqui, mas é de uma atmosfera única que traga com prazer cada minúsculo movimento.

Duas coisas fazem com que a arte de roubar carteiras tenha seu poder, a leveza e a atenção. Este é último é notório tanto na captura dos gestos, mas também em saber quando revelar cada fato, como a própria revelação das lâminas. A leveza é, na realidade, a consciência do peso, todos os movimentos de câmera parece nos colocar dentro dessa fluidez que faz os planos seguirem-se com tranquilidade, mas o peso surge quando necessário, a gravidade da cena dos guarda-chuvas só pode ter seu impacto por essa consciência do peso, que coloca em dialética a leveza dos corpos e o peso da chuva.

Vingança (2009) — Johnnie To

To diz que o herói é aquele que sabe fazer a decisão mais sábia no interior do mal e do bem, como que impossíveis de se separar. É isso que caracteriza seus capangas. O encontro de um pai em busca de vingança, francês, e os assassinos de aluguel, chineses, para ser ao acaso, mas é mais uma narrativa do destino fatalista. Costello tem uma aura do passado que realmente acaba se tornando completamente contraditória com o efeito de sua memória. Essa fato abre um buraco terrível, mas que remete a uma operação que já surgiu em seu cinema. Remontar o passado é inevitável e fatal; mas talvez pior ainda seja esquecê-lo.

Em diversos filmes de To, a remontagem do passado é algo de extremamente importância, seja por motivos budistas, quanto por investigações criminais; aqui essa remontagem ela é necessária para que toda a jornada do protagonista não simplesmente se apague. A lua é a guia básica de todo esse problema, pois sua beleza nos faz a perseguir, mas também pode nos cegar. Os heróis desse filme precisam tomar decisões complicadas, mudanças de lado, estratégias inusitadas, como a última decisão que é marcar o objetivo com alvos a partir do idílio familiar, como que por remontar o passado a cada novo tiro.

Life Without Principles (2011) — Johnnie To

A vida sem princípios é um título pertinente. Quando perguntada sobre o motivo que uma personagem planejava matar outra, tudo foi muito simples: dinheiro. Mas á claro que as coisas não são tão simples, os personagens do filme se entrelaçam como que sem querer, numa cadeia interminável da violência própria do dinheiro. Não só o policial e o criminoso se tornam escravos de seus universos, destinados a correr atrás de uma vida que não lhes interessa ou que os perturba, mas a inserção do terceiro elemento, isto é a balconista do banco, torna as coisas mais interessas, afinal ela está em um dos corações de tudo isso.

Suas decisões parecem simples, por vezes parecem como o usual trabalho de qualquer escritório, forçar clientes à certas tendências, a depositar não seu dinheiro, mas seus sonhos numa instituição sem princípios. É isso que as repetidas cenas com ela, falando do discurso ensaiado parece articular. To expõe aqui seu filme mais cru, mas que encadeia com delicadeza ainda assim toda uma série de eventos, que de geral são tomados como acasos, mas pela atenção cuidadosa, e suas idas e vindas, finalmente são percebidos como problemas do mesmo mal.

Romacing in Thin Air (2012) — Johnnie To

Uma das narrativas mais complexas de To, mesmo com sua aparente simplicidade. Afinal, é como se fosse um certo manifesto acerca seus filmes de romance como um todo, uma ode ao poder ficcional de revelar, de curar, de transformar as pessoas. Um pouco como Tarantino fez, posteriormente, em Era uma vez em Hollywood (2019), o cinema e a ficção não só como terapia, mas também como uma resolução direta com traumas. Mas é certo que não basta correções simplórias, cheias de escárnio.

O ar rarefeito da montanha com qual os personagens se encontram os aproximam, não necessariamente a partir de momentos cômicos, como acontecia em Don’t Go Breaking My Heart (2011), mas em um tom melodramático que me surpreendeu. É interessante como todos os filmes de To que giram em torno de romances, ou que não são especialmente de ação, carregam os traços de um filme em que meta é olhar diretamente para nossos traumas. Talvez seja a presença de Wai Ka-Fai. Até os mais cômicos desses filmes, contém esse elemento dramático que amplifica as grandes viradas narrativas.

Guerra às Drogas (2012) — Johnnie To

Com certeza o filme de To mais aberto às relações da China e Hong Kong. É notável que todos os policiais aqui são atores de mainland, enquanto os bandidos são todos atores de Hong Kong, aliás caras marcadas do cinema do diretor. Existe certa depuração aqui do estilo geral de To, é até mesmo peculiar isto, principalmente também pelo fato do grande tiroteio ser à luz do dia, sem o romantismo da noite. Muitos interpretam a falta de sentimento romântico e de seus elementos expressivos como uma espécie de retraimento por medo de perder audiência, ou coisa do tipo; talvez seja, para além disso existe uma ambiguidade mais poderosa nessa narrativa, e que se passou de forma subentendida.

Toda a trama é balanceada pela intensidade em relação aos seus objetivos do Capitão Zhang e o bandido taciturno, mas também mais emotivo, Choi. A forma quase que burocrática que os homens da lei aqui vão pouco a pouco, com suas câmeras, tecnologias, abocanhando os mafiosos revela o poder do Estado Chinês; mas o último grande tiroteio revela ainda mais uma reversão de heroísmo, um herói que quanto mais age, menos icônico se torna, mais preso à máquina ele parece estar, ao ponto de seu corpo mexer-se sozinho em direção aos seus objetivos.

A perfeição objetiva do Capitão Zhang é, portanto, a visão da frieza da burocracia chinesa. Mas que é desafiada a todo momento por Choi, para encontrar suas rachaduras, é esse equilíbrio que sustenta toda a tensão do filme até seu último momento.

Espadachim de um Braço (1967) — Chang Cheh

A influência de Chang Cheh é enorme. Acho que o tem me atraído cada vez mais ao seu cinema é justamente seu poder catártico pouco equiparável, visto não só há a violência brutal, mas precisamente aquilo que o companha que é a organização cênica e a montagem que amplificam muito todas as suas vinganças. Esse filme, em especial, se concentra nessa força deste personagem que evita a vingança, obtém sua catarse como uma forma de sair de um mundo que o criou.

É uma jornada do herói plenamente quando o personagem visto como o herdeiro da tradição de seu mestre precisa sair deste seu mundo, com a perda de seu braço, e reconstruir seu estilo, sua força, sua própria tradição para salvar esse mesmo mundo do qual foi jogado fora. O detalhes acrescentam em muito cada sequência, sejam os diálogos enrolados aos galhos, a neve ensanguentada, o pequeno rio da cidade, é por saber usar esses elementos como um bom maestro que ele amplifica a força dos sentimentos e torna essas jornadas poderosa.

Zu, Os Guerreiros da Montanha Mágica (1983) Tsui Hark

Tsui Hark começou no cinema com uma grande explosão, um filme que chegou a ser censurado. Aos poucos ele se aproximou, quase que por completo, de um cinema comercial, mas que nunca deixou de tratar e articular seus poderes. Talvez seu cinema seja um dos mais interessantes nesse sentido da atualidade, justamente por isso. Até mesmo seus últimos investimentos no exagerado CGI vem especialmente explorando certas nuances interessantes.

Esse seu filme já revela até mesmo esse desejo especial pelas histórias épicas e fantasiosas chinesas. Hark tem um prazer pela produção de efeitos especiais, aqui quase todos são efeitos práticos, quando deixam de sê-lo de forma exagerada acabam por vezes nos perdendo um pouco, principalmente no último ato.

O que me impressiona em seu estilo é a forma com que sua câmera cria a sensação radical do movimento e nos faz explorar a cena por olhares inóspitos, por vezes simplesmente para nos dar mais certeza do movimento do coração de seus personagens. Toda a sequência, com seu humor, tensão e drama dentro do templo em que buscam curar os heróis é com certeza onde ele pode explorar seu estilo melhor. Por trás de todo o espetáculo o que temos é a batalha pelo fim da guerra, pelo fim do mal no mundo humano.

Sonhos da Ópera de Pequim (1986) Tsui Hark

Existe algo nesse período do cinema de Hong Kong, principalmente com o cinema de Hark que nos remete ao cinema americano dos anos 30. Não é exatamente a forma, acredito ser mais em conseguir atingir aquele grau de crença narrativa, de ingenuidade mesmo, que é encantador. É como se repetisse o sentimento.

Com isso ele consegue criar uma grande narrativa histórica, em que entrelaça a história de uma revolução, com a história de uma mulher buscando dinheiro e a história de uma garota que sonha em atuar no teatro, onde apenas homens fazem os papéis, todos papéis, especialmente o de mulheres. Com isso o teatro e a espionagem, a revolução e o desejo por uma vida melhor, tudo isso se mistura numa narrativa sintética e propriamente épica. A criatividade de Hark se concentra em unicamente saber manejar o ritmo de seus filmes tanto com o movimento no interior do quadro, do próprio movimento de câmera, além de certo frenesi controlado pela montagem.

Sonhos da Ópera de Pequim (1986) — Tsui Hark

O tom aventuresco que muitos remetem à Spielberg se faz aqui ao sentido inverso, pois não há consolos, nem o cinismo risinho; a obra de Hark, especialmente este filme, mas até mesmo seus filmes recentes, parecem sempre expressar uma complexa posição de relações e dinâmicas do lugar de Hong Kong para China e para o Ocidente. É sempre uma leitura ambígua, efervescente, se saímos felizes com todo o arco, também ficamos com o filme por muito tempo, a pensar não só em seus artifícios e procedimentos (como todo o jogo de troca de identidades), mas pelo dilema sobre sua própria História.

Dragões em Dose Dupla (1992) — Tsui Hark e Ringo Lam

Ouvi dizer que Ringo Lam que dirigiu as cenas de ação, que são até bastante limpas e conseguem manter o efeito cinético e veloz da forma que Hark compõe a ação. Partindo de um mote propriamente cômico, o jogo do duplo é extremamente divertido; gosto das interpretações que comentam que os gêmeos acabam se articulando como todo filme do diretor, entre o artístico e o comercial (um é músico clássico, um outro é um bandido), mas é certo que o cinema de Hong Kong se entende como um cinema de massa, de entretenimento, que dentro deste modelo mesmo produz subversões formais e estéticas.

Jackie Chan como é de se esperar não só nos conquista com sua performance de ação — principalmente na última sequência, em que entra e sai de um carro diversas vezes -, também nos conquista com o humor. Diria que é aí que o filme funciona ainda melhor, com cada duplo influenciando e mudando o ambiente do outro, aliás, as cenas que precisam confundir as suas companheiras com certeza são as mais divertidas, é dentro das relações que, para além da ação, Hark faz o melhor uso de seus poderes.

Green Snake (1993) — Tsui Hark

A sensualidade, o excessivo, o próprio do amor como aquilo que desconcerta os humanos, mas também os espíritos demoníacos. Hark consegue nos fazer viajar entre imagens de caos completo e de certa injúria, como a primeira sequência em que o tom avermelhado parece contaminar o ar como um veneno, ou ainda toda a sequência final em sua grande batalha.

Mas tudo isso em contraste com a serenidade das imagens na casa das irmãs, atentando-se para uma serenidade sempre em crise, sempre em latência, para o excesso que é o amor. O dilema do grande buda é justamente este: a graça ou o amor. Contra a frieza da graça budista, em seu vazio, as duas irmãs protagonistas desafiam aquilo que as separa do mundo humano, sua forma de cobra, mas principalmente um distância para além da forma, que reside no ser.

Maggie Cheung não entende o amor, não sabe o que é ser humana, mas acredita que viu o suficiente de sua irmã para realizar isto mesmo assim. De certo, seu rosto tem um efeito encantatório no longa por sempre transparecer uma malicia quase que inexplicável. O mais interessante é como Hark consegue produzir essa tensão constante no filme com seus planos serenos, que logo se cortam, que movem-se traiçoeiramente por todos os espaços. Inclusive, é um de seus filmes mais otimistas e esperançosos, não há esperança sem certa melancolia.

The Blade, A Lenda (1995) Tsui Hark

Se Green Snake (1993) conseguia construir imagens serenas deste mundo fantasioso sempre atravessado por uma instabilidade da sensualidade e amor, aqui Hark embarca por completo num pesadelo. Levemente baseado na obra de Cheh, Espadachim de um Braço (1967), este filme consegue carregar algo ainda de seu predecessor, o dilema da tradição, os seus problemas, e o poder catártico, mas por uma via diferente, mesmo que a montagem e os movimentos de câmera de Cheh carreguem uma espécie de intensidade.

Hark com seus movimentos e montagem nos enclausura no caos que são as lutas de espadas. As mudanças narrativas também indicam essa amplificação, tornando a ideia da vingança mais catártica e mais absurda. Os dois espadachins se veem de mãos atadas pelo mundo que os rodeia, mas qualquer intervenção é considerada impura; diria que duas coisas desvirtuam esses personagem, de um lado a paixão lasciva e do outro a vingança.

Mas enquanto um ganha uma direção e se reorganiza numa forma de dar fim ao incômodo geral, isto é o vingança, a paixão lasciva mostra-se perdida, confusa, tão confusa quanto o próprio universo que habitam. É impressionante como esses dois elementos fluem juntos nas imagens desse mundo caótico, a tradição, portanto, deve mudar, ou será engolida. A última luta em especial é impressionante, as coreografias são cruciais, mas principalmente o ritmo da montagem que vai cortando o espaço, o corpo, quase que em sintonia com os movimentos das espadas.

Nacional

O Bandido da Luz Vermelha (1968) — Rogério Sganzerla

A fragmentação de Kane, sua incompletude. Ao anunciar os caminhos modernistas da obra Welles, Sganzerla aponta para sua própria modernidade, isto seria expresso por uma recusa da narrativa clássica que ainda assim opera um poder simbólico muito poderoso. Como que por efeito de colagem vamos construindo o personagem do Bandido Vermelho pela rádio, pelos comentários populares, pelos jornais; do mesmo modo que os comentários de um político.

Nessa fragmentação extremada os personagens não possuem profundidade psicológica, mas possuem a figuração de um discurso, que é contraditório tanto pelas diferentes vias com qual ele é composto, mas também a contradição que o próprio Brasil tem pela forma que ele o filma.

Existe de algum modo uma inversão, ou transformação de elementos da Nouvelle Vague, mas completamente embasado numa precariedade própria da miséria de nosso país. Fazer valer a proposição marginal não é apenas demonstrar uma espécie precariedade de produção, muito pelo contrário, é justamente desmontar os procedimentos capazes de rasgar com a “unidade Brasil”, de rasgar com “a narrativa brasileira”.

O Bandido da Luz Vermelha (1968) — Rogério Sganzerla

Em A Mulher de Todos (1969), o fatalismo de outrora se mistura com um deboche em que Helena Ignez brilha em todas as cenas com sua presença. É em cima de suas personagens que se faz tudo, mas novamente é de uma espécie moderna de personagem que Sganzerla retira toda força. É como se soubesse que a força está na pessoa, pois é a partir do momento que fala no mundo, sobre si e sobre o mundo, constrói e se mistura a esse mundo.

A Mulher de todos (1969) — Rogério Sganzerla

Há talvez um ludismo próprio com o que há nas chanchadas, em muito se confunde todo o modernismo como uma grande paródia, mas diria que isso é confundir o que há de revelador nestes procedimentos supostamente lúdicos que afrouxam as malhas do verossímil e ideal da narrativa. Ele revela em muito uma desconexão do personagem em relação à ordenação da ação, justamente tornando-se apenas aquilo que é ação. Se não temos diretamente a fragmentação pela miscelânea de mídias, temos uma fragmentação por ações.

Essa incompletude, com sua diluição psicológica, me parecem algo marcante em todos os seus filmes. Isto dá vida às figuras mais absurdas, e capazes de dizer as verdades com quais não conseguimos dormir. Os seus personagens inquietos falam/agem sem parar, pois são apenas isso, ao se calarem, morrem; se morrem, morre-se o mundo, fim do filme.

Copacabana, Mon Amour (1970) — Rogério Sganzerla

É só em Copacabana, Mon Amour (1970) que Sganzerla torna a sua glossolalia uma espécie de música em transe, onde entramos nos ditirambos brasileiros. Por entre os morros, no grito por comida, nas rondas completamente epilépticas de certos personagens, se pergunta com algumas palavras :o que sobrará das nossas misérias, Copacabana? Nos cânticos dos ventos que sopram a bossa nova há uma fome que sempre se revoga, há um amor impossível, um laço desencarnado em todas as suas propostas.

Copacabana, Mon Amou (1970) — Rogério Sganzerla

É preciso gritar, os personagens que outrora compunham-se bem em discursos de outros, ou em diálogos, parecem, agora, nos direcionar de forma mais direta, mais incisiva. Afinal, com a Belair — produtora no qual Sganzerla fazia filmes com Júlio Bressane — , o diretor parece ter adquirido uma liberdade que lhe permitiu se entranhar mais no seu país, ao ponto de alguma forma filmar um espaço impossível de capturar sem trepidar.

Estamos todos ficando um pouco loucos, possuídos por demônios, ou por paixões lascivas da nossa própria submissão; a pergunta chave para todo o fascismo é “porque não se revolta?”, muito mais que o inverso. De uma maneira, ou de outra, o final do longa demonstra a necessidade dos nossos loucos, afinal, nossa catástrofe é o próprio Brasil, e nesse sentido, a destruição que estranhos fantasmas que atormentam nossos personagens causam é criadora.

Sem Essa, Aranha (1970) — Rogério Sganzerla

Boca de forno — O sistema Solar é um lixo.

O Apocalipse do Brasil é um universo de uma bruta realidade, um lugar de 6000 anos de fome, em que o Aranha vendeu sua alma ao diabo para nunca sentir deste mal. Um lugar que Luiz Gonzaga nos coloca numa espécie de transe perpétuo. Ainda mais restrito com seu espaço e sua temporalidade, Sganzerla nos coloca diante de Aranha. Um rico pobre, um erudito medíocre que sintetiza de algum modo um sentimento brasileiro muito peculiar. Não é à toa que Jorge Loredo, conhecido por seu papel como Zé Bonitinho, encarna este Aranha de forma a impossibilitar que nos afastemos do que a sua imagem nos remete, ao jeitinho brasileiro, o falador.

Sem Essa, Aranha (1970) — Rogério Sganzerla

Nesse sentido ainda há a presença do próprio Jorge Loredo, porque aqui é onde tudo se desestrutura, em que o filme sabe-se filme como uma performance interminável em que tudo interage com os atores. Notoriamente este filme é um musical, um dos grandes musicais do Brasil, ou melhor da musicalidade como ritmo preciso de uma alma brasileira, estamos falando não de um gênero, mas uma via musical para filmar esse país fora do mapa. Apocalipse, portanto, é a alma brasileira.

O Vigilante (1992) — Ozualdo Candeias

Ozualdo Candeias também foi um diretor crucial para o cinema marginal brasileiro. Neste seu último longa, ele pergunta o que é a cidade no Brasil. Parece ser uma casa que as músicas sertanejas tão saudosas não alcançam, isto é um mundo violento em que todas as relações estão conectas de forma intrínseca, ou seja, a partir de e pela violência. Há as gargalhadas do lobo indigestas, não só porque falsas, mas porque indicam um estado meio perturbador deste meio social.

Se há algum reflexo de um velho oeste americano, não há os heróis com seus cavalos brancos aqui. O cano do revolver preenche todo o plano como se fosse nos engolir. Talvez seja um dos filmes mais significativos da Era Collor, um país sem esperança, por vezes há tanta desgraça que seu lado cômico meio desajeitado é o que mais realiza o poder do filme. Oh país sem esperança.

Alguns Diretores

A Grande Jornada (1930) — Raoyl Walsh

A Grande Jornada (1930) é belíssimo, mas também pouco usual. Existe algo em relação aos personagens que nunca se desenvolve por completo, mas em compensação há um senso de todo muito poderoso. Impressiona que Walsh tenha gravado tudo em locação, o que é notório pelo poder de tudo que ao redor dos personagens, no fundo, isto é muito mais importante que os personagens, eles nunca são maiores que a natureza que os rodeia.

Em diversos momentos, inclusive, a pequenez deles faz com que se percam entre os troncos das árvores ou a poeira dos desertos. Aliás, quase todos os planos mantém-se a certa distância dos personagens, justamente para acentuar isso. O fundo do quadro está sempre em movimento e vivo. Por isso esse filme tem a peculiaridade de ser a conquista da “civilização” que demonstra no fundo sua pequenez perante as grandes montanhas, que demonstra sua falta de radicalidade, perante às grandiosas raízes por qual os homens tropeçam.

Meu Único Amor (1946) — Raoul Walsh

Talvez não devêssemos dizer nada sobre Meu Único Amor(1946) além de acentuar os olhos de Ida Lupino. A gravidade dos atores nos filmes de Walsh é tão intenso que não conseguimos parar de pensar sobre eles. Em Três Dias de Vida (1944), apesar de toda narrativa rodar em torno do homem condenado à morte que precisa morrer no lugar do revolucionário, há um jogo de encontros, de construções cuidadosas em que a transparência da sua lucidez produz uma articulação emotiva muito poderosa, do mesmo modo aqui, todo o longa é baseado em desencontros.

Isto mesmo, desencontros, paradoxalmente ele consegue causar esse mesmo efeito, as canções preenchem os espaços, mesmo aqueles mais vazios. Toda vez que Petey e Thomas trocam olhares é de um laço impossível que se conecta e apresenta, é um encontro que só pode se realizar na figura de um desencontro.

Os Novos Centuriões (1972) — Richard Fleischer

O filme de Fleischer, Os Novos Centuriões (1972), é interessante na medida que está dentro da perspectiva do policial, em seu sentido mais clássico, aqui se discute e se observa a instituição pelo imaginário daqueles que acreditam e agem por ela. Uma instituição como essa só pode existir como repetição trágica dos centuriões como bem indica os personagens, nada que eles estão fazendo é de certo novo, há uma cadeia do destino se operando aí.

De um lado, um polícia que se instaura sua própria lei de modo a criar um ambiente de convivência até mesmo confortável para o vazio que permeia o seu futuro, o mal impossível, o mal eterno; do outro lado, um policial mais jovem, que desistiu do mundo das leis, para se esgueirar para o mundo da violência do ato, vazio, com uma esperança ingênua de acabar com o mal, em sua visão mais concreta e simplista.

Os Novos Centuriões (1972) — Richard Fleischer

Em sentido oposto à Perseguidor Implacável (1971) não há espetáculo da violência, frenesi ou iconicidade, existe mesmo um estilo até mesmo prosaico e elíptico. É numa dialética entre o realismo do cotidiano desses personagens e o tragicismo expressivo de certos planos, que se concentram, que carregam, o passado e o futuro, aí é que a resolução fatalista se apresenta. É possível dizer que Fleischer realiza talvez a crítica mais profunda de tudo que aponta ao dobrar a repetição com o último tiro, em que, como um personagem de Sófocles, um policial nos diz “Agora não, logo quando comecei a entender…”

A Dama na Água (2006) — M. Night Shyamalan

O que torna esse filme interessante como todos os outros de Shyamalan são certos elementos bem intrínsecos ao seu cinema, a organização em comunidade, no qual cada personagem precisa tomar parte daquilo que acontece, e neste processo, desafiar os próprios horrores por completo (não é à toa um tom terapêutico que se denota em todos os seus filmes). Como todo aquele prédio se torna uma fortaleza para um inimigo até então invisível, a crença nas narrativas antigas se faz em todo seu misticismo.

Talvez o único problema do filme resida de fato em duas coisas que parecem perniciosas, a primeira é o metacomentário sobre a estrutura do mito, que contém a cena conscientemente ridícula do crítico; a segunda talvez seja a infantilização, se isso em A Vila (2004) é crucial em certa medida (todo a Ideia do Bom quase que retirada da própria República de Platão); aqui pareceu a tornar todas as peças ainda mais fragilizadas, no sentido de tirar aquilo de mais sedutor nelas, que era um certo mistério.

A Dama na Água (2006) — M. Night Shyamalan

Mas ainda assim, a condução de Shyamalan é contagiante, não só a construção desse espaço comunitário, mas a total e completa absorção pelo fantástico nesse universo esverdeado e a efetuação de todo trabalho da comunidade num plano assustador sobre a água. É certo que é prazeroso ver uma defesa tão verdadeira de uma forma de arte, é engraçado que ele retira parte de sua força daí, em ser um filme-testamento, mas é também sua fragilidade

A Teia de Chocolate (2000) — Claude Chabrol

Chabrol como eterno amante do cinema de Hitchcock (e também de Lang) não faz o que um De Palma faria, isto é exceder-se. Isto não é um comentário de valor, mas é importante pontuar. Se ele dá continuidade a esse gênero do suspense, é menos pelo amor ao gênero e mais pelo que ele pode proporcionar a sua mise en scene, em toda sua economia e ritmo.

Chabrol deve ser o integrante da Cahiers e da Nouvelle Vague que menos conheço, mas este filme aqui já demonstra uma precisão que parece (isto é um hipótese) ser constante em sua obra. O que mais interessa aqui é como vemos toda uma organização operar na profundidade de campo, num jogo em que todo o quadro parece importante, isso atiça nossa curiosidade, mas além disso, ele enlaça-nos na tragédia familiar.

O desenvolvimento do último ato, em toda sua tensão, tem menos a ver com com acúmulo das informações (que nunca são expostas como surpresas, mas como meras necessidades, isto o aproxima do trágico de certo modo), e mais com o próprio ritmo que se constrói a relação deste quatro personagens. Em como cada relação está em estágios diferentes, e cada personagens percebe algo diferente do outro, e tudo isso feito de forma muito simples, entre as xícaras de chocolate, entre a ida da farmácia, o piano e o choro de Isabelle Huppert.

Um Tiro na Noite (1981) — Brian de Palma

É preciso esquecer de imediato a assunção maneirista, pelo menos parte dela. Aquela que insiste demais nas linhagens, no amor à distorção, das brincadeiras anamórficas, isto que se perde às vezes numa colcha de retalhos. Talvez seja uma parte de um processo que seja coerente, como o da análise de Borges em relação à Kafka, a novidade do escritor residia em certa medida pela conjugação única e diferente de certas referências básicas, mas em que sentido ele criaria nisso uma retórica vazia, como muitos assumem do maneirismo?

Então, sim há Blow Up — Depois Daquele Beijo (1966), mas também não há, o terror existencial ganha todo outro sentido aqui. Há Hitchcock, mas cada vez mais irrestrito, cada vez mais exposto em suas arestas. O que importa mesmo é que de Palma nos pergunta o que nos faz gritar e o que há de verdadeiro num grito. A sátira ao cinema B de horror não é plenamente depreciativa, me parece o contrário, por trás daquele grito há mais verdade que qualquer coisa — não seria isso o grito dos filmes de Argento, também?

Um Tiro na Noite (1981) — Brian de Palma

A obsessão de nosso protagonista pelo suposto crime que capta em seu aparelho de som é mais uma perseguição interminável pela verdade de seu sentimento obtuso de culpa. Se outrora fazia grandes contribuições políticas para a sociedade, agora como punição se joga nesse universo do falso, do qual o mesmo trata com certo menosprezo. Toda o último ato em seu tom alucinatório e de êxtase visual me parece subverter tudo isso, ele pode agora, pelo advento milagroso de uma repetição mudar o que não havia conseguido, mas a repetição por vezes traz os seus fantasmas trágicos.

A última cena, o epilogo do filme, que a princípio me pareceu não tão relevante apesar de perspicaz, torna-se na realidade o final necessário, há de virar tudo de cabeça para baixo, pois nesta arte estamos diante do grito da verdade. Aliás, não é apenas metacomentário ao cinema, mas há ai um arco que é até mesmo expositivo. A América como um espaço da aparência destruída pelas técnicas de montagem do real que o cinema possui, na realização da cena operística em que a verdade se desvela.

Um Tiro na Noite (1981) — Brian de Palma

Portanto, De Palma trabalha dois níveis narrativos elencados através de dois desvelamentos, sintetizados numa única cena, mas só plenamente realizados no último plano. Da verdade do herói quebrado, isto é a verdade do próprio cinema, e a verdade de uma América aterrorizante.

O Sonho de Cassandra (2007) — Woody Allen

Allen é prolífico, mas constantemente perde a mão. Se seu lado cômico vem se tornado um pouco menos interessante que outrora, menos neurótico, por outro lado seu lado trágico se acentua. Este filme, até mesmo um pouco esquecido, parece ser um dos picos desta sua visão trágica do mundo. De um lado, Terry que está viciado em apostas, trabalha como mecânico e só tem esperanças de ascender socialmente com tais apostas, já do outro, Ian, um supostamente são e inteligente irmão, que trabalha com a loja do pai.

O “Sonho de Cassandra” que nomeia o filme é um objeto mágico, uma imagem, isto é um fantasma do passado. É isto que os leva em direção ao caminho mais tortuoso que podem chegar. A partir do momento que Allen desenvolve a cena fora do restaurante, com seus movimentos de câmera, tudo aprece se assentar na roda do destino, Ian e Terry, com o tio rico Howard estão num impasse, ou melhor estão a um passo do futuro.

É uma construção meticulosa em que um aceita o cinismo da novidade desta imagem do passado, e outro reconhece com toda angústia neurótica o fantasma de tudo isto. Até onde iremos para chegar ao futuro? ou melhor até onde iremos para aceitar o cinismo da novidade destes objetos quaisquer? Onde foram parar os sonhos de nossas juventudes, bem, eles viraram o sonho de Cassandra. Que filme desesperador!

Crimes Obscursos (2006) — Kyioshi Kurosawa

Kurosawa é um cineasta do espaço, não há nada que se possa dizer muito diferente disso. A forma com que os seus personagens atravessam cada um dos espaços, assim como ocupam os cantos, as sombras, as frestas, as rasgaduras de todo quadro que compõe, é disto que seu cinema é feito. Penso também que esses espaços têm uma história.

Em Cura (1997), há o estranho espaço antigo, em que o experimento que faz com que todo mal seja expulso do corpo dos outros, ocupava, o hipnotismo como ferramenta de controle social ou descontrole. Em seu filme mais recente, Wife of a Spy (2020), um Japão antigo com suas instituições e seus espaços menos desoladores, porém ainda assim marcantes pela forma com que cada um habita esses lugares, nós vemos algo parecido, uma conspiração de controle ou descontrole.

Aqui, há algo desse tipo, o espaço é claro não é exatamente a casa aos pedaços do policial, pronta para deslizar eternamente no vazio, mas o hospital psiquiátrico (que também existe em Wife of a Spy). Assim, a investigação policial conecta o mal que eles enfrentam, essas mortes aparentemente sem sentido, com a fantasmagoria que assombra o detetive, é o cruzamento destes espaços que faz suscitar os espaços de controle/descontrole.

Muito mais que uma história de horror, esse longa se desenvolve como uma fantasia, é mais o mistério como coisa sedutora que parece estruturar a narrativa. Mesmo que o risco e o medo da morte estejam presentes constantemente. A singularidade das performances de horror dele se encontram na sabedoria de atingir o vale da estranheza com o automatismo dos gesto desregulados.

De maneira geral, parece que é possível até conceituar algo. Em todo espaço que Kurosawa filma parece que há implicado, mesmo que sem estes elementos precisos, um mal a ser descoberto, a se cruzar com um fantasmagoria de outro além, o mal sempre é humano a fantasmagoria nos ajuda a estruturar talvez esse encontro traumático, que s repete constantemente na nossa história.

Fuga de Nova York (1981) — John Carpenter

Existem algumas coisas que me cativam demais no universo de Carpenter. Há uma tendência tão direta e ao mesmo tempo imaginativa do mundo, que de certo recobrem tudo com um aspecto que vai do mais real ao mais fantasioso. Pode-se chamar de lúdico, inclusive, para alguns pode até soar infantil, mas é aí que reside sua complexidade, a meu ver é de reter com maestria esses dois polos, pois assim ele atinge de algum modo um poder político sem se perder em alegorias do Bom, do Ideal.

Snake Plissken é um personagem certeiro para esse tipo de história, pois é aquele que se envolve nos assuntos do meio, como que sem querer (o melhor líder é aquele que não quer governar, já dizia Platão), ele sabe designar o mal com precisão, nunca em nome de nada transcendente. Fritz Lang que dizia isto, fazer cinema de crítica social de algum modo é saber designar o mal.

A visão do mundo em destroços, da cidade como prisão, dos homens tornado selvagens, da organização hierárquica de dentro e de fora, entram em total contradição com a moral de Snake, é por isso, que sua missão comprida o deixa indigesto, do mesmo modo que nós como espectadores terminamos o filme com um sentimento peculiar, estranho e completamente aberto, afinal “que fazer?”.

Green Snake (1993) — Tsui Hark
The Blade, A Lenda (1995) — Tsui Hark

A Grande Jornada (The Big Trail, 1930 — Raoul Walsh)

O Picolino (Top Hat, 1935) — Mark Sandrich)

Meu Único Amor (The Man I Love, 1946 — Raoul Walsh)

Sinfonia de Paris (An American in Paris, 1951 — Vincent Minnelli)

Espadachim de um Braço (Du bei dao, 1967 — Chang Cheh)

O Bandido da Luz Vermelha (Idem, 1968 — Rogério Sganzerla)

A Mulher de Todos (Idem, 1969 — Rogério Sganzerla)

Copacabana, Mon Amou (Idem, 1970 — Rogério Sganzerla)

Sem essa, Aranha (Idem, 1970 — Rogério Sganzerla)

Os Novos Centuriões (The New Centurions, 1972 — Richard Fleischer)

Fuga de Nova York (Escape From New York, 1981 — John Carpenter)

Um Tiro no Escuro (Blow Out, 1981 — Brian de Palma)

Zu, Os Guerreiros da Montanha Mágica (Shu Shan — Xin Shu shan jian ke, 1983 — Tsui Hark)

Sonhos da Ópera de Pequim (Do ma daan, 1986 — Tsui Hark)

Dragões em Dose Dupla (Seong lung wui, 1992 — Tsui Hark e Ringo Lam)

O Vigilante (Idem, 1992 — Ozualdo Candeias)

Green Snake (Ching se, 1993 — Tsui Hark)

The Blade, A Lenda (Dao, 1995 — Tsui Hark)

A Teia de Chocolate (Merci pour le chocolat, 2000 — Claude Chabrol)

Running on Karma (Dai zek lo, 2003 — Johnnie To e Wai Ka-Fai)

PTU (Idem, 2003 — Johnnie To)

Breaking News, Uma Cidade em Alerta (Dai si gin, 2004 — Johnnie To)

Throw Down (Yau doh lung fu bong, 2004 — Johnnie To)

Eleição (Hak se wooi, 2005 — Johnnie To)

Eleição 2 (Hak se wui: Yi woo wai kwai, 2006 — Johnnie To)

Exilados (Fong juk, 2006 — Johnnie To)

A Dama na Água (Lady in the Water, 2006 — M. Night Shyamalan)

Crimes Obscuros (Sakebi, 2006 — Kiyoshi Kurosawa)

O Sonho de Cassandra (Cassandra’s Dream, 2007 — Woody Allen)

O Pardal (Sparrow, 2008 — Johnnie To)

Vingança (Fuk sau, 2009 — Johnnie To)

Life Without Principle (Duet ming gam, 2011 — Johnnie To)

Romancing in Thin Air (Gao hai ba zhi lian II, 2012 — Johnnie To)

Guerra às Drogas (Du zhan, 2012 — Johnnie To)

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Ghosts Without Machines
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