Sobre filmes vistos em Abril, 2021
Diante da verdade, do Real, o horror. Esse mês, eu praticamente só vi filmes de Hong Kong. Eu gostaria de ver os filmes de Johnnie To, mas já existiam alguns filmes por aqui de HK. Assim, acabei embarcando numa jornada extremamente divertida. Mas para além das boas experiências com o cinema, houve também o lançamento das novas edições da Foco-Revista de Cinema
Gosto de marcar aqui o lançamento da revista, por estarem pensando o cinema, algo que me parece cada vez mais raro. Pensar os filmes, a crítica como algo que não se resume ao valor. Assim, temos algumas perspectivas bem interessantes; me vejo facilmente dentro de um mito do cinema, o mito da mise en scène, da forma em que Bruno Andrade a define.
Outro ponto, a meu ver importante, e que de certo modo explica e nos faz compreender com certa clareza a posição e a função da crítica, do mesmo modo, de suas desavenças e caminhos tortuosos, se encontra na discussão sobre os mitos de origem e destino do cinema de Lucas Baptista.
Eu coloco esses dois trechos apenas para trazer luz, ou dar uma imagem do que acho que acaba sendo em grande parte a experiência com que temos com os filmes. Além de colocar uma certa impossibilidade de abarcar tudo, em um mito único, numa grande teoria, mas é preciso visualizar o mito. Que até mesmo o modelo de Carroll de “teorizar a imagem movimento” a partir dos problemas, ou a política de amadores de Rancière, são pautadas em seus mitos.
Fato é que sou espectador fascinado e tenho meus mitos. Aos filmes.
Clássicos e Alguns Diretores
O cinema de Kiyoshi Kurosawa ficou marcado por esse estilo distanciado, mas não desprovido de emoção. Em que o vazio dos espaços nos alude ao mais primordial aberto. É aí que se encontra toda a ansiedade, a angústia que se deriva de seus filmes, especialmente este A Cura (1997).
O homem sem nome, nem profundidade, completamente vazio de dentro para fora, ele nos assusta por ser uma casca quase impossível de decifrar. A tensão entre essa quantidade de espaços vazios no longa faz com que cada gesto se torne perigoso, estranho. Por isso, se há violência, ela é sempre tangencial, pois o real horror se dá em se ver tão hipnotizado e acuado por esse indizível que parece sempre implicado.
Os nossos desejos são desconhecidos por nós mesmos na maior parte do tempo, porque se deseja qualquer coisa, o desejo não conhece a moral, acreditar que o fim do recalque é a solução para o mundo talvez seja problemático, mas é certo que o filme de Kurosawa nos dá um pensamento muito pior do que esse. Alguém que pode usar os nossos desejos mais inóspitos a seu bel prazer, e pior, iremos no sentir satisfeitos.
O que há num acontecimento, num gesto tão simples quanto um beijo? O beijo é aqui o objeto próprio do desejo, e do temor, afinal não é um pouco assustador que o tocar dos lábios com alguém pode mudar toda uma vida? E basta um beijo, apenas um. É aí que entramos no exemplar do cinema de Mouret, o relato e o acaso, entrelaçados. A tensão sexual que faz a história se contar nos engaja e nos faz ansiar pela história dentro da história como um duplo suspense.
E se no início tudo parece um pouco como uma comédia travada pela gestualidade desconcertante e quase maquínica do próprio Mouret, tudo vai se transformando aos poucos em loucuras de amor com a câmera se aproximando lentamente nas cenas chaves, onde o sentimento real parece nascer. Quando finalmente tudo muda, quando percebemos que nem tudo mudou, quando percebemos que tudo está errado, quando, finalmente, deixamo-nos levar.
Seu filme mais novo com certeza é derivado desse Só um Beijo, Por Favor (2007) , aqui talvez seja mais conciso, em Les Choeses qu’on fait, les choque qu’on dit (2020), é provavelmente mais aventuroso, ainda assim há o fundamental: a gravidade de um beijo.
Personagens completamente diferentes que descobrem algo que os une parece sempre uma boa trama para fazer uma história se desenrolar, mas rara são as vezes que estes são Nick Nolte e Eddie Murphy. Hill tem uma habilidade aqui, em 48 Horas (1982), de unir muito bem a ação com a comédia, criando um certo protótipo para os filmes de “Buddy Cop”, mas a sua principal façanha a meu ver é fazer com que os personagens entrem no fugaz da noite, como se houvesse uma espécie de selvageria desses lugares fechados e mal iluminados, é um filme bastante setentista, mas que já se abre ao humor oitentista.
O humor se realiza desde a ostensiva cena do bar redneck, até à troca de xingamentos usual entre os personagens, pois mais que qualquer coisa o que sustenta essa simples história é a dinâmica da estranheza e familiaridade desses personagens. Há ainda outro detalhe que me interessa muito, isto é, um filme sobre “correria”, tudo deve se passar em 48 horas, porém não é por uma confusão, um frenesi que ele alcança essa sensação, mas sendo apenas direto.
“Você não odeia segundas-feiras, odeia o capitalismo”.
Tony Manero só existe nos finais de semana, como toda classe trabalhadora, em que as condições materiais com que viveu nunca lhe deram muito além da possibilidade de liberdade nos fins de semana, a liberdade de uma pista de dança. Se existe em Embalos de Sábado à Noite (1977) uma semelhança à Rocky aqui — além da referência explícita com o pôster na parede — é pelo fato de o corpo de Travolta, como o de Stallone pareciam culminar numa espécie de diálogo e troca incessante com a comunidade de que fazem parte. Não é à toa, a misoginia latente e o racismo, aqui muito acentuados inclusive.
Grande parte do filme é sim nas discotecas ao som glorioso do Bee Gees, som que nos faz sonhar eternamente com a felicidade, com o prazer de estar vivo. Mas é justamente fora desse mundo que o filme mostra sua face real, a decepção familiar, o perigo de não seguir com seu destino, os erros juvenis, e o terror de tomar responsabilidade pelo que se faz, quando a obsedante ordem do mundo não permite deslizes. Faz tempo que não vejo uma cena tão encantada com sua própria ilusão quanto a dança de “More Than a Woman”, não é à toa o efeito desolador de seu final.
Os filmes de ação do Carpenter sempre tem uma carga política não porque são tematicamente cheios de causas sociais, mas simplesmente pelo fato de que os personagens são obrigados a tomar uma posição em nome da designação do mal. Penso que talvez não o façam em nome de um bem, de algo superior ou metafísico, mas simplesmente pelo fato que é impossível ficar inerte com a sujeira da dominação geral. Por isso, acredito que o primeiro ato deste longa é muito precioso ao nos situar na jornada de John Nada, este sim, uma figura que de certo é vazia e que pode surgir como acontecimento. Afinal, ele é o estrangeiro, o sem nome, sem passado coerente, ou futuro certo.
O estranhamento de Nada em relação ao este mundo esquisito e sem sentido se dá pelo caos que se desprende ao redor da Igreja que ajuda os trabalhadores. Há sim uma certa fixação de Carpenter pelo segredo dentro da Igreja, este é um motivo muito recorrente e sendo sempre um local onde uma revolta pode ascender.
Sem início, toda a ventura da verdade, de seu desvelamento, de sua resistência, de sua violência talvez perderiam o impulso e como de praxe, o ritmo é fulminante. Do óculos que nos revela a verdade por trás do mundo, lhe retira sua real máscara, seu semblante, à revolta desordenada pela insubordinação total. É de uma frontalidade instigante que não nos soa maniqueísta, pois nada é garantido de antemão, nada é glorificado.
É na cena da revelação de verdade de Nada para seu possível parceiro, em que os dois brigam violentamente por dez minutos, que há o cerne de todo o longa, torna-se emancipado é, em parte, cortar o laço que nos une à ideologia do senso comum.
A interpretação de Zizek sobre o uso do óculos é muito pertinente:
“De acordo com nosso senso comum, nós pensamos que a ideologia é algo turvo, a confundir nos visão de mundo. A ideologia deveria ser óculos, que distorcem nossa visão, e a crítica da ideologia deveria ser o oposto, como tirar os óculos, para que você possa finalmente ver as coisas como ela são. Isto é precisamente, o pessimismo do filme, de Eles Vivem (1988), bem justificado, esta é justamente a ilusão última: ideologia não é simplismente algo imposto a nós. Ideologia é a nossa relação espontânea como o mundo social, como nos percebemos cada sentido, etc. Nós, de certo modo, gozamos de nossa ideologia.”
A audácia de todo o cinema de Cassavetes consiste em filmar sem freios. É notável como deixa existir em cena estes atores, em especial Gena Rowlands, que expressa a instabilidade com consistência, se é que esse paradoxo seja possível. Acho que é até mesmo por conseguir nos suscitar esses paradoxos que seu cinema tem algo de especial. Se ele está interessado em capturar a presença de seus personagens, para além da progressão narrativa usual, ele não registra, meramente. Sua montagem encadeia toda uma série de olhares e gestos que nos permite fazer com que todas as particularidades das performances se tornem, justamente, consistentes. Uma Mulher sob Influência (1974) nos faz respirar junto com os personagens.
Hong Kong
O cinema de Hong Kong é marcado por ser um cinema amplamente comercial, ou seja, grande parte dos filmes aqui foram amparados por grandes estúdios de seu tempo, mas ao mesmo é um cinema marcadamente experimental. Quem conhece o cinema de Kung Fu e do Wu Xia sabe muito bem do que digo, a forma com que o movimento, a montagem, e a plasticidade que se opera nas imagens é algo raro, e que a partir dos anos 90 toda Hollywood se interessou em capturar.
Não é à toa a presença constante de alguns cineastas em terras americanas. Tsui Hark, John Woo, Ringo Lam e outros, para além das estrelas de Bruce Lee à Jackie Chan. Talvez, o termo correto seja um cinema popular, é digno de nota o humor de muitos destes filmes ou a violência. É um cinema que já havia reunido o poder do espetáculo antes mesmo da virada americana do cinema de ação. A prevalência do opsis em relação ao muthos.
Claro que a relação com o cinema americano é de mútua influência. Brian de Palma, Sergio Leone, e tantos outros parecem como referências constantes pra esse cinema popular nos anos 80/90, mas que teve seu germe com o cinema de Kung Fu dos anos 70.
Chang Cheh é um dos cineastas centrais do que veio a ser este cinema de Hong Kong. Seus filmes eram essencialmente sobre espadachins, porém, logo ele também realizou Wu Xia e Kung Fu. Se existe uma característica que o diferencia de King Hu e Lau Kar-Leung, está na sua brutaliadade, raro sãos os filme de artes marciais que vão tão longe na violência.
Além do próprio sentimento de Hybris, em que há uma espécie de excesso de ódio de seus personagens, que perseguem suas vinganças a princípio, por honra, ou pelo companheirismo, mas que sempre se excedem. Seu cinema é aquele instala como mote principal do cinema de ação a relação fraternal entre os companheiros, é por isso que em John Woo ou Johnnie To isso é muitas vezes um constante.
Em, Os Cinco Venenos de Shaolin (1978), é de toda hybris da honradez do Kung Fu que se trata. Afinal, cada um dos especialistas em artes marciais irá se unir para obter o dinheiro que foi deixado pelo seu mestre. Neste filme, em especial, é possível visualizar o poder de caracterização de Cheh.
É onde é possível ver a fragilidade completa dessas relações, em que a impossibilidade de saber os rostos de seus companheiros de treinamento, os impede também, portanto, de confiar um no outro. Claro, que há acordos, novos laços, mas toda a ação se desenvolve em tornar notório que a força de cada um reside nos segredos que guardam e na forma com que se evitam.
Não há a mesma magia pela montagem como King Hu, nem aquele olhar solene pela tradição como em Lau Kar-Leung, há de certo, a força bruta dessas lutas e desses sentimentos obsedantes. É com o caloroso fraternal que o sentimento de ódio parece crescer.
Dois Campeões do Shaolin (1980) por se tratar de uma história de vingança parece ainda mais apropriada para expressar essa brutalidade dos sentimentos, além de que a violência aqui é ainda mais absurda. É um filme que, inclusive, demonstra uma batalha entre o Shaolin e o Wu Tang, batalha que é travada pouco a pouco.
Há toda uma série de jogos de traições, tanto de um lado, quanto de outro, mas o que impressiona mesmo é a história de um personagem em específico, em que o nível de seus sentimentos confusos é tamanho que ele resolve se matar em meio à batalha. É nesse sentido que seu cinema é de uma violência sentimental sem igual também.
O filme que esta escatologia e absurdo chega ao seu ponto mais grave — obviamente, apenas dos filmes que vi dele — é O Super Dragão Chinês (1982). Diga-se de passagem, o título brasileiro não faz nenhum sentido.
Este filme é inteiro sobre vingança, entre uma escola shaolin contra uma escola japonesa de ninjustu. O primeiro ato do filme consiste em parte na vitória dos shaolin dentro dos limites de uma competição saudável, todavia existe outra escola que os aguarda, mais rasteira, podemos dizer assim.
A caracterização de cada elemento, suas táticas, espaços e armas é quase alucinógena. E aí é que temos uma violência brutal, ao ponto de um personagem acabar pisando em seus próprios órgãos em batalha.
É onde a vingança, o ódio, a ira quase que divina atravessa o corpo destes personagens fazendo-os realizar o impossível. Destruir, fazer-nos ver a fragilidade dos corpos. Esse seu filme talvez seja aquele onde há menos trama, mesmo que haja laços fraternais e até mesmo um difuso laço amoroso, que se desfaz em prol da ira. Com os sentimentos obtusos mais soltos, Cheh também com seu cenário torna tudo mais pictórico.
A luta, que é de certo uma dança, segue de forma interminável, de forma criativa e avança à catarse final.
A história da construção e formação de Hong Kong é complexa, atravessada pela história das relações entre Inglaterra e China, e uma espécie de jogo de incerteza, entre a simulação da independência e a realização da submissão. Hark, vindo do Vietnã, parece carregar consigo inscrito as garras e o furor do anticolonialismo. Tudo está refratado pelo ódio juvenil de certo, aquele ódio difuso, que escorre para todos os cantos, sem muita direção, mas tão intenso que pode fazer com que tudo realmente exploda. Não é à toa que parte do filme havia sido perdida anteriormente pela censura.
A câmera de Hark se mostra sempre veloz, seja nos cortes, seja no movimento, mas é certo que nunca é confusa, parece liberta. Em Não Brinque Com Fogo (1980) Vamos de um ambiente à outro muito rápido, percorremos suas ladeiras, e os jovens precisam se divertir, mas também se exaurir. Wan-Chu, uma garota realmente cheia de ódio, que leva aos três jovens inconsequentes a se envolver no espírito internacional e confuso da cidade, mas não se enganem sua maldade chocante não nos faz vê-la como uma psicopata, afinal, ela é tanto o rato com o pino na cabeça, quanto o gato a se envolver onde não deveria.
O cemitério, o espaço do fim, organiza o último ato do longa onde os jovens, o futuro do país, se encontram com os jovens mortos do passado, e o caos chega em sua dobra para articular a necessidade levar a radicalidade até o seu fim.
Esse caos primordial é ainda preciso em seus filmes considerados mais “comerciais” como Golpe Fulminante (1998), com Van Damme.
Hong Kong é nesse universo de Hark o próprio universo do falso, isto é elevado a última potência em sua narrativa, quando ninguém é o que realmente é, tudo acaba se revelando de outra forma. Se o filme começa quase como uma comédia usual de ação, em que a ingenuidade do personagem de Van Damme parece nos remeter diretamente aos trejeitos de Jackie Chan, logo com seu ritmo frenético o filme desliza por completo na mais pura tensão. Isto sem deixar esse humor de lado.
Afinal, o ludismo total dos diretores de Hong Kong deste período fazem com que a câmera passe por todos os lugares, até mesmo dentro de um sapato. Apontar os trabalhos de De Palma ou de Argento como próximos ao que se fazia por aqui pode soar estranho, mas é preciso se atentar ao apreço que Hark tem em fazer a câmera ganhar vida, sem nunca perder a noção de espaço.
É o homem do exagero, do pitoresco, do brega, que constrói com eloquência o último ato deste filme em que Van Damme desliza por um labirinto de containers. Onde ele cria um elo que conecta a tradição de King Hu, em sua ação como mágica realizada pela montagem, e um cinema da câmera viva de Argento, por exemplo; se trata de fazer o frenesi ganhar forma.
O caos parece ser uma palavra chave para compreender o cinema de Hong Kong dos anos 80, Ann Hui faz um filme sobre os escombros dos sonhos que se institucionalizaram. É possível remeter aos filmes do pós-guerra de Rossellini, onde esse fotógrafo estrangeiro com todo seu valor humanista de “retratar a realidade” se desintegra. É preciso ver os filmes além de seus grandes temas ou dos seus grandes gestos. Muito mais que uma critica ao governo comunista do Vietnã, Os Refugiados do Barco (1982) de Hui é o retrato do horror, é um filme muito mais aterrorizante do que aquele que busca restabelecer o elo entre a humanidade e a esperança. Até mesmo o pôr do Sol deste filme parece desbotado, perdido, no meio da violência da qual os personagens parecem tão acostumados. É na figura da violência que se abre todo um teor caótico às imagens aparentemente calmas da diretora.
Apesar de todo embrulho de organizações e reorganizações de enredo, o filme de Hung se assume como um filme de passeio, num passeio com amigos especialmente. É claro que é um filme de comédia, e por isso mesmo é um filme de ação. Da luta corporal de Sammo Hung, das acrobacias de Jackie Chan à dança chapliana de Richard Ng é aí que reside o passeio, tanto que por vezes somos tomados por uma impressão de sketch, ou procedural, ao acompanharmos o cotidiano prosaico dessa grupo de ex-bandidos tornados mestres da limpeza.
Essa talvez seja a fraqueza do filme, estar sempre um pouco fragmentado, até mesmo a presença de Jackie Chan nos parece por vezes um pouco forçada. Ainda assim, é justamente nesse tempo levemente sem destino que Hung revela sua habilidade de direção, em que quase sempre mantem seu grupo como um todo no mesmo plano, e incrivelmente os faz funcionar como um todo organizado, cheio de vida.
A grande cena de Perdedores e Vencedores (1983), aquela em Jackie Chan entra numa perseguição com seus patins e acaba por gerar um grande acidente de carros, é nessa cena como um todo que se revela a comédia e a ação, o burlesco propriamente dito vivo, e em certo êxtase anárquico. Em certa medida, o alongamento cômico da cena, com o número interminável de carros nos remete ao engarrafamento crítico de Godard.
O Cinema de Hong Kong com certeza se projeta em consonância com um cinema burlesco à lá Buster Keaton. Sabemos que não é daí que eles tiram sua inspiração precisa, afinal a Escola de Opera de Pequim tem suas acrobacias, seus espetáculos, seus mestres.
Stephen Chow é de certo um mestre do cômico, se não uma figura das artes marciais, este assume todo o lado cômico de braços abertos, a ação bem realizada só existe em prol do humor. Apesar de nos situar dentro da estrutura de uma comédia romântica, todo o longa se arma como o padrão do gênero de Kung Fu, da derrocada ao treinamento, à batalha final, do mesmo modo que as referências irresistíveis à certos clássicos americanos se sobressaem como à Exterminador do Futuro e Rocky.
O que torna o exagero de Chow hilário em Love on Delivery (1994), seu frenesi completamente coerente, é de algum modo, o mesmo prazer que um Tsui Hark tem pelo movimento, é uma estranha graciosidade de suas loucuras imagéticas. Se lhe falta a coesão narrativa entre a batalha pelos diferentes pretendentes da personagem, Chow resolve todo novo elemento na história de forma visual.
É praticamente com base na surpresa, como o chiste, que o desenrolar da narrativa se dá. Toda cena em que parece que a história irá se resolver um novo elemento absurdo é introduzido, que nos faz rir e leva a história a um novo patamar de absurdo.
Sóbrio, mas carrega tão bem seu aspecto mais melodramático. Há tempos não se vê uma luta tão sanguinária e violenta em prol de desejos tão belos. O primeiro ato do filme, onde há de se juntar a narrativa destes personagens me parece um pouco menos interessante, mas quando finalmente há a cena caótica na prisão, em que Cheaung parece estar atento aos mínimos detalhes dentro do turbilhão de movimentos que finalmente se compreende o estatuto de todo este filme. É do desespero por viver e de dar a própria vida que movimenta todos os dois personagens.
É certo que a fonte principal de SPL2: O Guerreiro Mortal (2015) é o cinema de To, o maneirismo de um certo formalismo asséptico, quase atmosférico, mas carregado de uma paixão iconográfica. E aí que entra o papel dos detalhes, seja o lobo onírico, ou as mensagens de celular; na própria sequência da prisão, em que o celular aparece no primeiríssimo plano, e o caos opera na profundidade de campo; ou ainda na luta final, tão complexa, em que a gravata, a corrente, a caneta, a revista, nos surgem como intensificações tanto da violência, quanto da graciosidade.
To expõe aqui todo o seu romantismo. Não porque seus personagens fazem loucuras por amor, isto também, porém acima de tudo pela forma que filma os gestos de seus heróis, pela forma com que engrandece os mínimos gestos para que eles ses tornem ícones. Essa iconicidade é elevada ao máximo, ao ponto de tornar-se brega, ou melhor ela chega num limite absurdo entre uma breguice consciente e um solenidade excessiva, mas nunca irônica.
Sem ironia ao gosto do dia, A Hero Never Dies (1998) torna possível trabalhar num ponto limite ideal, ambíguo. A cena em que os dois capangas, nossos heróis, disputam o primeiro gole do vinho no bar, com a música melodramática tocando ao fundo é com certeza a forma ideal de seu cinema. É como se o tempo parasse, e os corpos, quase que imóveis, existissem pela atmosfera de sons, expressões e gestos mínimos.
Há um corte ideal, não entre as duas gangues, mas entre os capangas que confiam no destino de seu heroísmo e colocam seus corpos em direção à morte, enquanto os seus chefes buscam o destino como um conforto, uma segurança. Por isso mesmo, todo o interlúdio em que as esposas realizam seus atos de heroísmo (integrando o melodrama à trama) faz com que toda a jornada final se intensifique ao ponto dos mortos tomarem sua vingança. É a metafísica do heroísmo aludida em todo seu fatalismo que é exaltada quando todos os vidros explodem no último tiroteio.
Perdidos na noite escura, logo após uma veloz introdução de nomes e problemas, nos situamos numa história que é propositalmente confusa, como toda noite enevoada. O mundo dos capangas é essencialmente um mundo distinto daquele de seus chefes mafiosos. Enquanto, estes ficam sentados e às sombras, os capangas devem perder-se na noite, confundir-se cada vez mais àquilo que perseguem ou que fogem. O herói do filme é um policial corrupto que quer proteger um desses mafiosos, enquanto seu duplo — e essa ideia é levada às últimas consequências no filme — está à espreita em cada uma das cenas dos crimes que visita, em cada uma das suas ações.
Esse mistério e tensão entre estes dois personagens que mal se falam até as últimas cenas, é o que de alguma forma sustenta todo nosso interesse até o showdown do mundo espelhado. The Longest Nite (1998) emula o noir de Orson Welles, mas com a carga icônica de suas explosões e tiroteios. To exala o fatalismo de ser um herói ou vilão jogado à noite ao comando do destino( que nada mais é o mundo do crime), é justamente neste indiscernível que a longa noite nos faz se perder.
O jogo que se estabelece entre Andy Lau e Lau Chiang-Wan é de certo central para o filme, e sim, há todo um homoerotismo latente, mas os encantos se encontram nas tangentes. O mistério que existe para entendermos o que há nas intenções de nosso protagonismo que apenas sabemos, está para morrer; ou ainda o mais poderoso, seu encontro no ônibus com uma jovem mulher.
Então, seu secreto destino com seu inumerável deslizamento de aparências é aquilo que amplifica o interesse por tudo que está ao redor, além de lhe servir como peça chave para a aplicação de um certo vulgar; já o encontro no ônibus, é um sopro de vida, toda uma fascinação se desenvolve com o total silêncio. Onde mais um disfarce nos ocorre, mas que logo revela toda sua verdade.
Nisso, To parece ser verdadeiramente um mestre revelar em todas sua pompa artificial e cheio de eloquência visual uma espécie de verdadeiro, se no geral esse verdadeiro é associado ao destino escatológico de seus ícones, é também necessário dizer o quão esperanço da eternidade deste mesmo icônico, em especial neste filme. Afinal, em Jogo de Vingança (1999) a pergunta sobre o tempo se estabelece, ela é o crucial.
The Mission (1999) me parece conter uma das articulações máximas da obra de To, que talvez se atualize em Infiltrado (2016), em que uma grandiosa cena de ação acontece com o mínimo de movimento, como estátuas (aqui podemos dizer que até mesmo contém o mesmo prazer de Bava pelos corpos estatuários, copos modelos, manequins, bonecos, essa prazer de captar essa força do fixo, em que os objetos se alimentam do espaço).
É no inerte que ele consegue capturar uma espécie de abstração de toda a ação, pois está cena é sobre a eficácia da ordem simbólica entre esses homens, é quando finalmente a performance deles como grupo houvesse se assentado, e tudo o que se passou finalmente ganha poder de sentido. Cada gesto e ato é entendido, todos entrelaçados de modo fraternal. É justamente por isso que todo o último ato recebe sua poderosa gravidade. Um pacto é quebrado, ou melhor deve ser violado.
Como em seus outros filmes o código dos capangas precisa se fazer na violência de um fatalismo, em um mundo distinto daquele do chefe, sendo assim, em algum momento, é de se esperar que haja o rompimento, ou pelo menos a tensão ideal para a ebulição própria ordenação de outrora .Ao caos, o excesso pareciam o ideal de Hong Kong, To insere uma lentidão onde encontramos a astúcia da espera, é nisso consiste até mesmo a verdadeira saída da loucura do qual se envolvem, é quando o código fraternal dele suplanta toda a lógica determinista e fatalista que a Tríade os condena.
Me parece que no cinema de To, em que os corpos figuram em cena como verdadeiras estátuas no mundo metafísico do fatalismo heroico há uma rachadura, um problema. Morrer por seus companheiros ou por seu chefe? Morrer por suas próprias convicções, ou pelas ideias de outrem? Essa guerra interna está visível em todos os quatro filmes criminais citados aqui.
Porém, se suas obras de ação são mais conhecidas aqui no Ocidente, e são suas favoritas, afinal consegue explorar com maior poder a influência do cinema de Kurosawa, Leone e outros. Seu maior sucesso local se dá com suas comédias românticas.
Há uma característica muito explícita do cinema atualmente realizado por To. Uma tom um pouco asséptico, por vezes um formalismo que depura ainda mais seu cinema, onde a paralisia e organização cênica acabam por abrir espaço para uma abstração, porém ainda mais para a emoção.
A entrada de cabeça no mundo empresarial e da especulação financeira aqui não é irrelevante, pois é preciso entender o risco de apostar no amor, que de algum modo lhe coloca na esteira das comédias românticas de Hawks, as metáforas insistentes das relações e do trabalho. Zixin é uma protagonista até mesmo usual, na latência da princesa, visto que possui um sapo de seu ex-namorado, ou seria, um príncipe em sua vida já se tornou sapo.
Uma funcionária de uma empresa que acaba enlaçada por dois encontros precisos, de um lado Qihong, um homem que quando a conhece vê nela a silhueta de sua inspiração, tanto quanto ele a inspira; do outro lado She-ran um homem de negócios muito rico, que estabelece seu amor por ela numa inventiva troca de expressões não verbais entra as janelas desumanas dos prédios da bolsa de valores.
A interação entre janelas, que não só evoca Hitchcock de forma bem direta, mas principalmente nos dá um espaço de extrema visibilidade, onde os personagens distantes interagem constantemente numa gestualidade total, mas que prova-se sempre ambígua, tão incerta. É digno de nota que esses vidros confundem-se como vitrines, enquanto esses dois homens parecem competir pelo amor desta mulher.
Não proponho que há uma crítica tenaz de To aqui, mas a revelação de uma abstração poderosa, já que o filme parece a todo momento nos perguntar, tanto quanto para a personagem, com qual critério escolho? O singelo gesto ou o espalhafatoso? Há escolha certa? Há aposta, há o risco, é como beijar o sapo, não saberá de fato se este irá ser o príncipe até beijá-lo.
O final feliz do primeiro filme parecia — em aparência — advogar pela escolha certa. Mas este segundo filme prova que não, ele prova que há um radicalismo diferente no absurdo das vitrines. Isto é uma contraparte, expressa pela presença de dois novos personagens que tornam o triângulo amoroso de outrora complexo.
Com Qi Hong ausente, terminando a construção de um prédio, Zixin trabalha ainda nesse universo, dessa vez subordinada à Yang Yang. Shen Ren tem uma relação desenvolvida justamente com ela, mas nada mudou ainda em seu universo, além disso ainda há Paul, irmão de nossa protagonista.
É difícil definir os protagonistas deste segundo filme, mas é certo que Yang Yang e Paul ocupam um papel de suma importância, a união deles se dá com o polvo (não mais o sapo, não mais a história da paixão do espetáculo). Esse animalzinho acerta previsões daqueles que vão perder, apenas dos que perdem, revela portanto a escolha errada. Isto nos dá a compreender que neste amor de vitrine só há perdedores, o príncipe encantado já morreu no filme anterior.
Mas é claro que há a confusão dos gestos ambíguos, a falsa certeza da transparência, isto é todo o complexo que se dá entre os cinco no filme. Shen Ren ainda não desistiu de Zixin, Yang Yang ainda não desistiu dele, Paul não desistiu dela, Qihong claramente fica de escanteio.
Se existem recursos que se repetem, há também uma atualização extrema neste centro — Paul e Yang Yang, que em gestos mais singelos e simples parecem produzir algo distinto que a guerra do triângulo amoroso, mas é certo que esse universo não está pronto para aceitar isto, é por isso que este segundo filme também tem seu potencial desolador. Afinal, as escolhas erradas e as escolhas certas são indiscerníveis, a liberdade do polvo, ou sua magia reside insistentemente na aposta que nos coloca em direção ao aberto, pois é preciso escolher, mesmo sabendo da obsedante chance de dar errado.
— — — — — — — — — — — — — — — — — — — — — -
Uma Mulher sob Influência (A Woman Under Influence, 1974) — John Cassavetes
Emabalos de Sábado à Noite (Saturday Night fever, 1977) — John Badlam
Os Cinco Venenos do Shaolin (Wu du, 1978) — Chang Cheh
Dois Campeões do Shaolin (Shao Lin yu Wu Dang, 1980) — Chang Cheh
Não Brinque com Fogo (Di yi lei xing wei xian, 1980) — Tsui Hark
Os Refugiados do Barco (Tau ban no hoi, 1982) — Ann Hui
O Super Dragão Chinês (Ren zhe wu di, 1982) — Chang Cheh
48 Horas (48 Hours, 1982) — Walter Hill
Perdedores e Vencedores (Qi mou miao ji: Wu fu xing, 1983) — Sammo Hung
Eles Vivem (They Live, 1988) — John Carpenter
Love on Delivery (Poh wai ji wong, 1994) — Stephen Chow
A Cura (Cure, 1997) — Kiyoshi Kurosawa
Golpe Fulminante (Knock Off, 1998) — Tsui Hark
A Hero Never Dies (Chan sam ying hung, 1998) — Johnnie To
The Longest Nite (Aam fa, 1998) — Patrick Yau e Johnnie To
Jogo de Vingança (Am zin, 1999) — Johnnie To
The Mission (Cheung foh, 1999) — Johnnie To
Só um Beijo, Por Favor (Un baiser s’il vous plaît, 2007) — Emmanuel Mouret
Don’t Go Breaking My Heart (Daan san nam nui, 2011) — Johnnie To
Don’t Go Breaking My Heart 2 (Daan san nam nui 2, 2014) — Johnnie To
SPL2: O Guerreiro Mortal (Saat po long 2, 2015) — Cheang Pou-soi
*Muitos dos filmes não tem título português