Sobre filmes vistos em Fevereiro, 2021
Esse mês por algum motivo surgiu a vontade de assistir filmes de ação dos anos 80 e 90. A realidade é que este gênero, como o entendemos hoje só passou a existir nesse período, até então, o grande espetáculo da ação surgia nos filmes de aventura, nos filmes policiais, ou nos western. Vi menos filmes que o mês anterior, mas me aprofundei mais na escrita sobre eles, principalmente em relação ao Dario Argento. Mas é a tendência, o ano no Brasil só começa depois do Carnaval.
Tivemos Carnaval? É certo que alguns brasileiros continuam a festejar. Fevereiro foi um mês estranho, nunca 28 dias pareceram maiores que 30. Mas, aos filmes.
Terror
Assisti à três filmes do Argento que gostaria de comentar com mais detalhe, pois acredito que eles trazem uma reflexão importante sobre o estilo do diretor. Afinal, costumam colocá-lo dentro da categoria do ‘maneirismo’. Dizem que o maneirismo é um exercício vazio. Daney chega a dizer que é um trabalho de falso funcionalismo, onde tudo é tratado como peças num jogo que não serve à nada. Ele diz isso especialmente de Mansão do Inferno (1980). Do mesmo modo, há a ideia de que o maneirismo seria um trabalho de forma tardia, ou mesmo de anamorfose, um cinema que só olha com sua própria história, em que retrabalha motivos, ou os distorce.
Fenômeno (1985) poderia ser o cúmulo disso ao parecer mesclar diversas tendências do próprio cinema de Argento, mas ao mesmo tempo, ele é visualmente menos carregado que Suspiria (1977), por exemplo, e menos caótico que Mansão do Inferno (1980). Se ele segue sua narrativa de contos de fadas, às avessas, é simplesmente por ser um conceito intrínseco ao seu estilo, não por desejar conscientemente se repetir para se deformar. O conhecimento que Argento tem do que veio antes não o perturba, mas o auxilia. A busca pelos efeitos formais é o principal e atingir a opulência do belo grotesco é a seu modo atingir a moral da história.
Existe um número grande de absurdos que a narrativa apresenta, telepatia com insetos, um macaco, um assassino, uma criatura inominável, uma escola estranha, o sonambulismo da protagonista, tudo isso parece gerar certa incongruência e, talvez, até mesmo a destruição do ritmo e da harmonia das peripécia narrativas. Mas muito mais que negar ou deformar o passado — como certa cena parece indicar, Argento está eliminando a hierarquia entre as culturas. Iron Maiden e Opera devem funcionar, o mais alto e o mais baixo, tudo se sintetiza na forma com que filma Jennifer Connelly.
A beleza maior com a luz pintando seu rosto, e os insetos invadindo a casa, ou ainda, seu corpo num poço de cadáveres e depois saindo do mar em chamas. A opulência, esse exagero que domina as mortes de seus filmes, carrega os gestos precisos da beleza, mas a violência e o grotesco da feiura.
Mas se este é de alguma forma a perfeição da filosofia de sua obra, Terror na Opera (1987) encarna com ainda mais força a aventura do olhar que seu estilo exige. O ato de ver no cinema de Argento nunca se reduz aos olhos, como podemos escutar muito bem em seus filmes, a música é tão material quanto as luzes, os movimentos de câmera e a violência. Mas é certo que o olhar tem seu privilégio aqui.
Não é à toa que o filme se inicia com um olhar distinto, o olhar de um corvo para um ensaio de opera. Se era comum em seus filmes tomarmos a perspectiva do assassino, aqui parece que há uma perspectiva aberrante, visto que câmera toma a perspectiva de vários personagens diferentes, do alto, embaixo, lentamente, velozmente, é quando esse jogo de múltiplas perspectivas se realiza que podemos ter certeza que é um filme sobre a complexidade do olhar.
Nossa protagonista, uma jovem cantora de opera, é obrigada pelo assassino a olhar seus atos maléficos. O risco de olhar tanto é perder os próprios o olhos, fato que ocorre no filme com alguns personagens, quanto enlouquecer. Seus personagens instigados pelo o mistério do que veem, assim como nós, espectadores, instigados por essas imagens de violência do qual assumimos diversas perspectivas não somos nem vítimas, nem assassinos, estamos apenas vivenciado a aventura do olhar, é uma aventura de vida ou morte, é claro.
O final do longa, o seu final quase que anti-climático, como em Fenômeno (1985) com seus sucessivos clímax, articula uma ideia muito interessante, afinal é o oposto de Tenebre (1982). Uma forma de ascese que não desemboca na loucura, mas numa libertação.
Já Trauma (1993) é o seu primeiro longa-metragem na América. O filme foi acusado de duas coisas opostas. De um lado, é um filme genérico, em que seu visual sombrio não difere em nada de outros filmes policiais dos anos 90; do outro, é um filme que Argento se repete ao máximo. O grito na chuva de Asia Argento nos leva de volta à Tenebre (1982) com o grito de sua mãe, a atriz Daria Nicolodi; e tantos outros detalhes.
Ou seja, é um filme que soou impessoal demais para uns, assim como foi o Argento se repetindo. Mas é nas sutilezas que esse filme vive, principalmente pensando no giallo. Argento utiliza os tropos desse gênero em todos os seus filmes, e a maior parte das repetições se dão em consequência dessa utilização, ele explora sua fórmula principal, aquele que torna o protagonista do filme no investigador.
Ver um ato de terror total, mas perder-se em sua totalidade. Aqui, sua personagem traumatizada possui tantas imagens como essa que se torna quase impossível ela reconhecer o que há por trás do terror das imagens.
É inevitável fazer essa relação de linhagem, os movimentos de câmera de Argento, a forma com que passeia pelos espaço veio da inspiração maior de Mario Bava. No mês passado, eu salientava o poder do uso do décor em seus filmes, a materialidade de suas imagens. O Ciclo do Pavor (1966) está dentro desse jogo, um conto gótico de fantasmas.
A câmera se apodera do espaço, assume o ponto de vistas de certas personagens, ganha um poderoso efeito cinético, é nesse uso preciso das pequenas velocidades no interior do plano que reside o terror do filme. E se o teor de histórias de espíritos pode criar um aspecto de transcendência iminente, é precisos entender o poder material das bonecas (que entra na série das estátuas, e das manequins), ou da própria médium que precisa canalizar o processo. O segredo da comunidade aqui está guardado entre as linhagens de sangue e as mansões antigas, as heranças materiais. Se há fantasmas ou fantasias, é porque há ruínas, ou seja histórias.
A sua câmera se torna mais solta em Seis Mulheres para o Assassino(1964), aqui ela flutua pelos ambientes sem o signo do vivo, constituindo o mundo material de Bava, onde os corpos e figuras tem seus valores na fisicalidade e silhueta que podem proporcionar. Mesmo não estando no universo das mansões antigas, nas ruínas de uma aristocracia, ainda há o primordial.
O jogo do décor é a carne sensível da imagem, seja as cores das luzes, das cortinas, as esculturas, as folhas, mas principalmente as manequins. Há uma poderosa relação em voga entre as modelos do filmes, que são mortas uma a uma, por motivos obscuros, e os manequins que surgem de sobressalto no filme. Aliás, essa é a figura primordial de seu cinema, o manequim ou a estátua, que costumeiramente indicava o terror de uma figura do passado, agora com todo poder indica o poder de uma figura do presente.
Não mais uma aristocracia com seus desejos transcendentais, eternos, mas um aristocracia niilista, onde tudo só tem valor por se tornar mercadoria. As relações são todas permeadas por um vazio abissal, o diário da primeira vítima revela segredos, porém, no fundo só nos revela a vacuidade própria desse universo.
Como já havia discutido anteriormente. É de um diálogo um pouco subterrâneo que a obra de Bava se constrói, especialmente com Roger Corman. Em A Orgia da Morte (1964), o grande castelo não nos remete nunca a uma mansão mal assombrada, por isso, é um dos seus filmes mais distintos, onde encena o teatro da elite e a sua morte orgiástica, não mais as pequenas histórias das nobres famílias perdidas em mansões desconhecidas, mas o centro do poder. A última sequência em que a dança da morte se realiza é algo deslumbrante, e consegue capturar por outra via os efeitos sensoriais do conto de Poe.
De uma linhagem à outra, o estilo de Corman sempre nos aparenta ter uma certa urgência, assim como o cinema de George A. Romero. O Exército do Extermínio (1973) tem um senso de caos e urgência muito forte, demoramos bastante tempo até para entender o que os militares estão fazendo, o que o vírus causa, como lidar com toda a situação. Em certo sentido, nas mãos de gênios do cinema B, esse urgência se torna poderosa, pelo fato de não terem medo da frontalidade, sem nunca cair em certo miserabilismo tão comum. Assim, o que fazer quando não sabemos diferenciar infectados de não infectados, como é possível proteger o mundo? E se a loucura é uma doença contagiosa, o que separa ela da sanidade? Esse indiscernível não é consequência da maldade humana, ou é causada pela dificuldade de comunicação pela urgência da situação, me parece que esse indiscernível é, na realidade, a causa do próprio caos.
Além disso, assisti à dois filmes de horror dos anos 80 que bebem muito do cinema de ação. A Bruma Assassina(1980) de John Carpenter e A Morte pede Carona(1986) de Robert Harmon.
O primeiro elabora a dinâmica de grupo hawksiana, o espaço é composto por uma geografia criativa, Carpenter praticamente expõe um mapa onde a ação se desenrolará, quais são os personagens e que laços eles têm com o espaço. Se em Halloween (1978) as sombras constantes e o tempo de ausência de inimigo em tela nos assustava, aqui pelo contrário, há um luz poderosa e a fumaça sempre demarcando uma presença, inevitável. Além disso, o ritmo constante, a progressão sem parar da tensão se articula com perfeição com as próprias ideias do filme, em que o território em que vivem está sendo perseguido por fantasmas do passado. Não há como fugir das consequências da história, que chegam como os ponteiros de um relógio.
No caso de Harmon, ele tem certa influência de Michael Cimino, ao nos apresentar o espaço das estradas americanas com certo misticismo, não aquele romântico, mas um desolador. O filme é exagerado e até mesmo espalhafatoso. Mas a construção sobrenatural que se dá entre o jovem perseguido e o psicopata é muito poderosa. Rutger Hauer assume a estranheza de um homem que não tem passado, nem futuro, não tem nome, incompreensível, que vive nesse eterno meio que é as estradas americanas. É o encontro com a própria morte.
Ação
O cinema de ação parece ter seu início, como um gênero articulado, a partir dos anos 80. É certo que alguns filmes do final dos anos 60 e dos anos 70 já estavam anunciado sua chegada, principalmente com o cinema policial. A virada se dá com o apreço ao espetáculo, para além da narrativa. Todos os filmes citados aqui recebem essa crítica de ser um filme que apenas se importa com o espetáculo.
Nunca entendi como levam adiante a divisão aristotélica do espetáculo e narrativa, principalmente para o cinema, em que assistimos tudo de forma amalgamada, dito isso, penso aqui que McTiernan estabelece um certo paradigma, mas não no sentido de que será copiado ostensivamente (como de fato foi), mas principalmente no sentido construir um equilíbrio poderoso de todas as articulações dramáticas e o seu esmero pela condução temporal dos planos. Especialmente em seus filmes O Predador (1987) e Duro de Matar (1988).
Existem duas coisas muito importantes e de fato interessantes nesse filme. A primeira é o trabalho de McTiernan em relação à mescla de gêneros. Se o filme se inicia como um filme na esteira de Rambo, aos poucos vai se tornando uma slasher intenso. O recurso do ponto de vista do assassino é usado de maneira não só a nos causar o medo usual, afinal, ele sempre sabe onde todos estão, mas no meio dessa floresta ninguém sabe onde ele está, mas também já acentua sua incongruência com a visão de calor, nos faz pensar que o que eles estão enfrentando está muito além de suas capacidades.
O início do filme, mais focado nas sequências de ação explosiva, pode soar um pouco desinteressante, mas é possível sentir poder de uma cineasta direto, conciso, um filme que poderia ser recheado de excessos é sucinto num ritmo tenso, onde pouco a pouco esses americanos a intervir na política externa se vem perseguidos um a um pelo predador de outro planeta. É, então, no último ato, onde Schwarzenegger deve se despir de toda sua caracterização, que temos com mais força um trabalho sobre a figura. A persona de Schwarzenegger é trabalhada em todo o filme exatamente parece que nesse final pudéssemos sentir o perigo e o terror de seu inimigo. Afinal, ao tirar a máscara de predador, ele se assusta com o que vê e o espelhamento fecha seu círculo.
Em Duro de Matar (1988), Bruce Willis não é uma máquina de guerra como os brucutus dos anos 80, como o próprio Schwarzenegger, e talvez por isso, sua escolha seja ainda mais acertada, é muito mais fácil construir sua vulnerabilidade e tornar por isso mesmo a batalha pela sobrevivência ainda mais interessante.
Sua posição de homem de costumes que rivaliza com os homens do dinheiro é o que constrói a organização espacial do drama, a concepção labiríntica do prédio empresarial nos faz entendê-lo como parasita no sistema; se o protagonista se diferencia como um todo dos companheiros de trabalho de sua esposa, do mesmo modo o vilão se assemelha a eles. Assim, a implosão do prédio ocorre por um único homem, não por uma instituição como a polícia, seu costume não é o das instituições, mas de uma ética.
Aliás, sua aliança se constrói justamente com um policial que parece deslocado de sua instituição. Portanto, o movimento de câmera que McTirernan impõe à todo filme, não só acentua a tensão, mas o poder próprio da realização da ação. A cena final, em seu Natal catástrofe, é a implosão de um mundo para a resistência de um outro.
Imergir-se como uma parasita, uma máquina acoplada, a uma sistema de imageria de outra cultura. É assim que podemos caracterizar a entrada de Verhoeven no universo americano, principalmente este dos anos 80, onde sempre me parece ser o auge de uma certa alucinação do consumismo orientada pela TV.
Robocop — O Policial do Futuro (1987) tem, em primeiro lugar, um certo incômodo, principalmente, sendo visto hoje em dia, não há nada que nos indique que estamos num futuro ou algo do tipo, estamos no universo mais comum possível de certo cinema americano, o mundo policial, o mundo empresarial e o mundo jornalístico. A primeira máquina de teste surge destoante, mas a construção do policial perfeito, infalível é ainda mais poderosa, não é à toa a discrepância de todos os seus atos em relação aos criminosos, em especial a cena em que o posto de gasolina explode, e em meio às chamas, sem esboçar um sinal de vida, ele continua sua caçada.
É na mistura desses três universos que encontramos o jogo com a imageria, as imagens da TV surgem sem parar, com suas notícias, propagandas, hipersimuladas; do mesmo modo segue-se o imparável do lucro, o robô só é construído porque vende; por fim, a hiper-violência policial que se otimiza, para usarmos um termo tão caro ao meio empresarial, com tamanha tecnologia. Mas não há terror às imagens, antes disso, existe outro tipo de imagem, a da memória, a da fotografia em família, são essas imagens que tornam Robocop muito mais que uma hiper crítica, mas também um absurdo drama humano, de um homem que perdeu seu corpo para esses universos enlaçados (“estava no contrato”).
Seguindo um modelo mais clássico este filme também realiza a crítica da transformação do homem em máquina, e vice-versa. Com Exterminador do Futuro 2 — O Julgamento Final (1991) Cameron realiza um filme surpreendente, em que consegue articular a jornada de cada personagem, a partir de alguma subversão.
O encontro entre um rebelde John com o Exterminador se dá num momento de total incerteza, quem é o inimigo? O policial ou motoqueiro? Essa indeterminação é crucial para que a articulação dos personagens se torne ainda mais forte, afinal é como se ele tivesse de encontro com algo que não deveria confiar de forma alguma. Mas num pequeno gesto dentro de uma cena grandiosa nós entendemos, mas principalmente John entende de que lado deve ficar.
Do mesmo modo, o encontro, ou reencontro de Sarah com com Exterminador, a forma com que a cena fica lenta, o desespero. Mesmo que nós já saibamos que é preciso confiar nessa máquina, o efeito, novamente, precisa surgir, para que o acordo, a confiança se realiza de maneira mais poderosa. Assim, se Sarah não tem esperanças, ela só pode ganhar esta de volta a partir desse encontro completamente adverso, o gesto ideal de confiança é que reside na despedida final, só isso pode abrir um futuro. Se existe algo de singelo no Exterminador de Schwarzenegger, por certo aprendizado humano, ainda há o horror das possibilidades em T1000, em que se torna completamente líquido, podendo assumir qualquer forma e, não tendo, portanto, qualquer humanidade.
Os anos 90, foi o ano em que houve um bom número de filmes realizados pelos cineastas de Ação de Hong Kong. Em que certos astros de Hollywood podiam assumir suas personas. Van Damme foi o principal ator escolhido, pela sua habilidade com o corpo, mesmo sendo um cinema centralizado no herói, como o americano — centralidade da persona —, o que há de mais poderoso é a imersão no espetáculo.
Assim, em O Alvo (1993), o ponto de vista da vítima, as ruas vazias e estranhas, a arma do crime voando no ar, a violência, todo o início desse filme de Woo lembra um dito cinema maneirista de De Palma à Dario Argento. O cinema que se dá a ver. Essa construção sensorial e imersiva não se dá em função do nada, se dá por necessidade de tornar toda ação intensa, é a construção do momento contemplativo ou absurdo com qual o herói precisa superar ou vivenciar. Existe uma espécie de magia que conduz a narrativa, quando os seus usuais pombos surgem até mesmo para orientar o protagonista em sua jornada.
O herói se envolve na trama como que sem motivo, não há passado, nem futuro, ele apenas pretende defender esta mulher que teve seu pai assassinado. Van Damme parece uma figura até ideal para trabalhar com um diretor vindo de Hong Kong, seu corpo se adapta perfeitamente ao ritmo e as operações complexas dos planos de Woo. É até interessante como é estrangeiro, nos parece até deslocado desse universo. A musicalidade de Woo é outro fator que movimenta o filme, a mistura de explosões, slow motion, pneus de motos, tiros, gritos e socos, compõem um grande emaranhado rítmico, desde da primeira cena, a cidade vazia à noite, onde há a expressividade do suspense; até as últimas cenas, a floresta e o circo com o explosivo e pitoresco de uma expressividade da ação.
1944
À Meia Luz (1944) de George Cukor e Quando desceram as Trevas (1944) de Lang são filmes fantasmagóricos, se um o primeiro nos traduz a um estilo mais clássico de horror gótico revelando os poderes da manipulação sobre a mulher; o segundo nos arrasta a uma espécie de fábula paranoica do qual a culpa se encarna nos mais misteriosos momento.
Talvez o maior feito de Cukor é trabalhar a relação bizarra deles dois, que se estabelece tanto pelo jogo da performance, como pelos fantasmas das luzes. De um lado, Boyer, que em toda sua elegância soa suspeito, quase como um vampiro a sugar a energia daqueles a sua volta, tudo e todos fazem parte de seu jogo de controle; do outro lado Bergman, que surge com sua figura usual, mas vai se degradando. Cukor constrói close-ups tão poderosos, onde a câmera parece embaçada, cada vez evocando a loucura deste processo. Na clausura dessa mansão e rodeados pela névoa externa, tudo se torna mais fantasmático e cada objeto tem um destino peculiar. O filme revela com precisão o procedimento de Boyer é fazer desaparecer toda e qualquer imagem, é tornar tudo ilusão, sem a imagem Bergman não pode sonhar, não pode nem mesmo imaginar, nada mais manipulador que roubar nossa imaginação.
Essa imaginação que por vezes é uma quimera total, mas também é tão necessária para seguir em frente. Em Quando desceram as Trevas (1944), Ray Milland deixa o hospital psiquiátrico numa cena em que conta as horas na escuridão, é possível dizer que Lang parece nos instalar a dúvida desde o princípio, será que este homem não é louco? Toda sua viagem perturbadora se desenvolve por conta de um bolo, ou por conta de um acaso.
As imagens, as imagens do passado ou dos nossos amores, são elas que nos atormentam. Essa sequência em que recebe o bolo e é perseguido por conta disso, em particular tem um grau de pesadelo, por seu longo silêncio, seus movimentos de câmera aberrantes, a fumaça, o bombardeio, o acaso, que nos salientam o deslocamento do protagonista. Lang faz um uso muito preciso do seus recursos expressionistas, tanto as sombras, as distorções, a fumaça, é preciso dizer que ele consegue criar a atmosfera do fantástico, o centro do seu cinema mudo, nos seus suspense urbanos Desde que Ray Milland pega esse bolo entra numa conspiração absurda, onde os nazistas estão envolvidas em algum plano diabólico, é certo que havia algo neste bolo. Mas a paranoia se estabelece com tamanho poder, pelo simples fato do protagonista se vê fraturado em sua culpa, uma culpa fatal que será usada contra ele.
Lang compõe muito bem esse problema, o problema de ter cometido um ato, que comumente é considerado amoral para a sociedade, mas que suas circunstâncias sempre o justificam. Aliás, é necessário demonstrar o quanto a repetição, o sonho e a culpa estão entrelaçadas nestes filmes do diretor, a repetição, com apagar das luzes, na sessão espiritual e a no quarto de hotel, onde uma frase profere o absurdo da culpa nos faz sentir com todo o poder as elaborações de Lang. E se a imagem que enlouquece, é ela também que nos salva.
Clássicos
Howard Hawks sempre foi o diretor da organização grupal, ou seja, seus filmes sempre se dispõem a unir os mais inusitados indivíduos, tanto suas comédias quanto seus filmes de ação, é sempre sobre a relação destes personagens com o grupo que fazem parte. Por isso mesmo, são narrativas sobre construção e reconstrução do que se é.
A cena final de Levada da Breca (1938) é com certeza a síntese e o fechamento ideal para o filme. O cientista, na mesma posição da primeira cena do filme, está no alto a montar as últimas peças da estrutura óssea do dinossauro, quando Susan simplesmente destrói as estruturas daquilo que deveria ser seu saber, o que ele pode fazer além de aceitar a alegria do fantástico? Nesse sentido, Susan é como um elemento fantástico, e até mesmo burlesco, pelo seu poder de contaminar tudo que está a sua volta num jogo louco.
Assim, Huxley vai deixando-se levar, indo da luminosidade do museu à escuridão de uma floresta, da busca por ossos de criaturas mortas à busca de um leopardo vivo. É como uma jornada que aquilo que há de mais humano vai se tornando mais animalesco, não é à toa que o cientista passa grande parte do filme cavando num jardim, junto com um cachorro. Mas é preciso dizer que esse jornada ao mais animal, também se dá pela instabilidade das identidades.
Susan troca de carros, “Esse carro não é meu”, ou ainda a invenção de nomes, os duplos e as histórias falsas, que faz com que a aventura da língua guie a narrativa tanto quanto o animalesco. Ou seja, é nessa tensão que a aventura se dá. Se de fato não enxergamos um amor se desenvolvendo, entre estes dois, o que vemos é a produção da alegria, as risadas de Hepburn, os improvisos dos dois compõem, a forma com que os diálogos se desenvolvem, é como se Hawks criasse um ambiente perfeito para que os atores em toda leveza inventassem o mundo, ou melhor dessem consistência ao universo já criado.
Já Rio Lobo (1970) me parece um filme um pouco desencantado de Hawks, em que a formação do grupo acaba acontecendo sem nunca se firmar como uma espécie de amizade ou amor. Não é à toa que é seu último filme. O mundo é perigoso, as ruas, principalmente elas, são os espaços mais perigosos e por isso, Hawks filma as janelas com precisão na profundidade de campo. Parece que não é possível nunca confiar plenamente em ninguém, por isso que McNally e Frenchy tem uma parceria completamente avulsa, até mesmo o surgimento de Delaney, a mulher que busca vingança, não causa a completa loucura do mundo masculino, é como se não houvesse mais esperanças de que os elementos usados pudessem enlouquecer esse universo.
Mas ele vai se movimentar, pois quer queira quer não, um grupo foi formado. Hawks filma ação com muita precisão tanto o assalto ao trem que é bem genioso, quanto o tiroteio final, é aí que podemos ver melhor como seu estilo consegue construir compor a formação grupal, que ao fim do filme acaba sendo muito mais numerosa. É poderoso saber que se o grupo que quer se vingar se organiza numa coesão momentânea, o grupo vilanesco possui uma coesão ainda mais frágil.
E haverá um dia alguém que filme o céu e o horizonte como John Ford? Rio Grande (1950) não é um de seus filmes mais falados, é por muitos até mesmo esquecido, mas é surpreendente como usa toda a evocação familiar e ambiental para construir uma atmosfera melancólica.
A história se passa inteiramente no universo da cavalaria no século XIX . Por isso, para muitos é um filme sobre militarismo, mas no fundo todo o drama se desenvolve em questões familiares. Afinal, tudo se passa na tensão entre o dever de Yorke para com o regimento e sua família. Com isso, seu filho entra a contragosto no seu universo, do mesmo modo que sua mulher volta para tentar pagar a saída do filho, e novamente esse dever aparecer para cindir a família. Mas não é apenas isso.
Existe um problema latente que é perfeitamente capturado entre o olhar desse casal, pois eles estavam em lados diferentes durante a Guerra Civil. Toda a intriga com os indígenas, mesmo que componham os grandes momentos de ação do filme, me parecem servir muita mais como pano de fundo para o desenvolvimento desta cisão primordial entre o amor da família e o horror do homem da guerra. Há sim uma espécie de conciliação que Ford habilmente nos dá entre os planos aberto de Yorke no vasto céu, e os planos de sua esposa, Kathleen, com os cavalos passando ao fundo, é uma cisão que não se completa. Por isso o poder ambíguo do amor familiar é pouco dito, mas visto, numa absorção aos deveres sociais que apagam os homens.
Como de costume num filme de Billy Wilder, os personagens precisam fingir ser o que não são, para então, transformar-se por conta dessa personificação. De fato, essa concepção narrativa é muito intrigante, por vezes ele a usa de forma muito direta como em Quanto Mais Quente Melhor!(1959) ou A Incrível Suzana (1943), outras vezes de maneira mais sutil como em Se Meu Apartamento Falasse (1960). Aqui existem de certo três personagens que se escondem em figuras. O nosso protagonista, que já é dado como morto desde o início, entra numa mansão mal assombrada com fantasmas do cinema mudo, fingindo ser um roteirista de renome, para, então fingir um tanto mais de coisas com seus ternos caros.
Tanto o mordomo, quanto a dona da casa, o ícone do cinema mudo Norma Desmond, se travestem em personagens. Essa ícone só existe quando a luz incide sobre seu rosto, talvez sofra menos por acreditar plenamente que ela é aquilo que não é, enquanto o mordomo e o protagonista sofram as consequência de se prender a essa loucura.
Mas há também um poder pelas peças reais usadas no filme, Stroheim, DeMille, Keaton, Swanson, todos grandes estrelas do cinema mudo. Claro que alguns sobreviveram ao falado, mas não com a mesma envergadura. Nesse sentido, o filme parece ainda mais como uma história de fantasmas, tanto por seu narrador morto, quanto pela melancolia inerente à cisão do cinema mudo ao falado. O lado cômico de Wilder só se aflora aqui, nessa imensidão tristonha, a partir de certo grotesco que se apodera de Norma, mas é necessário dizer que o olhar do mordomo para ela demonstra a mais perfeita sensibilidade.
Os Pássaros (1963) foi um filme que marcou a carreira de Hitchcock, por ser quase um filme sobrenatural, até mesmo apocalíptico. Dos pássaros de amor, que iniciam o filme, aos pássaros em revolta, me pergunto o que ocorreu? O que diferencia as situações? Fato é que a fala de Mitch, chamando os passarinhos do mesmo nome da nossa protagonista, e os colocando de volta na gaiola, a desafia a lhe entregar pessoalmente um recado para ele. Esta situação nos anuncia que uma inversão irá ocorrer.
Os pássaro estarão à solta, por toda a parte, em todos os espaços, os humanos deverão se engaiolar em suas casas, tampar todos os buracos. Não há nenhuma explicação aparente para essa mudança repentina. O Apocalipse acontece justamente quando essa mulher toma uma certa decisão impulsiva em direção à felicidade, uma decisão libidinosa que desestrutura a família de Mitch, muito por conta dele estar no lugar do pai que jaz morto.
Hitchcock consegue construir o sentimento de destruição de um universo comunitário com a chegada desse elemento estranho e desejante com muita força, não só os pássaros estão por toda parte, mas a comunidade se sente atacada, e não consegue compreender o que está acontecendo. Mas apesar disso tudo ela se entrega de corpo e alma ao que deseja e talvez por isso aquela cena final, onde o carro, rodeado pelos pássaros reluz como uma carruagem ao paraíso.
O grande charme deste segundo filme com o Inspetor Clouseau, o Dom Quixote hitchcockiano, não é só os erros e acertos indiretos com que ele realiza sua investigação. Mas principalmente o quão intricado e complexo ele pode tornar a investigação. A sequência de abertura do filme tem um poder absurdo em construir o mistério. Aliás, esses longos planos em movimento, anunciam as inúmeras relações dentro daquela mansão. Ao centralizar, portanto, a narrativa no inspetor, Edwards pode com mais liberdade fazer a narrativa se contorcer e se enrolar, assim as decisões de Clouseau parecem sempre nos guiar para mais longe da resposta, e talvez ainda mais perto dela.
De alguma forma, o filme consegue se tornar ainda mais misterioso e divertido, é imprescindível entender que para Edwards o grande mistério não é “quem foi assassino?”, mas “o que Clouseau vai fazer agora?”. Peter Sellers em sua incorporação cheia de trejeitos e sotaques é divertida, compondo esse corpo burlesco. Mesmo se em nenhum momento chegamos ao nível de caos do filme anterior (tanto a festa, quanto o próprio quarto do inspetor), aqui tudo gira em torno de seus gestos, e por isso, o burlesco se expande em cada rastro de narrativa.
Apesar do alarde em relação à improvisação de Sombras (1959), é preciso de dizer que o corte mais conhecido é o segundo (por questões polêmicas de um grande comentador da obra). Neste segundo corte, já havia certas coisas que haviam dado certo e que foram retrabalhadas, porém não é a ideia de que há improviso que torna o poder deste filme de Cassavetes tão forte.
É simplesmente a forma com que esses personagens habitam o mesmo espaço, a forma que sua atenção está completamente ligado aos personagens, como a câmera se movimenta, os olhares, os gestos, existe algo poderoso, pelo simples fato de conseguir capturar essa existência. Não há grandes composições, nem nada do tipo, mas um olhar apurado para sensibilidade destes personagens. Não adianta muito tentar buscar a “captura das coisas mesmas”, Cassavetes passeia com a câmera, mas nunca em excesso, o filme se organiza com certa harmonia entre a montagem e os gesto, se há improviso ele deve ser renomeado de “sensibilidade para o ato”.
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Filmes Citados em ordem de lançamento
Levada da Breca (Bringing Up Baby, 1938) — Howard Hawks
À Meia Luz (Gaslight, 1944) — George Cukor
Quando desceram as Trevas (Ministry of Fear, 1944) — Fritz Lang
Rio Grande (idem, 1950) — John Ford
Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950) — Billy Wilder
Sombras (Shadows, 1959) — John Cassavetes
Os Pássaros (The Birds, 1963) — Alfred Hitchcock
Seis Mulheres para o Assassino (Sei donne per l’assassino, 1964) — Mario Bava
A Orgia da Morte (The Masque of Red Death, 1964) — Roger Corman
Um Tiro no Escuro (A Shot in the Dark, 1964) — Blake Edwards
Ciclo do Pavor (Operazione Paura, 1966) — Mario Bava
Rio Lobo (Idem, 1970) — Howard Hawks
O Exército do Extermínio (The Crazies, 1973) — George A. Romero
A Bruma Assassina (The Fog, 1980) — John Carpenter
Fenômeno (Phenomena, 1985) — Dario Argenro
A Morte Pede Carona (The Hitcher, 1986) — Robert Harmon
Terror na Opera (Opera, 1987) — Dario Argento
O Predador (Predator, 1987) — John McTiernan
Robocop — O Policial do Futuro (Robocop, 1987) — Paul Verhoeven
Duro de Matar (Die Hard, 1988) — John McTiernan
Exterminador do Futuro 2 — O Julgamento Final (Terminator 2 — Judgment Day, 1991) — James Cameron
O Alvo (Hard Target, 1993) John Woo
Trauma (Idem, 1993) — Dario Argenro