Sob o Lago de Significantes

Ghosts Without Machines
7 min readSep 19, 2020

--

Em 2018, O Mistério de Silver Lake (2018) foi considerado por muitos apenas uma coletânea de referências completamente aleatórias, conectadas sob a égide da “Cultura Pop”, mas que não produzem sentido ou valor algum.

De fato, se há algo notório neste longa é seu universo recheado de símbolos que se conectam um ao outro sem parar. Sam, o protagonista do longa, é um avatar da juventude contemporânea e sua imersão nesse mundo da “Cultura Pop”, ou da Indústria Cultural.

Já se falou muito sobre isso, sobre a “condição pós-moderna”, ou a própria “esquizofrenia pós-moderna” com seus significantes dispersos. Por isso, tentarei ser breve ao descrever o singular do filme de Mitchell. Isto é: como ele agencia de maneira absurda alguns dos angustiantes índices da contemporaneidade.

Em síntese, sua narrativa conta a história desse jovem, Sam, que busca incessantemente por Sarah, uma mulher que conheceu e desapareceu de maneira inesperada. A partir daí ele conecta todos os índices possíveis ao caminho dela.

Se atendo aos detalhes do personagem é possível agrupar o fluxo de símbolos em três blocos para compreender pelo menos alguns possíveis caminhos.

Deixo avisado que o texto todo é feito de spoilers.

1 — Misoginia

Em meio ao crescimento de uma cultura masculina ressentida com a postura da mulher contemporânea, temos os estranhos movimentos dos Incels (celibatários involuntários) ou ainda os MGTOW (homens seguindo seu caminho), todos dentro do guarda-chuva da cultura da internet, os “red pill”.

Se coloco essa forma de misoginia como fenômeno atual é que ela parece surgir de um ressentimento, causada pelas mudanças nas políticas de gênero, mais do que por um exercício de dominação pela certeza de sua superioridade. Se há hoje algo nesses movimentos que parece notório é a fragilidade de sua superioridade.

Sam, com seus trejeitos obsessivos, sua fixação sexual parece de alguma maneira se enquadrar nessas categorias. Veja só, a câmera segue as mulheres do longa com seu “male gaze”, do mesmo modo que toda a busca alucinatória do personagem começa pela sua paixão sexual por Sarah.

Dessensibilizado, ele assiste com o amigo um drone filmar uma mulher se despir e chorar, assim como a morte de uma personagem reconstrói a capa da primeira revista pornô da qual se masturbou. O sexo, a morte, a dor e o sofrimento aparecem aglutinados nesses signos.

Para tornar as coisas ainda mais estranhas, existem duas figuras que saíram das fanzines de um personagem. Primeiro, a mulher coruja, com sua figura esguia e nua, que caça homens; a coruja essa figura de saber, que agora se encontra na cabeça das mulheres apenas para devorá-los.

Em segundo, o assassino de cachorros, que apesar de parecer uma ponta solta no longa, existem indícios de que esse mesmo homem possa ser Sam. Muito por conta de seus sonhos e apagões que revelam uma estranha relação com a figura desse assassino, de acréscimo ainda há seu hábito de andar com biscoitos para cachorros, algo que parece estranho.

Seguindo os rastros dessa proposta é possível entender que as mulheres estão nesse lugar estranho de morte novamente, afinal, quando as mulheres bravejam contra ele escuta-se latidos, assim como em um de seus sonhos.

Portanto, há em Sam uma mistura desses elementos, a morte, os cachorros, as mulheres, o sexo, o ressentimento.

2- Cultura Pop ou Significantes Dispersos

A sequência crucial para pensar sobre isso, para além das inúmeras referências ao cinema, desde Lynch à Marylin Monroe, é o encontro com o produtor que cria os códigos estranhos nos produtos da cultura pop.

Neste espaço, Sam descobre que o produtor criou praticamente tudo que já existiu de icônico na música comercial. Até as rebeldias eram rebeldias fabricadas, a cena se torna interessante pela revolta juvenil do protagonista se concretizando ao destroçar a cabeça do produtor com uma guitarra.

Criando um momento que pode ser tanto um escoamento de uma revolta real dentro da revolta fabricada, quanto a própria revolta fabricada dentro do filme como um autoparódia. Essa ambiguidade presente é o cerne da relação com a cultura pop.

Se apaixonam por obras, mas nunca entram ou saem dela de fato, são apenas estimulados de referência à referência. Portanto, entender a Cultura pop como uma espécie jogo de significantes dispersos é uma forma de se ler o problema contemporâneo, que atinge principalmente os jovens.

É um processo de inumeráveis causas. A fragmentação das narrativas, a globalização (ou a universalização do capitalismo) que almejou apagar as diferenças culturais, em conjunto com a transparência da TV e da internet. Além de tantos outros, que criaram em celeridade informações e jogou os significantes sem qualquer valor ou distinção para os sujeitos.

É um pouco como o algoritmo segue-se um ritmo por seguir, um link te leva a outro num fluxo onde não há parada para entender ou decidir o que se apreende.

É praticamente esse o ritmo do longa e da loucura narrativa.

3 — Sempre se busca sentido, mas não em demasia

Percebe-se, então, que de maneira simplória e reducionista a questão do contemporâneo é a falta de sentido, uma excessiva busca pela repetição das referências sem sentido surge para suprir esse vazio, mas é possível dizer que existe um outro polo que é o explosivo do excesso de sentido.

Não é à toa que os grupos religiosos pentecostais estão a todo vapor no mundo, ou ainda que esses grupos “red pill” de internet vem ganhando muito seguidores, pois eles oferecem um sentido rígido para o mundo.

Assim, têm-se dois movimentos que parecem ser um só, uma perda total do sentido na referência sem valor e um excesso total de sentido nas conspirações contemporâneas. A função delas me parece ser se ater a certo absoluto, ou o do sentido fechado ou do impossível de sentido.

Sam encarna muito bem esses dois processos, enquanto deixa de trabalhar, de pagar o carro, de estar no mundo e se joga dentro desse universo do sem sentido. Todavia, existem indícios de que ele sempre foi ávido por sentido, pois desde pequeno buscava códigos por trás de produtos culturais.

Parece que a busca de sentido é uma condição humana, que está se fragmentando por conta das configurações culturais contemporâneas. Sam retoma a busca, quando um objeto de desejo desaparece, no caso, Sarah. Mas como se faz a busca de sentido de Sam?

Ele encontra cultos, seitas, grupos estranhos entranhados de sentido, ao mesmo tempo que encontra e se movimenta na fluidez do sentido. É nessa dialética estranha que ele segue o sentido supostamente vazio do grito do papagaio de sua vizinha. Só assim pode pensar para fora do labirinto e escapar da paranoia em que se encontrava. É preciso buscar um sentido, mas não em demasia.

4 — Um corte, um sentido e seus caminhos

Nesse emaranhado de caminhos e acontecimentos, Mitchell usa de uma estética anacrônica, com seus tropos narrativos do noir, e sua iluminação sutil sobre o rosto. É difícil compreender em que época a história se passa, parece um eterno anos 70, ao mesmo tempo que utensílios contemporâneos como a internet, drones e outros surgem com muita naturalidade.

A montagem do longa é executada por um número de fusões, acompanhadas de uma trilha sonora ao estilo clássico, o que gera ainda mais anacronismo. É como se estivéssemos imersos no lago prateado de tudo que já aconteceu.

Portanto, essa é a articulação que me surgiu com a estranheza desse filme. Uma narrativa sobre um personagem masculino, imerso em sua misoginia, entre dois polos, do vazio de sentido ao todo de sentido, entre os dogmas e o niilismo de uma deriva hermética que podemos chamar de “cultura pop”.

O Mistério de Silver Lake (Under the Silver Lake, 2018) — David Robert Mitchell

--

--

Ghosts Without Machines
Ghosts Without Machines

No responses yet