Se precisamos de um coveiro…

Ghosts Without Machines
3 min readAug 1, 2020

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A morte está na TV. Vive nas ruas o tempo inteiro e filmada de maneira inconveniente, como um pastiche. Talvez pior, como uma bacia de ódio e medo para toda a população. Agora, ela se apresenta de outra forma.

A morte é uma celebridade. Ela está tão exposta em sua violência numérica — violência de totalidade, de falta de aparência — que o arauto da cloroquina quis fechar os olhos, fingiu que não existia, afinal não é coveiro. Do mesmo modo, se os números assustam, os corpos também. Nem cemitérios temos o suficiente. Só há a vala comum do abismo da história, despejando corpos como números, e números como corpos.

Precisamos de um coveiro. Precisamos de um funeral. João José Reis, historiador baiano em seu livro A morte é uma festa: Ritos Fúnebres e Revolta Popular no Brasil do Século XIX (1991), diz

“Uma das formas mais temidas de morte era a morte sem sepultura certa. E o morto sem sepultura era dos mais temidos dos mortos, pois morrer sem enterro significava virar alma penada”.

O Funeral é um rito de separação, assim como a Lápide é um objeto de incorporação, isto é o processamento simbólico da morte.

Roberto DaMatta, em A Casa & A Rua: Espaço, Cidadania, Mulher e Morte no Brasil (1997), diz que somos uma população relacional, vivemos entre três pontos de vista, a casa, a rua e o outro mundo.

“O outro mundo é — a meu ver — um local de síntese, um plano onde tudo pode se encontrar e fazer sentido. (…) É pois em contato com o outro mundo que somos capazes de construir as compensações que muitas vezes não conseguimos realizar quando confrontamos com o conflito ‘deste mundo’ de casas e de ruas, de amigos e de leis impessoais, de desejos individuais e demandas morais coletivas. ”

A constância deste ponto de vista é enorme, mas ele existe apenas numa relação simbólica seja do morto, seja da morte. Sem a construção deste elo, o sentido desaparece. Por enquanto temos números, corpos e ainda não temos um coveiro. Mesmo que seja um cremador, um escultor, o executor ou o artista que conjuga suas operações ao objeto ou rituais, ao processamento do luto. Não temos nada.

Sempre achei que os cemitérios continham um enigma. Uma ânsia me contagia ao pisar neste solo. Afinal, é um dos poucos lugares que lembramos que há mortos debaixo da terra, que há uma história que respira e sentimos o miasma simbólico de tudo que já existiu. Principalmente, dos anônimos, daqueles que não estão nos livros de história. Daqueles que eu poderia odiar, ou amar; das pessoas.

Nesse sentido, Arthur Danto, em O Abuso da Beleza (2018), aponta para o terceiro reino da beleza, aquilo que não é nem beleza natural, nem beleza artística, mas um objeto embelezado. Muitas vezes considerado menor, pois parecia como uma maquiagem, um encobrimento da realidade da beleza ou da feiura, uma beleza artificial como diria Kant.

A partir disto, o cemitério e sua complexa articulação simbólica se encontra como parte deste terceiro reino. Mas, quero lhes dizer que ele contém toda a beleza necessária para a simbolização, haja visto que esses reinos estão sempre a se invadir, se misturam; a arte é impura.

Então, seguimos contando os mortos, seguimos sem coveiro, seguimos com o arauto do nada, mas haveremos de pensar a passagem, o símbolo e o rito.

*Fotos do Cemitério da Consolação em São Paulo, SP

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