O Poder das Imagens
Em Síndrome Mortal (1996), filme de Dario Argento, este quadro de Bruegel ganha um destaque, ele surge numa cena chave, cena que desencadeia a instabilidade própria da protagonista. Gostaria de fazer uma pequena aventura sobre esse filme, em que discuto sobre a instabilidade da significação de certas figuras num quadro por conta de sua materialidade como similar à instabilidade da identidade, do gênero, do desejo da protagonista do filme.
Isto implica em discutir também um pouco a ideia de trauma em Argento, do mesmo modo que discutir a explosão de imagens que se produz com a matéria da pintura.
Paisagem com a queda de Ícaro (1560) Pieter Bruegel, o Velho
Daniel Arasse, historiador da arte, insistentemente questiona o quanto por vezes paramos de olhar. Seu tom ensaístico não nos permite indicar plenamente a causa deste problema de não conseguirmos olhar.
Mas há algumas pistas, como quando questiona uma amiga sobre sentir que entre ela e a obra há sempre um texto, normalmente histórico, “o que eu acho mais significativo é que não precisei de textos para ver o que se passa no quadro. ” (p. 19). Ou ainda, o questionamento à Gombrich, “Não estou sugerindo que as obras teriam apenas um sentido e que, portanto, dele seria possível fazer apenas uma interpretação ‘correta’. Isso foi Gombrich quem disse, e você sabe o que eu penso à respeito.” (p. 7) [1]
A partir disto, tomamos esse pressuposto de exercício do olhar. Pensar a imagem de Bruegel sem buscar o seu sentido último e nem mesmo seu sentido histórico concreto. Mas evitemos enxergar pin ups na Vênus de Urbino (1538, Ticiano).
Existem duas coisas que me impressionam de imediato no quadro de Bruegel. A primeira é o deslocamento de seu motivo. Apesar das traduções colocarem o nome “Paisagem com a queda de Ícaro”, o título original é apenas “A Queda de Ícaro” (De val van Icarus), ou seja, seu deslocamento é tamanho que nos surge a necessidade de evocar a paisagem como motivo. A figura de Ícaro ainda passa por certa dificuldade de identificação, não o vemos voando ferozmente ao Sol, nem sequer o vemos direito, apenas suas pernas a afogar-se nas águas.
Claro, há algumas penas, ou pelo menos é isso que pensamos. Não há diferença concreta entre as penas e as espumas do mar. Evocamos o mito pelo título do quadro, mas ainda assim, tendemos a olhar para qualquer parte do quadro. A imensidão do horizonte, o azul tão reluzente em contraste com a roupa vermelha do camponês nos hipnotizam. É até difícil reconhecer os poderes comumente traçados na arte clássica do Renascimento. Me parece que há ainda um humor medieval muito próprio, afinal não há o poder tectônico que centraliza os motivos.
Aliás, o que quer nos dizer a presença de um mito, anacronicamente, num universo do século XVI? Sua insignificância reside justamente no seu esquecimento geral? Fato é que há um encontro entre uma figura mitológica, que parece passar despercebida com um mundo novo, imerso em sua atualidade.
O ideal após uma leitura geral, seria a descrição ao escrutínio, a divisão em detalhe e seu nivelamento histórico social para a compreensão de seu sentido. Georges Didi-Huberman contrapõe essa metodologia, muito ligada à tradição iconológica a partir do confronto entre detalhe e trecho [pan].
“O pesquisador de detalhes é o homem que vê a menor coisa e é o homem das respostas; ele pensa que os enigmas do visível têm uma solução que pode estar na ‘menor coisa’, num fio, por exemplo, ou numa faca; ele limpa bem seus óculos, toma-se por Sherlock Holmes. Aquele que almeja os trechos, ao contrário, é um homem que olha, segunda uma visibilidade com propósito flutuante; ele não espera do visível uma solução lógica (antes percebe o quando o visível dissolve todas as lógicas); como Dupin, em A Carta Roubada de Edgar Allan Poe, prefere usar óculos escuros para deixar que lhe venha o que espera; e, quando encontra, não é o fim de uma cadeia — última palavra entendida como resposta — , mas um momento eletivo no encadeamento sem fim, corrida atrás do coelho das perguntas.” (p. 343–344) [2]
O detalhe é o ato de recortar a pintura para delimitar os seus elementos, o historiador realiza esse procedimento com o quadro de Bruegel. Para conseguirmos identificar o próprio Ícaro, precisamos não olhar o todo, mas ir em direção ao detalhe para ressignificar o todo. O detalhe serve para nos dar a estabilidade da significação. Ele por vezes acaba neutralizando certas figuras aberrantes das pinturas. No caso desta, Didi-Huberman questiona as penas que são os índices de identificação de Ícaro. Afinal, não há diferença material entre as penas e as espumas do mar, as duas são borrões brancos.
Se nos colocarmos a olhar o quadro a partir do detalhe, vamos delimitar a figura. Podemos simplesmente dizer que as manchas brancas no fundo-mar especificam uma figura de espuma, enquanto as manchas brancas no fundo-barco especificam a figura das penas e assim vemos apenas uma imagem.
Mas e se seguirmos o trecho? Se seguirmos a instabilidade instaurada, o próprio nome Ícaro pode ser apenas uma metáfora para uma jovem criança brincando ao mar, e sua insignificância mitológica, nada mais é que a puerilidade da infância a se divertir. Agora, temos imagens, não só uma, mas duas, e quem sabe podemos formar mais.
A trecho amplia até mesmo o poder da imagem para um nível de insensato, mas não se enganem, é uma instabilidade estruturada. Afinal, ela é indicada como sintoma, no sentido freudiano do termo:
“(…) o sintoma é um acontecimento crítico, uma singularidade, uma intrusão, mas é também a instauração de uma estrutura significante, de um sistema que o acontecimento tem por tarefa fazer surgir, mas parcialmente, contraditoriamente, de modo que o sentido advenha apenas como enigma ou fenômeno-índice, não como conjunto estável de significações. ” (p. 334) [3] [4]
Portanto, o proposto com isso não é a negação de ler o quadro, mas sim a possibilidade de ler de outra maneira, na qual insistimos menos em certezas que por vezes apenas nos impedem de ver. Ler o quadro a partir desse campo nos possibilita não só pensar os sentidos possíveis, mas o poder de seus efeitos.
Síndrome Mortal (1996) Dario Argento
“As obras de arte têm poder sobre nós”
Alfredo, em Síndrome Mortal (1996)
Os filmes de Argento são sempre filmes a se olhar com cuidado. Eles por vezes nos atacam, não só pela violência absurda e opulenta, nojenta e graciosa, mas também por sua materialidade, dão uma abertura às imagens e um poder insensato. Fascínio e medo. Indissociáveis conceitos operados em toda sua obra.
A primeira imagem que temos é de uma jovem no meio de uma multidão em Florença. Parece perdida ao olhar os rostos tão distintos entre turistas e nativos. Ao entrar no museu, cada quadro parece produzir nela uma espécie de náusea, os quadros ganham vida, escuta seus sons, inebria-se pelas suas cores, até que chega a olhar o quadro de Bruegel. Nesta hora é que desmaia e bate com a boca na quina de uma mesa.
A câmera entra no quadro, imerge no mar, e quando seu corpo cai ao chão, a montagem nos indica seu corpo caindo no azul do mar. Ícaro olhou o Sol, e a protagonista olhou a pintura. Nadando, ainda confusa, com sua boca ensanguentada, um peixe mítico surge para beijá-la. Assim, acorda. O que aconteceu?
A protagonista ainda atordoada, com sua roupa suja de sangue é ajudada por um estranho, este comenta que a compreende e que sente o mesmo. As obras de arte têm poder. Ela percebe que algo sumiu de sua bolsa. Não sabemos nada de sua identidade, não sabemos o motivo de sua ida ao museu, não sabemos se estava perdida ou à procura de alguém.
No quarto de um hotel, ela vê outra pintura. Sente a mesma sensação, porém dessa vez a pintura a joga de volta para a sua memória, lhe direciona à certa identidade. Ela é uma policial, chamada Anna Manni, que está em busca de um serial killer, o que sumiu de sua bolsa foi sua arma. Estamos diante de um giallo, a busca pelo psicopata estava em curso e não percebemos. Não só nós, espectadores, como também a própria investigadora e por isso há a surpresa do encontro traumático.
A experiência desse encontro é tão poderosa quanto a experiência das obras de arte. Dario Argento nos indica que o alto poder da obra de arte equipara-se com o de um assassinato ou de um trauma. A síndrome de Stendhal [5] é conhecida como uma reação psicossomática às obras de arte, ganhando este nome pelo relato do escritor francês Stendhal ao passear por Florença e descrever o sentimento absurdo que sentia.
É a partir disto que retomamos ao jogo geral de seus giallos. Há um assassinato, uma cena primordial de trauma, opulenta, absurda e impossível de se resolver. No qual o protagonista se vê absorvido, tentado por essa imagem. Não pode mais ser o mesmo, precisa perseguir com toda sua morbidez essa imagem. Apenas com um retorno da imagem é possível resolver o mistério.
Em Tenebre (1982) olhar a cena traumática nos coloca a um passo de enlouquecer. Em contrapartida, em Terror na Ópera (1987) olhar a cena traumática possibilita uma forma de ascese. É preciso passar por ela para seguir. Em Trauma (1993), todavia, a protagonista não conseguia lembrar da cena, pois na sua mente corriam tantas imagens absurdas que ela ficava perdida.
A experiência de Anna Manni está na esteira dessas construções, não é à toa que se vê num museu, rodeada de imagens, onde não sabe mais que é policial e o que busca. O encontro traumático com o assassino tem o mesmo poder. Ela perde sua identidade de alguma forma, deixa de perseguir o assassino, deixa de ser policial, volta à cidade de seu pai, corta o cabelo, veste-se de forma masculina.
Sua figura perde a consistência de outrora e torna-se esse trecho, essa mancha figurativa que caminha afetada por todas as imagens possíveis que a rodeia.
A partir daí não podemos mais saber quem ela é. Nesse momento, há uma cena, em ponto de vista, de um assassinato. Essa cena especifica muita bem a instabilidade que Argento nos causa, quem matou? O assassino? Anna? Nós?
Assim, existem mortes vistas, mas duvidadas, existem nomes ambíguos, existem novas identidades, existem ações que parecem não ter dono, ou ainda pior, nem sabemos mais qual o motivo do quadro, precisamos que ele nos olhe em todas as suas manchas.
Para Argento, vamos do grande museu das belas artes, ao galpão grafitado, vamos da ópera ao metal, vamos do mais belo registro de imagens ao mais horrível CGI. Encontramos nessa obra do diretor um modo de perscrutar a obra de arte, a partir do trauma, e o trauma a partir da obra de arte, uma lógica condiciona a outra, ou talvez sejam a mesma.
A loucura e ascese finalmente se conciliam num único movimento que é finalmente tornar-se um borrão, um trecho, uma figura instável. É aqui que o cinema de Argento atinge sua crise máxima. Quando Anna Manni em toda sua insensatez é carregada pelos policiais como uma santa. Chegou aos céus pelo inferno. Ou seja, a instabilidade geral da significações atingiram o divino.
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Notas
[1] Comentários de uma carta destinada a uma colega de trabalho, inserida nos ensaios de Nada se vê (2019) de Daniel Arasse
[2] Citação retirada do livro Diante da Imagem de Georges Didi-Huberman. No apêndice do livro, em que há a transcrição de uma conferência sua sobre a questão do detalhe e do trecho na pintura.
[3] Idem.
[4] A leitura de O Incosciente Estético de Jacques Rancière é interessante para produzir um adendo aqui. A noção de sintoma da qual Didi-Huberman propõe, apesar de se designar à Freud, está mais associada às operações de Lacan. Afinal, como aponta Rancière, muitas vezes e principalmente em relação às obras de arte Freud costumava cair numa leitura muito mais próxima de Panofsky do que seu corpus teórico parece indicar. De todo modo, deixo em aberto a possibilidade de pensar isso com maior radicalidade a partir de Lacan em outro momento.
[5] O nome original do filme é este “La Sindrome di Stendhal”, e durante o próprio filme a questão é trabalhada diretamente. Uma tradução que perde o centro do problema, mesmo que pareça a princípio indicar a mesma coisa.