O Irlandês é um filme-caixão

Ghosts Without Machines
4 min readNov 25, 2020

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Toda grandiosidade de O Irlandês (2019) reside numa porta entreaberta. Pode-se dizer que o filme é enorme (3h30 de duração) ou que a reunião de atores clássicos dos filmes de máfia por si só torna o filme um espetáculo (Robert De Niro, Joe Pesci, Al Pacino, Harvey Keitel, e tantos outros). Mas é nesse espaço vazio que é possível localizar a potência maior deste filme, pois é sobre o próprio tempo que todo empenho de Scorsese parece se constituir.

Existem dois elementos que estruturam a mise en scene do longa. O primeiro é mais notório ao se falar de tempo: a longa duração. Acompanhar o personagem de Frank Sheeran, da sua juventude até a velhice nos remete ao projeto de Linklater com Boyhood (2014).

Medidas diferentes, processos diferentes, pois se o naturalismo e improviso são a nervura de toda obra de Linklater, em Scorsese existe uma vida produzida por uma artificio, próprio de um amante de Mèlies. Por isso, o segundo elemento se encontra no uso da tecnologia para rejuvenescer seus atores. Assim, o que vemos em tela é um artifício, extremamente bem realizado e que consegue nos colocar em consonância com o estado de espírito deste personagem.

Esses dois elementos formais nos direcionam para a necessidade de apreender do tempo. Todavia, o ritmo do filme se faz por outro caminho, é pela via do discurso, da palavra viva, não é à toa que há todo um dinamismo em como a história vai para frente e para trás, com tempo para todo o tipo de emoção. Scorsese já fez isso com Os Bons Companheiros (1990), mas ele não cai no lugar comum, pois há uma diferença que amplia por completo a potencialidade deste modelo narrativo.

Pode-se dizer que os dois filmes são como um discurso de memória. A partir de pequenos relatos e alguns comentários, passeamos pela vida dos personagens, da ascensão à queda. Todavia, em O Irlandês (2019), Frank Sheeran olha o passado, mas também está a olhar a inelutável finitude da vida, a relação de frontalidade com a morte coloca o espectador em um outro estado, aqui estamos diante de um discurso de tempo. Pois, mais que nos fazer relembrar, Scorsese mostra que neste espaço vazio, entreaberto, estamos diante da própria força do tempo.

Deleuze, em seu livro Imagem-Tempo, descreve qual a potência dos espaços vazios e das naturezas mortas em Ozu. A distinção entre elas reside na oposição oriental entre o vazio e o pleno, enquanto a primeira pela ausência de ação/intriga nos produz afeto; a segunda pela plenitude de objeto constrói uma imagem direta do tempo, em síntese um tempo que transforma.

Arrisco em dizer que toda a cena final do filme de Scorsese se produz nesse estilo. Do plano sequência que nos conduz do vazio dos corredores ao diálogo com o padre, e, por fim, porta entreaberta do quarto de Frank Sheeran.

Há muito o que se comentar sobre a forma com que o cansaço, o silêncio, a indiferença e o cru compõem este filme, há muito que se comentar sobre a representação histórica da máfia e seu realismo, todavia o real sabor do longa está em nos colocar diante de um caixão.

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