O Gato e a Insolúvel Questão do Amar

Ghosts Without Machines
7 min readJan 2, 2021

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O Gato

Quando o novo filme de Hong Sang-Soo, The Woman Who Ran (2020), estreou no Festival de Berlim, muito se falou desta cena em que um gato era capturado por um dos zooms caraterísticos do diretor. A trama desta cena se desenrola quando um homem reclama com sua vizinha por estar alimentando os gatos.

Há uma defesa irrepreensível desses pequenos animais. Ele sorrateiramente se coloca no canto inferior do quadro, como se acompanhasse a discussão. É uma diálogo simples, direto, com seu charme e humor, nada muito afiado. Com a saída do rapaz, as três mulheres interagem com o bichano, aos poucos elas saem de cena e o sujeito da discussão fica sozinho, num pequeno zoom, ele se ajeita, boceja e para como uma estátua.

Muitos costumam chamar os zooms do diretor de “aleatórios”, ou “incômodos”. Mas esse novo filme nos dá sua real precisão, algo que já havia sido muito bem revelado anteriormente, o zoom cria o ritmo no interior da cena. Hong corta muito pouco, e o zoom o faz decupar a cena sem cortar, vamos de um plano médio a um close-up sem corte.

Mas o zoom, mais do que aparato formal, nos dá o verdadeiro sopro de vida do estilo do diretor. É nele que o diálogo é pontuado, que o drama se acende, que o mundo é revelado, nesse caminhar no interior do plano que o paraíso mundano de Hong Sang-Soo se constrói.

O Amor

Mas qual a trama deste história? Gam-Hee, protagonizado pela sua companheira Kim Min-Hee, está separada do marido pela primeira vez em cinco anos. Usa esse curto período, em que ele viajou à trabalho, para visitar algumas amigas.

A primeira amiga que visita é separada do marido e vive com outra mulher. Elas residem numa espécie de fortaleza, é possível notar a tranca tecnológica ou as câmeras de segurança. Do mesmo modo, o idílico dos animais, da plantação ao fundo. Não sabemos ao certo o motivo de se estar nessa fortaleza, mas sabemos que os homens estão expulsos do paraíso.

A segunda visita, onde as casas se conectam pelas montanhas coreanas, sua amiga vive bem e solteira. Está desenvolvendo uma relação com o seu vizinho, mas um jovem poeta a persegue, do mesmo modo existe uma sensação de fortaleza, de construção de um ambiente seguro. O poeta chega a invadir a cena, assim como o rapaz que reclama dos gatos, novamente ele não é bem vindo.

Mas antes de ir ao terceiro encontro, é preciso dizer o que há de crucial neles. Gam-Hee sempre conta a sua relação com o marido da mesma forma, sempre começa com essa sua primeira “fuga”. No segundo encontro, a amiga pergunta se ela ama o marido. Em sua hesitação ela fala de um amor que existe a cada dia, mas ao mesmo tempo uma fagulha de dúvida passa a existir.

O terceiro encontro é num cinema. Ela acaba encontrando uma moça, que não é bem quem ela estava procurando. Toda uma história, um passado surge, num diálogo lacônico, marcado por uma espécie de perdão que se dá exatamente na revelação do zoom do diretor, num gesto singelo.

Mas é aqui que entendemos que muita mais que um embate contra o gênero masculino, a fuga dessa mulher na verdade a direciona a uma questão fundamental que é: será que ela o ama? Que tipo de vida ela quer levar? Quem foi que ela já amou?

Se há fortalezas no filme elas não existem para afastar o outro ou a possibilidade do amor. Elas são estratégicas de fato. É o espaço onde essas mulheres podem ajudar umas as outras, a criar um universo próprio. Se elas fogem não é por medo, mas para pensar melhor. Aprender com os animais, com a natureza, com a arte, os caminhos dos sentimentos.

A Fábula e o Naturalismo

Muito se discute sobre o tom naturalista de seus filmes, no sentido de seu aspecto mundano parecer ser o prioritário. A cena do gato, por exemplo, com certeza teve esse poder revelador ao acaso, é como se seu cinema estivesse aberto ao acaso de uma forma que sugere toda espécie de improviso.

Essa parece ser uma certa demanda do cinema contemporâneo: o naturalismo[1]. A verdade na exclusão do artifício, que de fato possui um nome: Fábula. Mas é preciso reconhecer antes de mais nada que Hong Sang-Soo nunca nega a fábula, ela está sempre intricada, mesmo que cada vez mais despojada dos artifícios formais de sua poética.

A história do naturalismo é poderosa na literatura, muito por conta de Emile Zola (mesmo que também muito associada à Flaubert). Ele foi quem alçou mais longe a ideia do romance científico, numa espécie de precisão absoluta da realidade, mas não se enganem, pois ele mesmo retifica o problema quando diz que:

“A contemplação desapaixonada pelo mundo não é desejável; é evidentemente impossível. ”[2]

Jacques Rancière nos coloca muito bem na introdução de A Fabula Cinematográfica que o cinema nasce com a impessoalidade e a exatidão que a literatura e as outras artes precisaram conquistar. A câmera fotográfica apreende a realidade, daí que surge um realismo inerente ao cinema que ganhou status de teleologia em Andre Bazin.

Mas há uma contradição, pois o cinema reavive a poética mais de que qualquer outra arte. Esse mundo descolado de qualquer artifício sempre soa problemático. Na arte, mesmo o improviso, não pode ser considerado a realidade não manipulada das coisas mesmas.

Ao falar de um dos maiores cineastas do neorrealismo italiano, Roberto Rossellini, Rancière comenta:

“(…) essa unidade da forma e do conteúdo não resulta de uma essência do veículo cinematográfico, produzindo uma visão ‘não manipulada’ das coisas. Ela é o produto de uma dramaturgia que relaciona a extrema liberdade do personagem com sua absoluta sujeição a um comando. ” [3]

Nesse sentido, ele usa a ideia de uma fábula contrariada no cinema, em que esse jogo se organiza. É preciso dizer que em Hong Sang-Soo é disso que falamos, de um mundo encantando, vivo, sensível, aberto aos rasgos do cotidiano, mas formulado em sua fábula.

Merquior, crítico literário brasileiro, advoga pelo conceito de mimese, mas sempre salientando seus desvios. A arte para ele está dissociada do servilismo ao “fotográfico” (entende-se como a pura cópia do referente), e isto já se encontra na Poética de Aristóteles. [4]

De fato, ele encontra na mimese uma forma demonstrar a necessidade da produção de um universo, mesmo que o mais absurdo de todos. Esse ato imaginativo de produção é necessário para a construção da arte.

Portanto, é preciso não confundir. O naturalismo desencantado de certo cinema, principalmente aquele que se funde ao documental, que busca o puro conteúdo, que busca lhe entregar a realidade por si mesma, não é o que os grandes cineastas associados ao realismo fazem, nem Rossellini, nem Hou Hisao-Hsien, mas muito menos as fábulas formais de Hong Sang-Soo.

Jacques Rancière, em o Espectador Emancipado, produz uma pequena crítica às obras que se colocam no mundo como o puro real, a realidade indivisível.

O real é sempre objeto de uma ficção, ou seja, de uma construção do espaço no qual se entrelaçam o visível, o dizível e o factível. É a ficção dominante, a ficção consensual, que nega seu caráter de ficção fazendo-se passar por realidade e traçando uma linha de divisão simples entre o domínio desse real e o das representações, opiniões e utopias. ” [5]

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Notas:

[1] Diagnóstico realizado por Valeska G. Silva, crítica de cinema, no texto O Efeito Naturalista e o Naturalismo ao Gosto do Dia, para A Revista Foco, um texto muito lúcido e importante para pensar os caminhos do cinema contemporâneo.

[2] Citação de Zola, no livro A Necessidade da Arte, de Ernst Fischer, p. 90.

[3] A Fábula Cinematográfica, p. 18

[4] Discussão realizada no ensaio Do Signo ao Sintoma, presente no livro O Fantasma Romântico e Outros Ensaios. Ele advoga pela mimese por dois motivos, o primeiro é o citado: a autonomia da arte em relação ao referente. Que nos dá o poder de fabulação. O segundo é o entendimento que a obra se produz de uma intenção, mesmo que o conteúdo dessa intenção seja obscuro, ou seja, está impossibilitada a ideia de “coisa mesma”.

[5]O Espectador Emancipado, p. 74

The Woman Who Ran (도망친 여자’, 2020) — Hong Sang-Soo

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