“Nossos amigos, os verossímeis…”

Ghosts Without Machines
4 min readDec 19, 2024

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Não pretendo com este texto realizar uma defesa de Armadilha (2024, M. Night Shyamalan). Mas sim discutir algo que é muito aparente nas discussões desta obra, na obra do Shyamalan no geral e talvez no discurso geral sobre a tal da suspenção da descrença. Contudo, o foco aqui é colocar em cheque a ideia de que existem regras básicas de como narrar uma história.

Se tem algo que todo mundo que estuda roteiro aprende de imediato é seguir os manuais, as tais regras do que é bom ou não. É um erro considerar qualquer técnica boa ou ruim sem entender a conexão dela com o todo. A irritação com algum tipo de técnica em si mesma não só demonstra uma espécie de imaturidade crítica, como também demonstra uma total inaptidão para a análise.

Recentemente, assisti ao Pagamento Final (1993, Brian de Palma). O filme não recebeu o apreço crítico em sua época. Há alguns comentários a reclamar sobre o uso do voice over no filme. São os argumentos habituais, uns consideram uma técnica anti-cinema, visto que explica, expõe com as palavras. Às vezes, é considerada apenas uma redundância. Tudo isso que sempre dizem nos manuais mais comuns. É precipitado acreditar que esta técnica por si só seria capaz de tornar a habilidade visual em narrar a história, que o De Palma sempre apresenta, algo nulo.

Além disso, é preciso se perguntar porquê, afinal, optou-se por essa técnica. Sem recorrer a entrevistas, o filme deixa isto muito claro, estamos acompanhando os últimos momentos da vida do protagonista, pelos olhos dele, é uma forma que contribui e coaduna com o aspecto geral do filme de nos fazer imergir em sua perspectiva. A cena que Al Pacino organiza todos envolvidos no espaço na sala vermelha também é uma forma de chegar na ideia de que este é o universo encenado por nosso protagonista. A obra precisa sustentar uma experiência e não apenas uma proposição. O voice over é um recurso que pode ser usado de forma múltipla e, portanto, pode também nos fazer ter múltiplas experiências com este.

Um caso recente foi a mesma reclamação com O Assassino (2023, David Fincher), no qual acompanhamos as opinões insidiosas do assassino de aluguel protagonizado por Fassbender. Mais um vez o problema da redundância foi evocado, mesmo quando o voice over tem claro efeito cômico ao ser contradito excessivamente durante as cenas. Se a minha compreensão sobre as técnicas é rígida, minha compreensão sobre os filmes também será.

Mas voltemos ao filme de Shyamalan. Qual é o problema dos filmes de Shyamalan e aqui quero ir para além do problema do inverossímil. Costumam dizer que no seu trabalho há um nível de exposição exarcebada. O pecado da exposição no cinema é essencialmente um pecado a nível de roteiro, ele expõe os segredos da narrativa para o espectador. Mas é isso mesmo que esta sendo feito? O espectador não faz nada com isso, ele apenas aceita de bom grado o que é dito? Me pergunto também se é possível ignorar a forma e a construção da cena em que isso é dito. Alguém realmente se lembra do fala o psiquiatra na última cena de Psicose (1960, Alfred Hitchcock), ou lembramos da expressão sórdida de Anthony Perkins?

Qual é segredo do filme de Shyamalan que é revelado de mão beijada para o espectador? No caso, seria o passado traumático do protagonista? Essa cena é bem menos sobre esse passado do romance familiar freudiano, e mais sobre um jogo de domínio. Não entender isso é também não entender em nada o filme e isso é o costume quando se acredita acompanhar um joguinho de cartas marcadas. Primeiro que seu passado é irrelevante, só nos é importante que ele possui um passado traumático e este lhe serve como isca para sua captura, curiosamente o inverso do que ocorre no show da cantora pop, onde ela sugere a todos que libertem seus traumas, perdoem aqueles que lhe machucaram. O filme é sobre um psicopata que possui fama e influencia as pessoas de algum modo, em contrapartida está a cantora pop que tem as exatas mesmas caractéristicas contrapostas.

Shyamalan se propõe a fazer correr o jogo da enganação de forma excessiva, um excesso que se perdeu no cinema com o passar dos anos. Se toda a primeira sequência do filme é sobre o quão capaz de enganar o protagonista é, a segunda sequência é o quão cada um dos personagens podem enganar, até o ponto de nosso protagonista nem saber mais ao certo que máscara ele deve usar, a do pai ou do assassino.

A cena de exposição em nenhum momento nos traz pelo discurso algo, é uma isca, inclusive é uma cena conduzida com uma apreensão parcimoniosa, ela almeja capturar um personagem preso aos seus traumas, e nos faz experienciar uma tensão fantasmagórica. Certo é que para aqueles que esperneiam com qualquer regra de manuais sobrará apenas estes filmes corretos, medidos por termômetro de temporada e que não sobrevivem em sustentar qualquer interesse quando analisados como obras, quando precisam de fato nos proporcionar alguma experiência.

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