No Infinito Agora

Ghosts Without Machines
11 min readMay 8, 2023

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Étant Donnés — Marcel Duchamp (1946–1966)

Defenderei aqui que existe um paralelo entre arte moderna e contemporânea, que o homem de bem não entende, e o filme Tudo em todo lugar ao mesmo tempo. Não vou me estender em comparações, mas colocaria a reação negativa ao filme no mesmo contexto da reação ao cubismo de Picasso, à arte pop de Warhol e, naquilo que o filme é besteirol ofensivo, à reação frente ao mictório de Duchamp.

O que destaca o filme como arte é romper barreiras e paradigmas. O mictório de Duchamp é arte por ser a primeira proposta do tipo. Não haveria sentido em se criar o segundo ou terceiro mictório. O filme Tudo em todo lugar ao mesmo tempo seria assim um exemplo de Arte Pop e tem pelo menos dois lados: uma reflexão filosófica sobre o valor do ser humano no Cosmos, e o como deve ser a luta humana na vida, a famosa pergunta filosófica sobre como devo viver. Essas duas reflexões serão feitas usando-se elementos de nossa cultura pop, a saber, lutas orientais coreografadas e o conceito de Multiverso (atenção, algumas pessoas falam Multiversos, mas essa palavra não tem plural: o Multiverso é o conjunto de todos os possíveis Universos).

OSAME KINOUCHI

1.

Eu já havia desistido de pensar um pouco mais a fundo sobre este filme. Sobre seu fenômeno, sobre pensá-lo como paradigma de alguma transição ou mudança histórica. Mas o trecho desta análise realizada pelo físico Osame Kinouchi me fez voltar a pensar sobre o filme.

Esse trecho me chamou atenção por dois motivos. Primeiro, o texto se desenvolve para tratar da questão do multiverso através do pensamento de um físico e isso é algo entusiasmante. Contudo, a comparação deste filme com o trabalho de Picasso, Duchamp e Warhol e ainda mais com a reação à arte moderna foi algo que me impressionou. Não é apenas uma analogia ruim, mas me parece uma ilusão maior da radicalidade do filme como obra. A ideia de que o filme é divisivo por ser “formalmente radical”.

Primeiramente, há sim pessoas que gostaram e outras que não gostaram, mas divisivo talvez seja uma palavra forte. Para expor só um pequeno dado nas redes, há quem diga que o letterboxd seria uma plataforma nichada demais para dizer algo sobre o filme. Mas, ainda assim, este filme foi visto por 1,7 milhões de pessoas na rede social (é o segundo filme mais visto). Não só isso, possui a nota 4.5 de 5 estrelas.

E o discurso que a crítica persegue o filme parece ainda mais confuso quando percebemos que nos dois agregadores de crítica mais famosos dos Estados Unidos, as notas representam ótimos resultados: no metacritic 81; e no rotten tomatoes 94% de aprovação (com nota 8.6). E para não falar só dos americanos; o agregador francês o allociné consta nota 3.9 de 5. Não houve dissonância de gosto na recepção deste filme com a crítica especializada de maneira geral, há sim dissidências pontuais que foram extrapoladas justamamente pelo tamanho de seu fandom.

Se isso não fosse o suficiente, a vitória na maior premiação americana, que está com uma postura cada vez mais nítida de angariar grandes audiências não deveria nos dar dúvidas acerca do quanto o filme foi apreciado. Contudo, se acreditam que a vitória numa premiação como o Oscar, deveria demonstrar a excelência artistica ou a ousadia estética de uma obra, acho que estamos num mal caminho. Visto que o Oscar é a instituição mesma do campo de Hollywood, em seu aspecto mais homogeneiazado. Esta vitória mostra, na realidade, que o filme se encontra em perfeita consonância com essa indústria, pelo seu bem e pelo seu mal. Ao falar isso, não quero dizer que tudo em Hollywood é terrível, apenas saliento que o filme talvez tenha muito pouco de subversivo formalmente para ser comparado ao que foi.

Assim, precisarei, antes de iniciar meus esparsos comentários sobre o filme que foram realizadas de maneira fragmentária, discutir um pouco esse problema da recepção e diferenciar o que faz a obra de Duchamp, para deixar explícito certos problemas.

2.

Não há um problema necessariamente histórico com esta analogia, contudo essas obras e as reações a elas só são bem entendidas com um pouco de contexto. Seria interessante, inclusive, demonstrar a diferença tácita do gesto de Duchamp em relação ao gesto de Warhol, e do uso do ready-made pós anos 60, uma diferença bem notada pela divisão que Hal Foster realiza entre vanguardas históricas e as neo-vanguardas. Mas quero me ater apenas a Duchamp, já que a sua obra A fonte é o signo maior da transformação da arte em relação ao nosso tempo, e sobre sua recepção.

Muitos se esquecem, mas Marcel Duchamp era pintor antes de se dedicar aos seus objetos destituídos de interesse. Suas primeiras pinturas não eram necessariamente cubistas, nem futuristas, mas com certeza estavam associadas a estes dois movimentos artísticos. Se em muito parece estar representando o movimento, a dinâmica da velocidade, no fundo está a retardando, está refletindo sobre ela.

Nu descendo uma escada (1912, Marcel Duchamp)

O que ele decidiu fazer depois foi um ataque contra a noção de arte retiniana. Octávio Paz acredita que o germe desta sua vontade já se encontrava nestas obras que não são nem representações da realidade, nem imagens propriamentes, mas sim reflexões sobre a imagem. Sua virada de forma passa a ocorrer com a construção do gesto dos ready-mades. Que seriam, podemos dizer, o avanço de suas reflexões.

O que seria este ataque à noção de arte retiniana? Simplesmente, uma crítica da forma pintura e sua especificação na sensação dos olhos. Duchamp buscava uma espécie de intelectualização que desfaria a própria noção de gosto, portanto pretendia se desfazer do aspecto mais estético da arte que foi essencial para o desenvolvimento de sua autonomia do período do Renascimento até a alguém como Manet.

“A forma projeta sentido, é um aparelho de signficar. Ora, as significações da pintura ‘retiniana’ são insignificantes: impressões, sensações, secreções, e ejaculações. O ready-made coloca ante esta insignificância a sua neutralidade, sua não significação. Por tal razão não deve ser um objeto belo, agradável, repulsivo ou sequer interessante. Nada mais difícil do que encontrar um objeto realmente neutro.” [1]

Pente (1916, Marcel Duchamp)

É certo que por fazer parte do mundo dos humanos tais objetos ganham sentido (há inclusive pessoas que buscam defender a beleza destes objetos), mas o gesto de sua procura é aquilo que realiza um ataque bizarro e fatal ao campo do mundo da arte de seu tempo. O que Duchamp e o dadaísmo criaram radicaliza a distinção entre estética e arte, cisão que marca por completo o que chamamos de arte contemporânea (por falta de nome melhor). Esse ponto é importante para entender o porquê houve um choque, o porquê houve rejeição e talvez o porquê até hoje é rejeitado, escrachado e atacado por tais homens de bem.

O campo da arte de seu tempo havia se construído com base neste paradigma. Mesmo que historicamente ele foi avançando por pequenas transgressões. A autonomia estética que havia se desenvolvido já permitia que o pintor operasse sobre aquilo que bem entendesse (não importa quem são os personagens pintados e o que estão fazendo, mas sim o encontro material de cores, volumes e formas), contudo, sua forma essencial era mantida.

A obra de arte como lugar de uma contemplação que se inicia através de gozo estético e só depois o conecta com seus significados sociais ou morais era aquilo dava uma função própria dentro da sociedade da arte. Ao desafiar isto, Duchamp radicalizou a tal ponto a forma da arte que, pelo menos naquele momento, ele claramete desviou o curso da história de toda arte. O incômodo e o teor divisivo é que era questionável se aquilo era arte, questionável como função social também, e para os reacionários o terror moral que destitui o lugar das grandes emoções estéticas.

É certo que ele não consegue destituir o lugar do museu, da instituição e o campo da arte. Afinal, sem este, sua obra nem sequer faria algum efeito. É por isso que Hal Foster, por exemplo, irá dizer que o teor de sua obra revela muito mais o aspecto de convecionalidade da obra (revela as estruturas e esquemas de convenção do que pode ser chamado de arte); acreditando que a instituição só passa a ser tema central na arte da neovanguarda dos anos 60, inaugurada pelas obras de alguém como Andy Warhol e o jogo do art pop.

3.

Recompondo esse contexto e a operação realizada por Duchamp fica aberta a possibilidade de uma analogia um pouco mais específica. É preciso se perguntar por exemplo qual operação sobre a convecionalidade da arte ou da dissolução da forma narrativa do cinema o filme realiza. Não é possível fazer uma equiparação medida à medida, e nem é essa intenção, contudo se convencionou a acreditar que este filme é subversivo de algum modo, diferenciar essas duas obras será propício para mostrar o que é e o que não é uma subversão.

Se nos atermos no lugar da recepção (e nos omitindo completamente da distância do público do museus de 1917, para o público pop do cinema de 2022), alguém acha mesmo que a recepção negativa de parte das pessoas por esse filme tem a ver com um desconhecimento sobre a forma da arte? Ou talvez, uma angústia perante a rejeição da forma usual de gozo estético? Esses são os motivos mais simples do porque a A Fonte seria incômoda para alguns tantos.

Histoire(s) du Cinema (1988–1998, Jean-Luc Godard)

Da forma com que o filme dos Daniels é colocada parece realmente que eles destroem a noção de espaço cênico, ou que talvez desconstruam a materialidade do próprio filme. Parece até que fazem parte de fato do cinema experimental; me pergunto se estamos falando de Hollis Frampton ou Michael Snow. Ou que ao menos radicalizaram com a montagem como Sergei Eisenstein ou Jean-Luc Godard, que talvez em suas escolhas estéticas desafiaram de fato os modos e meios de recepção das obras gerais.

O filme é ligado à produtora A24 que se tornou a marca ideal para o faux-independente americano, isto é um cinema de roupagem quirk e que só é bastante diferente para os padrões de certa Hollywood antiga. No fundo, é como quase todo cinema americano se parece hoje. É um filme produzido pelos Irmãos Russo, os principais diretores do Universo Marvel no cinema.

Em que sentido ele nos desfamilizariza através de sua forma? De que maneira altera os modos e meios de recepção das obras? Quando sua estética é quase indiscernível do movimento das redes sociais, do passar dos dedos de um celular, pode ser o tik tok, ou outras. Sua linaguem não chega a ser incômoda ou difícil, é apenas a linguagem padrão de qualquer pessoa que abra um celular. É literalmente se coadunar ao hegemônico.

Há quem diga que fazer isso é capturar de maneira correta o zeitgest do nosso tempo através de sua forma. E é, ao menos, um argumento mais justo. Contudo, ele se apropria de maneira acrítica ou ainda num grau imediato deriva-se do apelo das táticas publicitárias. Não é à toa que tanto o aspecto decorativo, quando o recurso da montagem do filme parecem ser o filho horroroso de Charlie Kauffman. Une a decoração boba de videoclipe com uma espécie de história absurda existencial. (Assim como a auto-ajuda generalizada destes “indies” americanos, um exemplo que os próprios cineasas citam é Mike Mills).

Tudo, em todo lugar, ao mesmo tempo (2022, Daniel Kwan e Daniel Scheinert)

Nada disso é radical a tal ponto de nos desafiar. Para nos tocar o filme nos atinge por todos os lados, como o bom pastiche genérico de nossa comunidade virtual. Ele se alimenta de afrescos para os nostálgicos, mas também de falsas memórias para nós que vivemos num mundo sem memória.

Por exemplo, há quem diga que ele restitui o poder da resistência do gênero do Kung Fu dos anos 60–70. Mas é só observar a inventividade do uso da velocidade e montagem, das performances acrobáticas para perceber que é um uso diferente. Afinal, o uso autoconsciente dessas referências não acrescenta nada a elas, quando não as usa de maneira apenas mecânica. Até porque não vemos uma cena propriamente de kung fu, mas sim uma reapropriação irônica.

Usar uma fotografia no estilo de Christopher Doyle, porém sem seu ritmo, sem o tempo, sem o manejo; apenas nas cores, na saturação, no enquadramento, ou seja numa espécie de superfície absoluta paralisada, é apenas o recobrimento mecânico de um estilo. Não se faz nem um uso aberrante, nem um desenvolvimento do trabalho técnico-poético realizado.

No fim, ele acaba seguindo um caminho mais tenebroso do que deveria. Sim, o pastiche é cansativo, o videoclipesco é sempre um gimmick, mas temos uma pequena história de relação familiar e de um desejo forte de viver uma outra vida. Algo que coloca todos os personagens em direção ao vazio.

Mas me parece que no fim, ele pretende de alguma forma responder ao “vazio” que se propôs com a ideia simlpória do “sejam bondosos que coisas boas lhe acontecerão”. Especialmente a sequência final das múltiplas resoluções, que diga-se de passagem, é sofrível. Não só isso ameniza todo o problema como parece trivializar o insuportável que ele abre de forma pueril. Ele realiza mesmo um encurtamento cognitivo. Trata-se de lidar com uma complexidade sem um pathos real.

Mas um filme não precisa ser tão complexo para ser bom, ou profundo, ou até mesmo subversivo. Ele pode nos afetar e desafiar com o mínimo. De fato. Existem filmes que possuem linhas narrativas minúsculas, ou baseada em princípios completamente restritos e bobos, para no fim, nos destruirem (pensemos no burlesco, no screwball comedy, em certo cinema de horror). Nos destroem por possuierem algo que modifica a dinâmica do nosso olhar; para fazer isso, não é possível ser uma, para me repetir, “espécie de superfície absoluta paralisada”. Para um filme que se mexe tanto, me senti paralisado no seu mecanismo de formas mortas.

4.

Usei mais a questão da analogia como uma maneira de explorar um pouco das reflexões que tive com o filme. Cabe ressaltar que dentro do pano de fundo das inúmeras coisas escritas sobre o filme, há sim desmerecimento bobo; mas há muito mais ilusões descabidas.

5.

Não é só no cinema experimental que encontraremos tal efeito e tal força. Aqui sigo as reflexões de Fred Camper que nos diz sobre Sirk e tantos outros. Então, há subversões mais radicais como as de Duchamp ou de Godard que atingem diretamente todo o formato e um paradigma histórico, mas há ainda subversões no interior de formas mais tradicionais, rasgos, fraturas e transfigurações.

“O mito que eu gostaria de derrubar é que o cinema de vanguarda — que, no seu melhor, expressa de fato maneiras de ver e pensar não expressas antes, mudando portanto a consciência do espectador — é o único que atinge esse nível mais alto. O outro mito que gostaria de derrubar, e que é ainda mais presente, é de que o cinema é uma arte híbrida, e que um grande filme narrativo depende de um bom roteiro, boas atuações, boa direção de arte e assim por diante: o modelo “menu de restaurante” dos filmes. Se o cinema deve ser, como Strand desejou para a fotografia, uma arte à altura das outras, então deve usar essa qualidade que é única ao cinema: a habilidade de envolver o espectador em padrões de luz que ocupam um espaço plano predeterminado e controlado precisamente no tempo. Isso pode soar como uma descrição de um filme completamente abstrato, do qual existem inúmeros grandes exemplos, mas também pode descrever um filme de Otto Preminger, e filmes de muitos outros autores narrativos (…).”

A Imitação da Vida (1959, Douglas Sirk)
The Ladies Man (1961, Jerry Lewis)
Lisa e o Diabo (1974, Mario Bava)

[1] O Castelo da Pureza — Octávio Paz

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