Modos de Produção e Hamburguer

Ghosts Without Machines
5 min readFeb 18, 2023

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Poltergeist (1982, Tobe Hooper)

Quando a televisão surgiu e começou a realizar seus próprios filmes, séries e novelas, sabe-se muito bem que ela surgiu no lugar da rádio. Com isso, as séries eram procedurais justamente para que não houvesse a necessidade de ver o que veio antes, ou até se interessar pelo que vem depois; do mesmo modo, as novelas tem seus roteiros pensados para que pudessem ser entendidos mesmo sem sequer colocar seus olhos sobre as telas, ou ainda para que nos desgastes das voltas narrativas nunca percamos o fio da meada.

Existia sim aqueles que diziam que o cinema iria acabar por conta da televisão, e há uma série de discussões interessantes sobre isso. Mas a população via um abismo que separava as obras televisivas daquelas do cinema: o enquadramento (o cinema havia atingido o cinemascope, a TV ainda era quadrada), a música e o som; o frame rate; a qualidade dos atores em cena; as possibilidades com a câmera lhe forçava a olhar para os filmes; a qualidade fotográfica, e tantas outras coisas. Esses sinais imediatos, perceptíveis com uma sacada de nossos olhos faziam essa divisão ser muito grande.

Esse cenário mudou. Claro que foi uma mudança progressiva, não houve uma cisão radical. Essa mudança não reflete tanto o gosto do público, mas sim apenas avanços tecnológicos nas possibilidades das câmeras, na edição, na música, tudo pode ser feito mais rápido, com simplicidade e praticidade, para o tempo da TV. O tempo da TV também não é o mesmo, as séries por vezes são narrativas fechadas (continuam indefinidamente, sim, isso é outra história), há uma continuidade narrativa que realmente demanda que acompanhemos a jornada desses personagens. Além do meio técnico de produção, o meio técnico doméstico para exibição melhorou, as TVs se tornaram maiores, ficaram retangulares, reproduzem com melhor cor, som e textura.

Muitas séries, hoje em dia, possuem o Cinematic Look. Isto é, a TV hoje com todo seu aparato consegue reproduzir todas essas tecnicidades. Isto não quer dizer que faça necessariamente um bom uso deles, às vezes o faz, às vezes não; nem mesmo o cinema por vezes faz esse bom uso. De todo modo, o importante é que hoje numa sacada de olhar o cinema e a TV são indiscerníveis.

Ringu (1998, Hideo Nakata)

Sendo TV ou não, o que importa é que se faça um uso criativo ou imaginativo destes meios técnicos. The Menu, filme de Mark Mylod, é um bom exemplo de indiscernível, no caso destes que não conseguem almejar nada de imaginativo com todo aparato técnico que possui.

A questão do Cinematic Look é que ele lhe atrai em alguma medida, tudo é muito polido, bonito, tem bons atores, aparentemente tudo custou caro, pensa-se “alguém investiu aqui”. Mas parece que esqueceram de que é preciso dirigir um filme, é preciso ter ideias, é preciso usar os materiais do cinema; não basta expô-los. Em toda sua pompa, nesse uso completamente banal e irrisório de todo aparato cinematográfico, Mylod quer produzir uma crítica dentro de uma aspecto genérico de sátira de horror.

O modo de produção do cinema no passado parece que permitia uma maior inventividade do diretor, apesar dos produtores serem conhecidos pelo controle e poder. Curioso que não se conhece mais nenhum produtor hoje em dia, o que fica são apenas os nomes das empresas. No modo de produção do passado, os diretores reconheciam os limites que tinham e inventavam o mundo a partir daí. As produções da safra B de Hollywood, como grande parte dos noir e até mesmo de western são grandiosos por conta disso. Se os atores eram péssimos que se inventasse algo, se não há boas locações que se criasse um universo de outro modo, e assim por diante. Parece que hoje segue-se o roteiro, não se pensa muito em nada que vai além disso.

The Menu (2022, Mark Mylod)

O que quero dizer com isso é que o problema não é ser televisivo, não é ter ou não ter o cinematic look, o problema é a falta de imaginação. Não importa as boas intenções, e convenhamos não há nenhuma boa intenção em The Menu. Uma crítica social que não sabe sobre o que está falando, que faz as críticas mais pueris em suas alegorias bobas, “você é o motivo do mistério ser removido de nossa arte”?

Um filme onde os personagems mal compartilham as cenas mesmo estando todos eles no mesmo espaço durante o percurso narrativo. Onde as intereções entre os personagens é mero cacoete, trezentos esteriótipos que nunca servem de caricaturas de verdade. A sátira bem realizada não torna algo bobo, mas revela a estupidez. E este filme não revela nada.

A sacada final do hambúrguer é ainda pior, é como se dissesse com todas as palavras. “Sim, tudo é uma grande baboseira, nós sabemos que a melhor comida é, curiosamente, o X-Burguer americano”.

Como se estivesse assumindo que nada daquilo importa, nem mesmo a crítica, porque no final, bom mesmo é a arte enlatada de sempre, aquela a que você assiste e se reconhece e vai embora. Mas não tem problema, afinal foi feito com amor.

A arte que te diz o que pensar e não te provoca a pensar; é uma descrição curiosa para um filme que expõe sem nem saber o que e o porquê daquilo que ele mostra.

The Menu é só um exemplo de tantos filmes. Isso existe em todas as épocas, é certo. Mas, por algum motivo, parece estar em alta no momento. A moda é o filme indiscernível sem imaginação que discursa “criticamente” contra algo, que pode ser facilmente validado no discurso corrente por “discursar corretamente”. Disfarça todo o seu teor reacionário, numa roupagem do filme bem feito, urgente e para todos.

É um problema que Adorno trouxe muito bem ao pensar a arte crítica e a administração da cultura por parte das instituições. Em nosso caso aqui, o streaming, Hollywod (que nem sequer são instituições, mas sim planejamentos comerciais, mas forçemos um pouco a analogia).

“O processo de neutralização, a transformação da cultura em algo próprio e excluído da relação com a práxis possível, viabiliza sua integração sem riscos ou contradições ao sistema que ela incansalvamente tenta depurar. O fato de que manifestações artísticas extremas possam ser hoje requisitadas e disponibilizadas por instituições oficiais, inclusive que tenham de fazê-lo para que sejam produzidas e possam alcançar seu público — sem que por isso a arte deixe de denunciar tudo aquilo que diz respeito a instituições e organizações — diz algo a respeito da neutralização do cultural, assim como de sua compatibilidade com a administração.”¹

Apenas para concluir, repensar o modo de produção dos filmes é com toda certeza a única forma de se conceber uma arte crítica, ou ainda mais, uma arte que possua alguma imaginação.

1- Cultura e Administração (1960) — Theodor Adorno

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