Duas Figuras da Paixão em William Wyler

Ghosts Without Machines
5 min readAug 27, 2020

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A Carta (1940) — William Wyler

A paixão é aquilo que nos escapa de formalizar. É bem notório as tentativas de uma teoria geral deste acontecimento, mesmo com outros nomes como a teoria dos afetos de Spinoza, ou a teoria das emoções de Vigotski (que ganha contornos cognitivos).

A paixão se expressa na linguagem ou no seu esvaziamento, ou ainda na própria interrupção da mesma. O ato trágico é próprio da paixão, o ato violento que se faz e desfaz da linguagem.

William Wyler é um diretor clássico de Hollywood, por muitos considerado apenas um diretor da máquina, mais um técnico que um artista. Todavia, quando assisti pela primeira vez dois de seus filmes, realizados em 1940, pude perceber que essas asserções estavam erradas.

A Carta (1940) — William Wyler

Mas, antes de entrar aqui na discussão da autoria, da essência do cinema, espera-se apenas esboçar duas figuras que constroem essa experiência sensível da paixão que aparecem nas obras do diretor realizadas neste ano.

O primeiro se chama A Carta, um suspense com Bette Davis, sobre uma moça que mata um homem na porta de sua casa. A primeira cena do longa é a que contém o ato trágico que se desfaz da linguagem.

Com um plano-sequência que abre o longa apresentando o látex, em sua brancura, gotejando um pequeno vaso natural; a câmera acompanha os trabalhadores descansando num ambiente noturno e sereno que já coloca o espectador numa aura especial. Logo, os barulhos dos tiros acordam a todos, Leslie (Bette Davis) matou um homem na porta de sua casa.

Essa cena é, de fato, composta por dois planos, mas sua sutileza lhe faz parecer um só. Todo o longa é uma tentativa de recolocar em palavras esse ato trágico. Afinal, ela precisa se explicar, ela precisa explicar o que a paixão a levou a fazer. É preciso explicar para um júri sua inocência, mas o apaixonado é sempre culpado, matando ou não.

A Carta (1940) — William Wyler

É disso que a carta surge, a carta roubada, como um objeto que pode revelar a verdade do ato trágico. De certo, os personagens a leem, o espectador não sabe seu conteúdo de fato, mas sabemos os seus fantasmas.

A situação de Leslie, em alguma medida, é a do enamorado culpado por não ter ido longe o suficiente. Esse não é o único ato trágico do filme, os dois atos que ocorrem se conectam pela luz do luar, aquela tão relacionada à loucura, aos lunáticos.

Em um tom completamente diferente, o outro longa que realizou foi um western, chamado de A Última Fronteira*. A história se situa no final Século XIX, quando havia uma briga ferrenha entre agricultores e pecuaristas pelo uso da terra.

A Última Fronteira (1940) — William Wyler

Numa cidadezinha, um juiz — e também dono de bar — coordena julgamentos que levam pessoas à morte ao seu bem querer. A chegada de Cole Harden (Gary Cooper) acaba por torcer esse jogo, pois ele sabe manipular a paixão do juiz Roy Bean (Walter Brennan).

É interessante denotar como esses dois personagens compõem bem uma relação de gato e rato, extremamente contida e sutil, realizada quase toda pela via da linguagem, pelos olhares e pequenos gestos. Os dois são quase opostos; Harden tem um senso de justiça, mas uma ardilosidade, a princípio, parece tentar apenas se salvar, quando aos poucos demonstra uma compaixão por todos ao seu redor.

A Última Fronteira (1940) — William Wyler

Roy Bean não é seu exato oposto, de alguma maneira é tão ardiloso quanto. A diferença que fica é que não lhe parece existir nenhum senso de justiça, mas sim uma espécie de loucura apaixonada. Não que não exista lógica, de fato existe, mas em certa medida ela é perversa.

A paixão do juiz é por uma moça da qual ele nunca viu em carne e osso, uma moça que se apresenta em vaudevilles. Existem diversos atos trágicos e violentos no filme, mas o grande ato de paixão se faz dentro do teatro, enquanto Roy Bean compra todos ingressos para assistir seu amor, ao passo que Harden tenta assassiná-lo.

O fim de toda a cena faz explodir o que há de mais forte nessa dupla. A compaixão de Harden o faz carregar o fatalmente ferido Roy até a vista de seu amor, enquanto este último, mesmo à beira da morte, não deixa de estar vivaz, eletrificado como um Frankenstein pela visão de seu objeto amado.

Na morte, em sua morte, no esvair de suas palavras, lá esta ela até tudo evanescer.

A Última Fronteira (1940) — William Wyler

A paixão com seu fervor fulgurante produz o enamorado. O sujeito da paixão faz de tudo por seu objeto amado até mesmo aniquilá-lo, é preciso suprimi-lo; parece até mesmo que o sujeito vive sua paixão mais intensamente na ausência de seu objeto. E o mais próximo que se pode estar a afirmar esse amor, parece ser se colocando diante da morte. Não é à toa que as duas histórias ocorrem na ausência do objeto amado.

Wyler com seu olhar preciso para plano longos e uma encenação por vezes fantasmática, consegue produzir imagens poderosas o suficiente para capturar essa potência da paixão.

A Carta (1940) — William Wyler

*A Última Fronteira também já foi distribuído com o título O Galante Aventureiro, no Brasil.

The Westerner, 1940 — William Wyler

The Letter, 1940 — William Wyler

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