Digestivo Humanista

Ghosts Without Machines
5 min readSep 16, 2022

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Limbo (2021), de Soi Cheang, foi um dos filmes mais impactantes do ano passado. Não só pela brutalidade e o terror de suas imagens, mas também por amalgamar algumas distintas tradições do cinema de Hong Kong em um equilíbrio notável. Não é à toa que foi ele a conseguir tal feito, afinal, seus trabalhos iniciais já o colocavam nos filmes B de horror do país (New Blood [2002], Horror Hotline… Big Head Monster [2001] e Home Sweet Home [2005]); ao passo que trabalhava com auxílio de figuras mais populares como Johnnie To (Motorway [2012], Accident [2009]) e Wilson Yip (SPL 2 [2015], e o próprio Limbo).

Raro foram às vezes que um filme conseguiu trazer a sujeira e o lixo como o labirinto urbano, o ossuário da cidade nada mais é que a completa indiscernibilidade entre objetos, dejetos e humanos. O acúmulo de coisas ao infinito parecem tornam a alteridade entre elas completamente inexistente, só há um grande lixão. Numa crítica da Variety, escrita por Jessica Kiang, incomoda a autora ninguém se importar com o que se passa com essa indiferença.

O mote do filme é um assassino que está matando mulheres, mulheres marginais, viciadas, prostitutas; ele sempre corta a mão delas, assim como as estupra. Cheang filma tudo num preto e branco de forte contraste, mas que produz um efeito poderoso ao conectar a mão decepada e uma tralha inútil num único e mesmo tom. Nos parece notório que é sobre isso, acima de tudo, o filme: a indiferença do mundo pelo acúmulo. É sobre esse terror que os esforços de Cheang se organizam, o espanto se encontra nos olhos dos personagens o tempo todo.

Há todo o aparato do cinema noir. Os detetives melancólicos e brutos; ou ainda o jovem aprendiz a descobrir a sujeira do mundo. O filme tem três protagonistas, além do traumatizado detetive Cham e de seu contraparte Will Ren, com seu siso a fissurar sua gengiva, há Wong To. Essa é a protagonista que mais mobiliza o enredo, seja por estar no lugar central do trauma do detetive Cham, seja por ser a ligação para o mundo marginalizado.

Em primeiro lugar, ela é vista como lixo, não só por sua posição social, mas por ter atropelado a esposa de Cham. Nesse sentido, o que ela busca é o perdão deste homem que logo de início quer matá-la. Durante a narrativa ela afunda-se ainda mais no universo marginalizado ao ponto de se tornar uma vítima do assassino. É nessa hora, entre os corpos desmembrados, que o detetive Cham entende que tanto To, quanto sua esposa, estão sob o mesmo problema, sob o mesmo mundo; entre o lixo e aquilo que é de mais sagrado.

Kiang, em sua crítica, ainda ressalta que este é o mesmo tropo de outrora, a mulher chega à redenção enfrentando o inferno (o que quase sempre significa estupro), um tropo utilizado incessantemente. Não há que negar que há algo na superfície que parece isso. Mas não é tão simples. Pois, no final, ela mata o homem que ela mesmo queria o perdão, do mesmo modo que o dente podre de Will Ren solta-se de sua boca. Tudo isso acontece pela violência institucional policial, é a maldade de Cham que torna To lixo.

Não é a mesma coisa, não assistimos tanto a redenção dela, quanto a relação complexa destes três personagens tragados por todo esse lamaçal de violência. Quando ela o mata, mesmo que sem querer, ela realiza o gesto divino de destruição de certo mal, um mal tão perverso quanto aquele do psicopata. Diversas vezes Cheang constrói uma relação imagética entre a violência que as mulheres sofrem nesse filme, sejam as mortas, To ou a esposa de Cham. Do mesmo modo que a consciência que o detetive adquire do mal que está causando ao seu redor, se dá com a ajuda que oferece às escondidas ao seu discípulo. Afinal, se ele é o único que reconhece o cheiro do lixo, não é só por está acostumado a meter a mão na massa, mas sim pois foi consumido como o psicopata pela sujeira total.

Não enxergar a jornada de expiação do mal e não sentir horror pelos que estamos vendo é algo a literalmente escapar do filme. A indiferença para com o que estamos vendo não é designada pelo estilo de Cheang, pelo contrário, ele a usa para nos fazer se sentir abismado, no aterrador universo de seus personagens, que ele se importa em demasiado ao ponto de com cuidado realizar o espírito da tragédia catártica.

Se o choque com a violência da mulher nesse filme é criticada, mas é laureado o inconsequente Promising Young Woman (2019, Emerald Fennell) é que estamos muito acostumados com os digestivos humanistas, isto é, se tudo for dito de maneira polida você ignora o abjeto e volta para casa feliz, com uma boa lição de moral. Este filme, vencedor do Oscar de roteiro original, se apropria da estrutura de rape revenge, mas de forma evasiva. Não é a vítima do estupro que caça seus malfeitores, mas sim sua amiga; ela se vinga dando grandes lições de morais, mas sem nem sequer fazê-los sangrar, no fim, ela morre, mas com um ato de suposta inteligência: denuncia todos para a justiça, a mesma que outrora os declarou inocentes. A personagem precisou morrer, para cairmos no mesmo lugar de sempre. Ainda somos demasiadamente humanos, trata-se mesmo de ser inumano, saber o que há de humano no lixo, e de lixo no humano.

Com Cheang, a justiça só se realiza no campo do divino, ou do espiritual; e, certa media como efeito próprio de um destino trágico. Por exemplo, quando em Acidente (2009), no jogo de luz final, não há mais escapatória de seu protagonista em sua vingança. Do mesmo modo que Cham deve morrer, este sim deve morrer, para que o mal seja expiado.

Não é por ser nojento, decrépito e violento visualmente que o filme de Cheang é destituído de um fôlego espirituoso, algo que é inexistente no filme de Fennell, tão consagrado como modelo de como lidar com o assunto. Aí sim, entramos na abjeção, distante da superexposição ou do maximalismo, mas sim o do glorioso minimalismo vazio. Ele é pop, brilhante, liso, lembra as esculturas de Koons, um grande balão vazio, mas que brilha.

A fixação de Cheang pelo desmembramento, pelo sangue, pela violência presente em grande parte dos seus filmes. Não é apenas choque, é jogar a luz, literalmente, sobre isso, sem respostas prontas, para construir estrutura ao problema. Só assim que atingimos algo além de uma mensagem humanista e chegamos de fato ao campo problemático do humano; onde a justiça existe para além das intenções, para além das fardas, para além do aceitável pelo decoro.

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