Descida ao Caos
“The house was a monument to evil sitting there all these years, holding the essence of evil in its smoldering bones” Ben Mears em Salem’s Lot (1979)
1.
Tobe Hooper com certa frequência em seu cinema opta pelos personagens encontrarem locais escondidos dentro de outros locais, pode ser uma pequena fresta em nosso mundo, uma casa que desconcerta uma cidade, um segredo em cada parede. Em diversos destes lugares, espaço anómicos, encontram-se algum tipo de passado horroroso, que é notório pelo teor decadente e decrépito; é certo que há diversas formas de apresentar essas figuras.
A forma com que o diretor tem apreço pelos espaços que filma é algo raro. Apesar de ter se tornando conhecido pelo estilo próximo do cinema verité de seu tempo com O Massacre da Serra Elétrica (1974), no fundo, ele é um diretor extremamente plástico e ligado ao décor de uma Hollywood clássica. Os exemplos mais claros aqui são o universo de Eaten Alive (1976), Invaders from Mars (1986) e até mesmo seu apreço pela Hammer Film Productions com Lifeforce (1985).
Um espaço que revela, portanto, sua artificlidade e seu maquinismo também, há ainda as máquinas infernais sejam estas da tradição ou não. Parece que Hooper está sempre a remontar que os lugares tem a presença intesa de tudo que veio antes, os cemitérios, as fábricas, as máquinas de moer pessoas. É como se estes espaços possuíssem agência. Nesse sentido, se assemelha em algo com o cinema de Kiyoshi Kurosawa, mesmo com frequências muito distintas, os dois cineastas parecem estar a propor em capturar os espaços que filmam e fazer revelar dali todos os seus fantasmas. Sutilmente ou de forma explosiva, cada qual por seu caminho.
“Sua geografia é composta por corredores, respiradouros, baús,
freezers, caixas de todos os tipos.” Como diz Dominique Legrand, em seu livro sobre o autor, são estes territórios proibidos, de algum modo abandonado por Deus.
“Qualquer que seja a direção que a escada tome, descer até o
profundezas do inferno ou, pelo contrário, subir às alturas do horror, infelizmente sempre conduz a um espaço trágico. Muitas vezes é aqui que a jornada termina, em sangue e dor, às vezes em libertação.”
2.
Diria ainda que seus filmes possuem algo de especial na sua modulação. Enquanto em John Carpenter temos um afunilamento narrativo que me parece com certo equilíbrio, como se em linha reta somos gradualmente cercados, Hooper em grande parte das vezes faz explodir o final, em um caos por vezes inimaginável, há um afunilamento, o espaço nos cerca, mas é como se o caminho fosse uma espiral. Até mesmo Poltergeist (1982) que é acusado de ter sido dirigido por Spielberg tem um final que é completamente desolador, o assombro do passado é apocaliptíco (e este é o termo mais associado ao Massacre da Serra Elétrica), há um clímax feliz e outro mais absurdo, todos terminam sãos e salvos, mas com a total fragilidade familiar e suburbana exposta.
Jean-Baptiste Thoret nos diz sobre Massacre
“O Massacre da Serra Elétrica é antes de tudo um filme sobre o Fim. Sobre a negação das ilusões e das fábulas iniciáticas, sobre a apologia da regressão como única saída possível de um mundo à beira do abismo, sobre o Fim de uma América conquistadora e segura de descobrir como se estivesse emergindo de um pesadelo inquieto, um mundo transformado, de cabeça para baixo, paranóico e absurdo”
Mesmo que isto seja insitir em certa briga ou leitura demasiadamente autorista, me parece que há algo de revelador sobre seu estilo em exigir essa espécie de caos. Por muitas vezes exagerada, absurda, distoante, que pode ser mesmo vista como ridícula. Como a exemplo das peripécias de algumas de suas figuras monstruosas, seja a máquina de lavar, o próprio desenrolar da famíliar de Leatherface, ou ainda seus aliens. Ou ainda os gritos de desesperos de seus protagonistas, o amor irresoluto de Combustão Espontânea é digna de ser apreciada.
Esta semana assisti Um grito de Revolta, filme de 1972, dos irmãos Taviani, que acompanha o aprisionamento do revolucionário Giuliano Manieri. Em certo momento, esse personagem percebe que sua tentativa de manter a rotina de sua vida pregressa o torna rídiculo. Falando com as paredes, exercitando-se, seguindo suas ideias sem alteração, ao menos ele não é resignado. Melhor rídiculo, que resignado.
3.
Gostaria de comentar aqui rapidamente sobre dois de seus filmes, Pague para entrar, reze para sair (1981) e Noites de Terror (2004); são obras com avaliações muito díspares. Enquanto o primeiro é considerado uma de suas obras-primas — que de fato é. A segunda é considerado um trabalho menor, esquecido em seu período tardio, provavelmente sendo taxado como genérico (aqui poderia incluir também Djinn (2013), seu último filme, desprezado, picotado para distribuição).
Acredito que os dois possuem um poder muito grande no vaguear de seus personagens pelo espaço e consegue fazer evocar essa ressonânica monstruosa que existe neles.
No filme de 81, acomapanhamos as jornadas de dois jovens no parque de diversão itinerante. De um lado, Amy Harper, do outro seu irmão mais novo Joey Harper. O início do filme, isto é o preâmbulo à total imersão neste parque, se organiza com a união de dois pastiches, tanto de Halloween (1978), quanto de Psicose (1960), em que o pequeno Joey se mascara e ataca sua irmã com uma faca de borracha. Toda essa sequência nos coloca no universo do filme slasher, mas também nos revela a fixação infantil que o pequeno Joey possui pelas figuras monstruosas.
Amy mente ao seus seus pais e vai com os amigos para o parque, na intenção de obter o encontro amoroso que anseia; já Joey vai escondido de todos ao parque, vagando e encontrando-se com todo tipo de estranheza. Definitivamente, o filme nos conecta com Amy acompanhamos sua jornada, descobrimos o univero todo por ela, mas nas margens da situação sempre há Joey.
É como se Joey estive buscando alcançar, por suas vias, é claro, a mesma transgressão que sua irmã, mesmo que possivelmente não iria compreendê-la. Quando os jovens decidem dormir dentro da casa de terror para ficarem até o fechamento do parque. De certo, até este momento, o parque havia floreado seu mundo obscuro através deste vaguear dos personagens, com a câmera de Hooper sempre atenta às aparições por todos os cantos da tela. Ele opta por planos longos que possuem um teor exploratório, usando todo alongamento do scope para nos dar uma dimensão geral do espaço.
Com esta decisão Amy irá encontrar os bastidores deste universo, assim como Joey, que decide ficar no parque à espera do apagar das luzes. É aí que surge, o que já comentamos, o espaço escondido, monstruoso. Os jovens que decidem ficar dentro da casa de terror viverão um inferno total, a ter se deparado com este universo, por ter ultrapassado as linhas que haviam sido definidas. É a partir daí que o caos se estabelece de uma forma brutal.
A figura do Frankestein é de extrema importância aqui. Afinal, está em toda parte, no quarto de Joey ou no filme que passa na TV para seus pais, isto é o monstro domesticado; quando a figura do Frankestein retira sua máscara é que finalmente tanto Amy, quanto Joey se deparam com a monstruosidade real.
O Hooper impõe aqui um ritmo muito mais frenético em que o desespero ascende infinitamente, tudo que parecia bobo dentro da casa de terror, como o próprio monstro das histórias, torna-se perigoso, horripilante. A própria casa de terror, torna-se uma máquina assassina, em que bonecos, barulhos, luzes e sombras pululam de todas as partes. Os personagens vão descendo cada vez mais às engrenagens do funcionamento do local, onde cada vez mais o espaço possui uma agência que permite que este apocalipse acontença; aqui apocalipse subjetivo em certa medida, mas também a desolação de todo aquele universo, dos pais embotados, dos irmãos inconsequentes, da família monstruosa. Nenhum dos dois poderá ser o mesmo, será mesmo que um dia estarão salvos?
A jormada dos irmãos difere de maneira extremada, mesmo que existam diversas sugestões de que as piores coisas do mundo poderiam ter acontecido aos dois. Hooper opta por repetir um movimento de câmera com os dois que nos faz perceber toda a desolação de destruição das ilusões, agora sim, os dois sabem o que são monstros de fato. A perda de todas as ilusões, perfeitamente encapsulada no teor desolador deste movimento ininterrupto da câmera destes planos médios para o plano mais aberto.
4.
É curioso que seus últimos três longas sejam sobre mudanças de residência. As três moradas, claro, esconderiam segredos antigos. Noites de Terror (2004) me surpreendeu por ser um filme que parece jogar o jogo do terror dos anos 2000 e de praxe ser propriamente o seu filme que mais segue também a lógica narrativa do gênero slasher. Hooper, apreciador de Minnelli e Curtiz, sempre foi detalhista quanto a decoração dos seus espaços cênicos, mas o cinema dos anos 2000 sempre esteve em busca do gênerico, do reconhecível, do familiar, de certo preceito “isto poderia acontecer com você”. Não podemos dizer bem ainda se foi o gênero ou mundo que perdeu suas cores.
Em Los Angeles, um casal, Nell e Steve, mudam-se para um apartamento antigo, que passa por uma grande reforma. O assassino mata com utensílios da caixa de ferramentas, fazendo com que ninguém suspeite exatamente da ocorrência destas mortes. O que Hooper realiza é filmar nossa protagonista a vaguear pelos corredores decrépitos, aos andares mais ao fundo deste espaço, assim como a fazê-la encontrar as frestas de todo o lugar.
O filme é expositivo quanto a isso, no diálogo que Nell tem com o seu morador mais antigo, “ Abrir este prédio como um paciente
anestesiado, numa mesa de operações. Não é nada bom.” Em certo ponto, visualmente as mortes parecem mais um pretexto para a câmera se impregnar do magnetismo que há no antigo
Curiosamente, este filme possui um teor dos horrores da grande cidade de Hollywood, é como se houvesse uma certa materialização da violência cíclica deste universo, quando nossa personagem entende que existe uma história em casa estranheza que ela já havia localizado, ela torna-se quase que paranóica. O tempo todo presa em alarmes falsos. O filme é cheio de pistas falsas, algumas muito cômicas, inclusive, mas que vão caindo por terra.
Afinal, como no filme citado anteriormente, o frankenstein só pode ser uma máscara para um mal pior, não porque esse mal é agenciado por um ser humano qualquer, não é nada disso. Mas sim porque essa figura maligna é só um braço, uma consequência, da agência própria de todo um espaço maligno. Nell descobre o oculto que existe desde muito tempo no seu próprio lar.
O mal que habita luta pela a sua própria perserverância e uma reforma, uma mudança, não poderá mudá-lo de maneira tão simples. Um pouco com Djinn (2013), seu último longa, realizado nos Emirados Arábes. Quando um casal retorna ao país após a perda de um bebê e um novo trabalho, passam a residir num prédio novo, um pouco isolado. De certo, um prédio construído sobre coisas ocultas desde a fundação desta sociedade.
A habilidade de Hooper em nos apresentar isto está em sua atenção ao décor, plástico ou não, a apreensão do espaço como algo iminentemente violento, monstruoso. A minúcia com que faz isso criar um tempo de vaguear dos personagens que por fim são sugados para um ritmo frenético, confuso, não sabemos mais se devemos descer ou subir as escadas, mas sabemos e, vemos, o caos sair pelas frestas.