David Cronenberg, pensar com o corpo

Ghosts Without Machines
24 min readOct 11, 2020

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“ ‘Dê me um corpo’: esta é a formula da reversão filosófica. O corpo não é mais o obstáculo que separa o pensamento de si mesmo, aquilo que deve superar para conseguir pensar. É, ao contrário, aquilo em que ele mergulha ou deve mergulhar, para atingir o impensado, isto é, a vida. Não que o corpo pense, porém obstinado, teimoso, ele força a pensar, e força pensar o que escapa o pensamento, a vida. ” (DELEUZE, 1990, p. 227) [0]

A partir desse olhar do corpo no cinema e sua função em nos fazer pensar cabe encontrar o ponto de vista de David Cronenberg, entendendo que aventurar-se por sua filmografia é adentrar na filosofia. Sua obra composta de 21 longas (até agora), exploram o mistério do corpo, de fato, um medo que produz mistério.

Em seu percurso, desde os anos sessenta até a atualidade, é possível esboçar duas fases distintas, porém que continuam a abordar os mesmos anseios. A primeira fase, carregada de efeitos especiais práticos e que o marcou como uma das principais figuras do terror do corpo (body-horror), enquanto a segunda já é marcada por um visual mais seco, quase ascético, que busca não a transfiguração dos corpos, das suas afecções, porém um olhar minucioso pela ruptura do íntimo que abre a história de um corpo, do campo de forças sociais que ele carrega.

Primeira Fase — O Desejo

Scanners (1981)

1) Mente/Corpo

É possível entrar na filmografia do diretor por diversos caminhos. Um deles, explorado exaustivamente, é a relação da mente e do corpo. Muito diferente do que se discute na filosofia cartesiana, o diretor se próxima das articulações de Spinoza, em que a ordem das afecções do corpo é a mesma que a ordem das ideias na mente. Em filmes como Scanners e Filhos do Medo, este paralelismo[1] se demonstra de maneira mais notória, os horrores da mente se expressam no corpo e vice-versa.

Em Scanners, por exemplo, as forças mentais e físicas se constroem em conjunto. Os ditos “scanners”, com suas habilidades psíquicas, se retorcem em caretas, em suor e tensões corporais. Em Filhos do Medo, os horrores mentais de Nola se expressam também em seu corpo, produzindo criaturas nefastas. Cronenberg a todo momento enquadra os corpos, em suas partes, em suas conexões, em suas afecções. Pois, são nestas expressões que se torna possível compreender o paralelismo da mente e do corpo, seu problema filosófico:

“Para mim, o primeiro fato da existência humana é o corpo humano, mas se você abraçar a realidade do corpo, você abraça a mortalidade e isso é algo muito difícil de se fazer, simplesmente pelo fato de que nossa consciência não pode imaginar a não-existência. É impossível de fazê-lo. ”[2]

Portanto, adentrar nesses meandros é como adentrar no medo, pois o corpo é um mistério, o próprio Spinoza já dizia que ninguém havia determinado o que pode o corpo.

Nos primeiros longas do diretor, o nojo, o gore são comuns exatamente como afirmação do impensado do corpo, o que quer dizer que a partir de uma relação que não subjuga o corpo ao mero mecanicismo, ele propõe pensar o que escapa ao pensamento.

Deleuze, em seu livro sobre Francis Bacon, discute a diferença do figural e do figurativo, no qual o figural é a expressão do que escapa, daquilo na qual não pode ser percebido de forma qualquer, mas escorre e afeta.

Videodrome (1983) / Auto-Retrato, Francis Bacon (1971)

As pinturas de Bacon são sempre disformes, onde explora composições diferentes de corpos. Assim, expõe na pintura de maneira figural aquilo que atravessa os corpos, atingindo não o intelecto, mas as sensações. Dessa forma, quando Cronenberg explode os corpos e os expõem, com um uso belíssimo dos efeitos práticos, o sangue, a mutilação, o avesso do corpo, parece usar da mesma técnica conceitual[3].

Veja bem, o corpo se torna Figura para tornar sensível a intensidade das forças que o compõe. Diferente de outros longas de terror em que o monstro demarca o “outro”, aqui ele não se reduz a um reprimido que retorna, ele incide no próprio corpo, é um parasita que não pode ser assimilado pelo “mesmo”, nem ser encaixado plenamente como o “outro”. É a própria força dos desejos apaixonados e das relações.

Três estudos para um retrato de Lucian Freud, Francis Bacon (1964)
Scanners (1981)

Portanto, o body-horror do diretor tem uma lógica da sensação, para expressar aquilo que escapa. Isto que escapa (a vida) são devires, passagens, produzidas por afetos por grandes demais para caberem nestes personagens.

Todas as lógicas binárias se desfazem, não só a da mente e corpo, mas também a do homem e da mulher (o parasita fálico em Rabid, ou a cavidade vaginal em Videodrome), humano e não-humano (Videodrome e eXistenZ com a tecnologia), humano e animal (A Mosca)[4]. É perante a estas passagens e transformações que os personagens parecem passar por algo maravilhoso ao passo que algo plenamente doloroso e transformador.

É como se as estruturas sociais que regem a formação dos corpos chegasse a certo limite. Todas essas categorias que dividem, separam, organizam e hierarquizam os corpos se contorcem. Desse modo, percebe-se uma certa negação de Cronenberg do simbolismo, não há nada por trás dos corpos explodidos, é muito mais a exposição sensorial de um processo.

Seguindo o caminho trilhado por Kafka, que afirma, de forma seca, sobre a situação de seu protagonista, transformado em um inseto: “Não era um sonho” [5]. Cronenberg com o seu protagonista brinca, em A Mosca, “ eu sou um inseto que sonhou que era um homem e eu amei isto. Mas, agora, o sonho acabou…”, os dois autores afirmam que estes personagens não passam por metáforas, ou relações simbólicas, mas transformações atuais e materiais, seus corpos se transfiguraram, passam por devires.

A Mosca, 1986

Antes que se diga que o corpo no cinema do diretor serve apenas como veículo de seus pensamentos, é completamente diferente. O que há é uma não hierarquia, as transformações mentais acompanham as transformações do corpo, e vice-versa.

2) O desejo irreparável

Outro tensor que surge em suas obras é o desejo. Não uma concepção qualquer de desejo, mas sim, uma força que se produz e transtorna o sujeito como uma verdadeira doença, como visto em Calafrios, Rabid e até mesmo nos experimentos de Crimes do Futuro e Stereo, seus filmes universitários. Em Calafrios, uma criatura fálica, criada artificialmente, rasteja e penetra os corpos dos residentes de um condomínio, onde todos ficam impulsivos em relação ao sexo.

Todas as moralidades, todos grandiosos valores humanos desabam, e permite-se um desejo que irrompe e transforma a todos. Já Rabid, se estabelece praticamente da mesma forma, é como se os dois filmes fossem irmãos; uma mulher, após um experimento, se torna portadora de um vírus que a faz desejar o sexo de maneira irrepreensível.

Calafrios, 1975

Em Freud, a libido é uma energia psíquica inconsciente, de forma a ser irrepresentável, ela só pode ser representada por algo quando se conectada a algum objeto ou palavra[6]. Ela mobiliza e empurra o sujeito ao mundo, parte da energia psíquica é sublimada em práticas sociais, outra parte mobiliza um desequilíbrio dentro do próprio aparato psíquico. Tanto em Freud quanto em Cronenberg, essa força que faz fluir a economia psíquica, sempre em desequilíbrio, se expressa no corpo.

Shaviro [7]questiona tal noção freudiana, pois o corpo não parece apenas como teatro de um jogo representativo das forças do inconsciente, das ideias recalcadas, ou seja, mero meio para representar algo da mente. O corpo não é a máquina dos terrores da mente, mas sim, como já visto, contém os terrores e amores da própria vida, que se confundem completamente, contém o impensado, o irrepresentável. Para Cronenberg a maneira de chegar ao irrepresentável é chegando o limite.

3)A abordagem da Doença

Ao tentar caracterizar essa primeira articulação de Cronenberg, percebe-se uma perspectiva, na qual a doença do desejo toma conta de todos os sujeitos. Esta doença afeta a mente e o corpo sem distinção. Nesta primeira fase, ele se coloca na posição da doença.

Shaviro demonstra que as doenças em Cronenberg não são expressões de repressões e recalcamentos, mas a revolta do corpo, uma expressão direta de paixão. É preciso dizer, primeiro, que o impensado não é o recalcado; e, em segundo, que a paixão como noção marxista para Deleuze & Guattari é comparável ao desejo, ou seja, não é falta alguma, mas positividade[8].

Filhos do Medo (1979)

O que parece existir em Cronenberg é um devir, ou seja, passagens e transformações que são guiadas por essas doenças, essas monstruosidades que são próprias da vida. O que as expulsa, os que a nega é a concepção de homem saudável. Veja bem, o que o sujeito abstrato racional nega é a paixão como algo absurdo, algo monstruoso, o que o diretor está fazendo é demonstrá-la como coextensiva ao sujeito, mesmo que ela possa levá-lo a sua autodestruição.

Deste modo, todos os seus filmes nesta fase são uma incursão pelo adoecimento de seus personagens, ou seja, sua ligação com os rastros de seus desejos, explorando muito mais os efeitos do desejo que a produção deste. Por isso, o foco no horror, no transtorno, na agonia, pois estamos a observar a expressão dos sintomas de uma doença demasiadamente relacional.

Questionamentos Intermediários

4) Desejo e Máquina, ou sobre Videodrome e eXistenZ

Estes dois filmes conectam o diretor ao pensamento da Escola de Toronto, ao compreender os meios de comunicação (as tecnologias propriamente ditas) como extensão do corpo humano. Sua relação com McLuhan se faz quando compreende que cada mudança tecnológica que ocorre reconfigura toda a relação do homem com o meio e é por este fato que “o meio é a mensagem”, pois o que se passa são as próprias alterações do meio, isto é a mensagem e não conteúdo algum[9].

Enquanto Videodrome apresenta uma mudança radical na conexão do homem com o mundo com efervescência da televisão, eXistenZ traz outra grande mudança com o poder interativo não só dos jogos, mas da sua expansão com o meio da internet.

Videodrome, lançado em 1983, tem em sua data um fator marcante do seu contexto, principalmente nos anos 80, ano em que a TV começou a ganhar cada vez mais popularidade com a eclosão dos videoclipes, do soft porn e tantas outras possibilidades de canais. Além disso, é possível creditar ainda a intensificação de políticas neoliberais, que demarcam também a selvageria do mercado.

As imagens de Videodrome são talvez as mais poderosas e agoniantes dos filmes do diretor. Max Renn é um homem viciado pela violência que assiste na televisão. Neste filme, o desejo é expresso como fluxo concreto que passeia pelos canais diversos em busca de conexão, disjunção e consumação. Por isso, ao pegar numa arma ela se acopla à sua mão, o ferindo e tornando-se perfeitamente parte de seu corpo.

Assim sendo, essa lógica de acoplamentos é maquínica, o que quer dizer que funciona dentro de uma lógica do fluxo e do corte. Um objeto produz um fluxo e outro acoplado a este produz um corte. Não há nada de mecanicista aqui, não é uma redução do corpo humano à máquina, mas uma possibilidade de enxergar como funciona o fluxo de desejo a partir da ideia de produção e relação.

Deleuze & Guattari trabalham com três sínteses passivas que descrevem o processo de produção do desejo. A primeira é a síntese de conexão, ou seja, é a que acopla os objetos; a segunda é a síntese de disjunção em que há o registro distributivo das conexões feitas, todavia cabe salientar que é uma disjunção inclusiva na qual todas as conexões são permutáveis e elementos contraditórios e não relacionados podem entrar no registro; por fim, a síntese de conjunção é aquela que permite uma consumação de passagem, de devires[10].

Videdrome (1983)

É importante trazer tais sínteses para demonstrar precisamente o delírio por qual passa Max, por mais abstratas que sejam, elas descrevem com certa precisão o processo do desejo. Percebe-se a conexão e o fluxo do personagem à televisão; logo, um registro permutável de dois termos se forma: “homem” e “televisão” ou poderia ser “tecnologia”; por fim, existe a conjunção de Max-TV.

Todavia, a síntese conjuntiva pode fixar e não permitir uma passagem, o que produz enrijecimento em uma identidade, uma inflexibilidade na produção dos desejos. Portanto, deve-se salientar como o arranjo social da contemporaneidade consegue fisgar o fluxo do desejo e fixá-lo num ponto que faz Max desejar a violência, a morte.

Além disso, a própria televisão se encontra nessa conjunção humana, pois possui veias, tripas e pele, os dois termos se modificam, se misturam. Não há distinção real entre o homem e a máquina, muito menos se o que se encontra na tela é falso ou não, ou ainda o que se encontra na mente é alucinação ou não, são polos de um mesmo fluxos, termos que se conectam.

Veja só, o corpo de Max expõe o impensado e suas transformações perante as novas formas de comunicação, indo mais além, consegue demonstrar a produção do desejo sob o viés do controle capitalista da propaganda. É como se o processo do desejo estive realizado necessariamente na relação, e que cada meio irá engendrar certas formas de desejos.

Videodrome (1983) / eXistenZ (1999)

Em eXistenZ, lançado em 1998, as coisas se alteram, não mais a TV consegue colocar o homem nessa posição de engendrar desejos fixos, mas sim os videogames e sua nova extensão, a internet. O cybercorpo conectado, acoplado ao corpo humano, a nova consumação é a de Pikul-Internet, perturbado pelas identidades produzidas dentro dos jogos que permitem seus jogadores a realizar o que não conseguiam antes.

Se Max, em Videodrome, vai deixando de ser quem era e passa a ser controlado pelas máquinas capitalistas das grandes corporações, Pikul, em eXistenZ, ao entrar no jogo de Geller, passa a ser conduzido por “ações do personagem”. Quando faz algo que não deveria, toda a intenção recai ao personagem no qual atua.

Dessa forma, questiona-se até mesmo o conceito de identidade dos sujeitos, pois quando conectado a uma máquina o seu desejo é engendrado. A diferença máxima entre os personagens é que, enquanto um se vê maravilhado por essa descoberta em que seu desejo é criado, o outro se vê adoecido.

O mesmo processo das sínteses descritas para Max é estabelecido para Pikul também, a síntese da conjunção (a terceira síntese) pode ser definida pelo “então, é isso…”, no qual é possível delinear um sujeito, uma identidade.

Mas os filósofos, Deleuze & Guattari, acreditam que o desejo precisa produzir-se em devires, ou seja, em passagens, não em fixações. Com isto, entende-se essa dimensão processual como uma demarcação de intensidade. Quando Pikul se vê maravilhado por ter ganho uma identidade, logo demarca que não a tinha, mas ao mesmo tempo se fixa num ponto de consumação de si.

eXistenZ (1999)

A partir deste caminho proposto é possível pensar numa ontologia plana dentro da filmografia de Cronenberg[11]. Isto é uma horizontalidade radical em relação a todos objetos como fazendo parte de um mesmo plano de imanência que se afetam e agem uns sob os outros. É por isso que a TV, ou o jogo, a internet, a máquina de escrever, a mosca, os costumeiros objetos têm a mesma produção intensiva que um humano. É no acoplamento dos corpos que qualquer identidade surge, ou qualquer devir surge.

Esta radicalidade, com efeito, faz parte das propostas de Deleuze & Guattari discutidas anteriormente, na qual exigem uma intensa relação do homem com o meio. O desejo, portanto, figura ímpar desta primeira fase do diretor se produz em relação com o mundo, se engendra fazendo atravessar este impensado do corpo em conexão com o mundo.

5)A virada de Crash

Crash parece ser um demarcador de sua mudança de abordagem, por mais que alguns filmes anteriores já tivessem seguido por um estilo que é difícil de identificar em qual abordagem se enquadra como M.Butterfly, Gêmeos, Mistérios e Paixões, etc. De qualquer forma, sinto que Crash denota de forma mais notória qual é a mudança que o diretor acabou por realizar em sua abordagem.

Neste longa, no qual o protagonista se vê fissurado por acidentes de carro de maneira sexual, é de se esperar a maneira com que o diretor vai explorar o desejo. Incitando seus personagens ao limite das possibilidades de seus desejos, misturando seus personagens por meio da montagem com as máquinas.

Crash (1996)

Existe um grupo de personagens que têm esse fetiche há bastante tempo, seus corpos já são de certa forma recheados de cicatrizes como se fossem transfigurações, como se tivessem tentando ao máximo modificar seus corpos.

Em certo momento, Ballard, o protagonista, pergunta à Vaughn, o líder do grupo, “Então, qual é o seu projeto? Um livro de acidentes? Um estudo médico? (…)”, a resposta é “Algo… que estamos intimamente ligados. A remodelagem do corpo através da tecnologia moderna”. Esta primeira resposta é o que costumamos esperar de Cronenberg.

Já em um segundo momento do filme, os dois dialogam novamente e Vaughn diz “Por exemplo, o acidente de carro é uma forma de semear…em vez de um evento destrutivo…A explosão da energia sexual. Mediando a sexualidade daqueles que já morreram…com uma intensidade que é impossível ser mensurada de outra forma. Experimentar isto, viver isto, ‘isto’ é….isto é meu projeto”. Percebe-se aí uma conotação de um trabalho de campo antropológico, um estudo do potencial do corpo atentando-se à possiblidade de mensurar a experiência.

Crash (1996)

O que está em jogo é um momento de quebra, é a busca por uma experiência que produza um corte tanto por meio do prazer de adquirir as cicatrizes, como também um prazer da quase-morte. O que se busca não é a pulsão de morte freudiana, mas, precisamente “a explosão da energia sexual”. Ainda estamos no campo da paixão, mas é aí que a história se torna acoplada ao corpo, mas escondida.

O que importa agora é que história que esse corpo tem para contar, qual sua experiência, é uma investigação por meio das transformações, das cicatrizes. Se antes a aventura da paixão, ou melhor, o seu terror era o que se expressava na carne, agora é como se engendra tal paixão, em qual meio, por qual limite, e com qual marca.

Autores como Lowenstein[12] acreditam que é preciso resistir ao impulso de dividir a obra de Cronenberg em duas, normalmente pautando-se num dilema de gênero, como a primeira fase sendo o terror e a segunda o drama. Todavia, o que pauta a diferença entra as duas fases aqui não é em relação ao gênero, mas sim, as diferenças acerca do uso do corpo, que tipo de investigação ou experimento o diretor está fazendo sobre os corpos.

Ainda acredito que o que há de se observar nos longas do diretor é o corpo e o seu impensado atravessado pelas conexões com o meio, mesmo que a forma de aproximar desta investigação seja distinta.

Segunda Fase — A História

6) O corpo e sua história

Os Senhores do Crime (2007)

Marcas da Violência e Senhores do Crime talvez sejam os longas que melhor expõem essa nova problemática da abordagem do diretor. Tecnicamente a única grande mudança formal talvez seja se desprender do signo do figural, para explorar apenas o corpo em seu aspecto mais opaco e adentrar em sua história.

Estes longas tiveram seus nomes adaptados à lógica do mercado. Marcas da Violência se chama, de fato, A History of Violence. Traduzindo para o português teríamos Uma História de Violência, ou ainda Um Histórico de Violência, o que já denota uma ambiguidade certeira do título original. Seu enredo é simples, um homem, em auto-defesa, mata dois assaltantes em seu bar, toda a sua vida se torna um fato de dúvida, todos querem saber sua história.

Já Senhores do Crime se chama Eastern Promises, ou seja, Promessas do Leste. O filme narra o envolvimento de uma enfermeira com a máfia russa, após uma jovem a pedir que realize uma promessa, o principal personagem que representa a máfia é o de Nikolai, sendo o mesmo ator (Viggo Mortensen) que interpreta o protagonista de Marcas da Violência.

A história do corpo dos dois sujeitos é explorada, muito por conta da violência. É bastante notório em Tom Stall, de Marcas da Violência, que seu corpo possui uma memória, uma história, um passado, que se aciona em um momento de necessidade, é a partir deste movimento inusitado do corpo que se estuda o personagem.

Percebe-se com deveras incisão que esta resposta, este suposto tropeço de seu corpo, só é um tropeço para aqueles que pensavam conhecê-lo no momento, sua família. Este movimento incerto, como um movimento condicionado é o que torna possível revelar a história do corpo.

Marcas da Violência (2005)

Não é pelos diálogos, pelas lembranças da mente, que é possível conceber a história do personagem, mas por alterações corporais que passam a acontecer pouco a pouco. Sua gestualidade muda, sua presença muda, até mesmo sua voz parece soar distinta, como se suas cordas vocais houvessem se revirado. A partir disto, desta transformação do corpo é possível conhecer a história do corpo de Tom Stall.

Talvez fique ainda mais explícito, essa difícil busca da história experiencial do corpo em Senhores do Crime. Nikolai é um membro da máfia russa que reside em Londres. Em determinado momento do filme ele realiza um ritual para a passagem de um nível, ele ganha uma marca em seu corpo, uma tatuagem. Seu corpo já é composto por diversas tatuagens que efetuam sua aceitação nesta cultura particular.

Todo o filme contém esta noção do corpo como fonte de uma narrativa, de uma memória, de inscrição. As pessoas estão conectadas por uma história do corpo que não se diz verbalmente. É como se o impensado que se expressava com o figural, agora se torna ainda mais seco, o corpo não precisa explodir, encontrar o seu limite, mas apresenta-se já marcado, para que o espectador adentre em sua história.

É como se as experiências marcadas em seu corpo fossem o que constituísse sua história não verbal, esta que não é visualizada mais sob a égide do boyd-horror, mas por uma “carne virtual” (virtual flesh) que se expressa acoplada ao corpo e continuamente o modificando, que se expressa em sua própria ausência[13]. É aí que possível perceber o corpo pertencendo a um regime discursivo, que suas marcas e experiências, estão entrelaçadas no jogo de poder social[14].

Percebe-se como em Marcas da Violência o corpo de Tom se portava ao ambiente de uma maneira que mentia para todos até que por um tropeço de seu corpo sua história é esboçada, o mesmo acontece em Senhores do Crime. Deste modo, a genealogia surge como uma forma de apreender o acontecimento do tropeço do corpo, esboçando uma história da inscrição, dos regimes discursivos e dos jogos de poder.

Senhores do Crime (2007)

A frieza com que Cronenberg movimenta a câmera no momento que os assassinos tentam matar Nikolai é impressionante, organizando uma coreografia completamente do corpo, onde o corpo se faz mais que presente. Todo o ambiente é de um branco pálido, enquanto os assassinos estão de preto e o corpo nu e tatuado, de Viggo Mortensen, destoa.

Aqui se traz a ideia de produzir uma genealogia para entender a história do corpo não como uma origem do ser essencial de cada um deles, mas de entender este corpo atual como objeto de relações de forças heterogêneas que não possuem ou efetuam uma teleologia, mas meramente um acidente[15]. O corpo é uma superfície de inscrição de forças sociais, que por meio da genealogia torna-se possível as cartografar.

É interessante conectar esses dois processos de transformação corporal com o que ocorre em Crash. Pois, estes em conjunto denotam três formas de se alcançar as histórias de um corpo. Em primeiro lugar, a experiência de quase morte que transforma os corpos apaixonados em Crash; em segundo lugar, as marcas diretas no corpo seja as tatuagens de Senhores do Crime (em Crash também ocorrem) ou as cicatrizes de Crash; por fim, em terceiro lugar, a mudança nos gestos de Tom Stoll em Marcas da Violência[16].

Portanto, cabe aqui pensar sobre o uso das tatuagens de Nikolai de maneira genealógica, compreendendo a emergência de seu ponto de tropeço quando é traído. Ou ainda, pensar o uso da violência em Tom, a partir da emergência do acontecimento no bar, um tropeço que permite a genealogia. O interessante não é encontrar uma identidade anterior (explicita o inverso, a fragilidade da própria identidade), mas sim, de fato, buscar o campo de forças heterogêneas que marcaram o corpo.

Marcas da Violência (2005)

Se antes, o desejo como processo, o não-dito ou aquilo que escapa e a tensão entre mente e corpo se apresentam sob o poder do figural com a explosão do corpo. Agora, é precisamente o estudo acerca do campo de forças que engendra a inscrição nos corpos. O fisiológico era o foco, pois era sob o prisma das reações do corpo à essas forças que se efetuava, o ponto de vista do desejo como engendrado e levando ao seu limite, o foco agora é o social do corpo, o uso do corpo como superfície de inscrição destas forças.

2) A Sociedade Contemporânea

Cosmópolis (2012)

É possível apresentar Cosmópolis e Mapas Para as Estrelas como pares também, sátiras sobre o neoliberalismo e o culto das estrelas, que apresentam um panorama absurdo da contemporaneidade.

Em Cosmópolis, Eric Parker, empresário rico, sai de casa para cortar o cabelo no bairro de sua infância, como uma tentativa de buscar o que parecia perdido para sempre. Para isto sai em sua limusine e atravessa um engarrafando catastrófico nas ruas de Nova York.

Em grande parte do longa somos obrigados a encarar o corpo rígido, cheio de couraças do protagonista dentro de um ambiente claustrofóbico, em seus diálogos facilmente caracterizado como performances robóticas e distanciadas, já que sua insatisfação constante se faz presente na artificialidade que sua voz se projeta, que suas palavras se enroscam.

Se por um lado, o pedido de cortar o cabelo é um pedido de transfiguração, por outro, o exame médico que constata sua próstata assimétrica faz surgir a “carne virtual”. Existem ausências que parecem organizar os gestos de Eric, uma delas é seu passado, sua história, outra é essa presença ausente do disforme em seu corpo.

Cosmopólis (2012)

A história de seu corpo é inscrita pela lógica neoliberal, que o faz funcionar como um “capital humano”[17], mas existe algo nele que pulsa um tropeço. Quando no fim, se desacopla dessas máquinas velozes (enfraquecida pela loucura das massas) e fluídas, ele desfigura seu corpo, em prol de uma destruição do corpo como “capital humano”.

Mapas Para as Estrelas caminha pela decadência dos sujeitos de Hollywood. Stafford Weiss é um psicólogo, que aparece diversas vezes na TV e atende com sua proposta inovadora de terapia com yoga uma atriz chamada Havana. Stafford figura-se como o corpo do “capital humano”, midiático, existindo nas luzes da TV; Havana sofre com sua “carne virtual”, afinal seu corpo envelhecido é como um corpo morto para o corpo ubíquo das celebridades.

Contudo, a grande personagem desta história, de fato, é Agatha, a filha de Stafford, que retorna para Hollywood com suas marcas de queimadura no corpo em busca de um espaço, é a partir da significação desta marca que a história dos corpos se revelam.

Mapas para as Estrelas (2014)

Com isto, a partir de uso dos corpos em determinados espaços é possível traçar uma cartografia dos campos de força que engendram transformações nos corpos, ou seja, produção de desejo. É importante deixar explícito que a diferença entre história e desejo aqui é complexa, busca-se um e se depara com o outro.

Existe assim uma relação intrínseca entre a genealogia e a cartografia do poder[18]. Mais precisamente, nestes dois filmes, que, no fundo, não buscam uma história individual destes corpos seja o de Eric ou de Agatha, mas sim a inscrição das forças que engendram o desejo nos corpos nestes territórios.

Percebe-se, então, que não apenas as marcas dos corpos servem para contar a história social de um sujeito ou de todo um grupo social, mas também torna ainda mais notório o território existencial, ou seja a subjetividade cartográfica que este sujeitos se inserem, que fazem os movimentos de fluxo e de corte que tentam se inscrever sobre os corpos.

Se em Cosmópolis Eric precisa buscar sua história, imerso no capitalismo selvagem que não o deixa com tempo para se lembrar de quem já foi, ou pelo menos quem ele poderia ser; em Mapas Para as Estrelas, as ilusões e mentiras dos personagens que tentam esconder suas marcas, escondem em cavidades profundas as histórias dos sujeitos. E é nessa vida de rato que todos os sujeitos se encontram em diferentes graus. “O rato é a nova unidade monetária” como é refletido em Cosmópolis.

Mapas para as Estralas (2014)

3) A abordagem da Genealogia

Da biologia à história, da presença à ausência, da interdisciplinaridade filosófica, Cronenberg se transforma, mas tendo o corpo como seu centro, sua estética gira em torno dessa peça infindável. O corpo é mais que um tema, é a substância da estética do diretor. Se muitos ainda afirmam que o diretor não faz os mesmos filmes, talvez estejam apenas pensando na forma, ou no gênero (que muitas vezes condiciona a maneira com qual a forma se apresenta), no qual o diretor está se inserindo. A maneira com que utiliza da forma e do conteúdo, a maneira com que os fazem se encontrar permanece intacta e poderosa.

A mente e o corpo com o seu paralelismo não são mais o figural, porém se apresentam sempre em uma forma de transfiguração, desta vez causada por certo tropeço de seus personagens em que subsiste toda uma história social, plenamente acidental. A presença do não-dito como fator de extremo sufoco dos personagens, tudo isto se faz e refaz em seus filmes. Agora, como já foi bem explicitado, é do lugar do cientista social, do genealogista, do psicanalista que o diretor busca incessantemente pela captura de uma experiência que atravessa a história do corpo, de corpos que se empurram, se cortam, se devoram, em lutas, em espasmos, em gritos, em movimentos.

Mistérios e Paixões (1991) / Um Método Perigoso (2011)

Um breve comentário: Essa é uma leitura muito totalizante de sua obra e por isso ela terá com certeza problemas a se enfrentar com momentos singulares. Seja, por exemplo, com a fixação da memória de Spider ou com o mentalismo de A Zona Morta. De qualquer forma, acredito esses casos podem ser discutidos de maneira mais precisa posteriormente, afinal, esse texto deve ser lido como uma hipótese inicial.

Notas

0 — No livro “Imagem-Tempo” de Deleuze

1 — Paralelismo é o termo que Deleuze utiliza para descrever a horizontalidade radical da teoria Spinoza da relação da mente e do corpo. Em contrapartida do moralismo cartesiano. Veja só, na metafísica de Descartes existem duas substâncias, a extensão e a alma (mente), em que uma age sobre o outro, gerando superioridade de um sobre o outro; o que na filosofia cartesiana acabava por apresentar uma superioridade da mente de controlar as paixões do corpo. Já em Spinoza, existe apenas uma substância que se expressa em dois atributos distintos mente e corpo, ou seja, são apenas expressões distintas de um mesmo fenômeno, aqui não há moralismo, mas uma ética a ser produzida sobre os afetos e paixões. “Espinosa: Filosofia Prática”, edição de 2002.

2 — Entrevista concedida por Grounberg, em 2006.

3 — De acordo com Eliska Altmann em seu artigo “O corpo-máquina de Cronenberg sob a luz pictórica de Bacon: fábulas do devir-outro”, publicado em 2007.

4 — Steven Shaviro discute essas relações do indistinguível dos binários no capítulo 9, de seu livro “The Cinematic Body”, em que discute as formas que o cinema utiliza o corpo.

5 — Primeira página de “A Metamorfose” de Kafka

6 — Em “O Eu e o Isso”, Freud discute acerca da formação do Eu e do aspecto inconsciente da mente humana.

7 — Shaviro parte da crítica de Deleuze & Guattari ao inconsciente do cenário teatral de Freud para afirmar um inconsciente maquínico.

8 — Shaviro usa de forma precisa o termo paixão no capítulo 9 de seu livro “The Cinematic Body”, pois em “Anti-Édipo”, Deleueze & Guattari, ao buscarem uma noção materialista de desejo no sujeito remetem à noção marxista de paixão.

9 — Em “Cronenberg e a Escola de Toronto” de Rosângela Fachel de Medeiros, 2009.

10 — Em o “Anti-Édipo”, os filósofos descrevem essas sínteses passivas como a produção do sujeito no mundo, sem distinção entre o sujeito e o objeto, é por isso que a síntese conjuntiva é de passagem.

11 — Ideia discutida acerca do filme Mistérios e Paixões, mas que se conecta perfeitamente com outras obras como Videodrome e eXistenZ “Por uma ontologia plana na comunicação” de Gabriel Nonino, Lennon Macedo, André Araújo e Márcio de Silveira, em 2018.

12 — Comentário feito por Adam Lowenstein em “The Jewish Cronenberg: a cinema of therapeutic desintegration”, de 2017. Ele argumenta que a estética do diretor ainda se pauta numa lógica da terapia, influenciada pela filosofia existencialista judaica tanto de Levinas quanto de Kracauer.

13 — Timothy Holland argumenta sobre o conceito de “virtual flesh” a partir de Derrida em seu “Cronenberg’s anesthetics (virtual flesh)”, de 2017. Ele também questiona tanto aqueles que acreditam que os novos filmes do diretor, aqui delimitados de Marcas da Violência em diante, são “non-Cronebergian texts”, quanto aqueles que acreditam nas viradas. Acreditando que este conceito resolve o problema do desaparecimento do body-horror, quando de fato apenas o acentua.

14 — No texto, “Poder-Corpo”, de Michel Foucault.

15 — No texto “Nietzsche, a genealogia e a história” de Michel Foucault

16 — Em “The Postmodern Turn in Cronenberg’s Cinema: Possibility in Body”, de Sara Eddleman, 2009.

17 — Shaviro produz uma relação entre os textos de Foucault e Deleuze para discutir a face do neoliberalismo e como está funciona como sociedade do controle (disfarçando-se em sua suposta liberdade anárquica), “The ‘Bitter Necessity’ of Debt: Neoliberal Finance and The Society of Control”, 2010.

18 — Relação proposta por Deleuze em seu livro sobre Foucault e retomada no artigo “A dobra Deleuze-Foucault” de Catarina Nabais, em que discute em que medida as proposições de Foucault podem se associar as de Deleuze.

Filmografia

Stereo — Stereo (1969)

Crimes do Futuro — Crimes of the Future(1970)

Calafrios — Shivers (1975)

Enraivecida na Fúria do Sexo — Rabid (1977)

Escuderia do Poder — Fast Comapany (1979)

Os Filhos do Medo — The Brood (1979)

Scanners: Sua Mente Pode Destruir — Scanners (1981)

Videodrome: A Sídrome do Vídeo — Videodrome (1983)

A Hora da Zona Morta — The Dead Zone (1983)

A Mosca — The Fly (1986)

Gêmeos: Mórbida Semelhança — Dead Ringers (1988)

Mistérios e Paixões — Naked Lunch (1991)

M. Butterfly — M. Butterfly(1993)

Crash: Estranhos Prazeres — Crash(1996)

eXistenZ — eXistenZ (1999)

Spider: Desafie sua Mente — Spider (2002)

Marcas da Violência — A History of Violence (2005)

Senhores do Crimes — Eastern Promisses(2007)

Um Método Perigoso — A Dangerous Method(2011)

Cosmópolis — Cosmopolis (2012)

Mapas Para as Estrelas — Maps to the Stars(2014)

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