Clint Eastwood Iconoclasta

Ghosts Without Machines
31 min readDec 14, 2020

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Impacto Fulminante (1983) — Clint Eastwood

Introdução

Clint Eastwood é uma figura insistente. Seu rosto está presente na cultura americana desde os tempos do seriado Rawhide e que se tornou o rosto do Velho Oeste — aqui um rosto para o mundo — quando trabalhou com Sergio Leone. Um rosto do cinema. Um dos mais insistentes. Realizou filmes com uma liberdade pouco vista em Hollywood, descendente do estilo direto e econômico de Don Siegel, mas também um homem apaixonado pelos clássicos de Ford, Hawks e Capra.

Por ter sido alçado à figura de ícone arranjou muitos detratores. Afinal, é o sonho de muitos serem iconoclastas, dar fim a todos os mitos. É preciso pensar ainda do que se é ícone, o signo icônico é estabelecido a partir de algo que sempre é culturalmente articulado. Clint Eastwood foi o Estranho Sem Nome, de um velho oeste sujo, assim como o Dirty Harry, o policial violento, tende-se a considerá-lo como ícone de um americanismo monstruoso, mas aceitar essa visão é ignorar a imagem.

Bronco Billy (1980) — Clint Eastwood

Deste modo, é preciso entender Clint Eastwood, o ator e diretor, no sentido inverso. Como iconoclasta. Afinal, se ele mantém diversos tropos narrativos de um certo americanismo é para subvertê-los melhor. Muitos críticos assumem que os filmes contemporâneos do diretor são meios para expiação da culpa da figura do homem branco do patriarcado, figura que o próprio Clint ajudou a fomentar. Todavia, assumo que toda a sua obra desde seus primeiros trabalhos, dos anos 70 até os atuais, trabalham não com a expiação da culpa, ou com o reforço da ideologia dominante, mas sim com suas rachaduras.

Iconoclasta não porque há uma negação do ícone. Em seus trabalhos não há uma negação da imagem, na verdade o que ele está fazendo é trabalhá-las em crise. É no âmago das contradições e das imperfeições que toda a sua obra se articula.

1. Persona e o Ícone

Perversa Paixão (1971) — Clint Eastwood

A atuação de Clint sempre foi marcada, não por uma inventividade, mas sim por certa repetição, ou como disse anteriormente, uma insistência. São feições rígidas, seus olhos não brilham retumbantemente, suas lágrimas raramente são vistas, os gritos são quase inexistentes. Impassível, é isso.

De certo, é um tipo de atuação clássica. Se retomarmos os grandes atores de Hollywood do passado, antes de Marlon Brando e a companhia, com a “atuação do método”, o que temos são figuras icônicas. James Stewart, por exemplo, é lembrado hoje é mais por sua gestualidade vivaz e seu sorriso contagiante que por cada um de seus personagens. Do mesmo modo, podemos falar de John Wayne, a grande figura do Western Clássico, com seu olhar penetrante.

Três Homens em Conflito (1966) — Sergio Leone

O que esses atores têm é uma presença. Ter essa presença era mais importante do que ser extremamente eclético com a condução de seus personagens. Clint Eastwood sempre trabalhou dessa forma, tanto como ator quanto como diretor, ele busca capturar e enquadrar esse poder da presença do ator.

Ele articula esta presença necessária para encarnar uma verdade inaudita. O que é mais complexo e mais simples que a atuação do método. Se Clint nos toca mais que um Gary Oldman ou um Eddie Redmayne é simples, é pelo fato de saber jogar com sua própria figura, é saber onde ele pode se colocar ou onde pode desafiar-se.

Quando digo “verdade”, assumo que é uma espécie de presença que transforma a própria imagem do filme. Afinal, a presença de Clint nos filmes parte sempre de uma atualização eterna de imagens. Da figura sem nome dos Western, de Dirty Harry, uma ideal de masculinidade e de um Estoicismo Heroico; do mesmo modo, um ideal de violência e de certa monstruosidade.

Quando o vemos em tela, e principalmente nos filmes no qual ele mesmo dirige, cada gesto, cada pequena expressão do rosto, o próprio jeito de andar ou de contaminar toda a cena está sendo implicado nessa história. É um exercício de iconografia, em que a presença atual dialoga com os sentidos da história e os transformam. Como Cleber Eduardo[1], crítico brasileiro, diz:

“Mais do que ator, portanto, Clint é uma persona, mas não derivada diretamente do ator, da pessoa, mas de uma persona já fundada na imagem do cinema, em personas, pessoas e personagens do passado.”

Perseguidor Implacável (1971) — Don Siegel/ Impacto Fulminante (1983) — Clint Eastwood

É este o motivo do poder icônico de sua persona. Sua figura tem uma gravidade que pode carregar diversas coisas. Stepháne Bouquet[2], ex-redator chefe da Cahiers du Cinéma, fala em “fetichização eastwoodiana”, para descrever de que forma sua figura assume o teor icônico.

Em primeiro lugar, os personagens de Clint sobrevoam todos os territórios, a exemplo disso temos tanto Robert, o fotógrafo de As Pontes de Madison (1995), quanto Luther, o ladrão em Poder Absoluto (1997). Enquanto, o primeiro já viajou por todos os cantos, parece carregar os ventos do mundo; do mesmo modo Luther, escondido por trás do espelho onde pode sobrevoar esse espaço, estar presente e não estar ao mesmo tempo, contaminá-lo em suas sombras.

Impacto Fulminante (1983) — Clint Eastwood

Em segundo lugar, de forma mais notória, os personagens de Clint são figuras do passado, de uma passado que não morreu. Isto é notório em todos os seus filmes de Velho Oeste, visto que eles são em grande parte vingadores, em especial Cavaleiro Solitário (1985), mas também em seus filmes mais recentes como Gran Torino (2008) e A Mula (2018), onde aparece como um homem idoso de sistema ético rígido, um estilo intacto e, de certo, completamente ofensivo por sua inadequação.

E por fim, a forma com que ele pode tornar-se o seu próprio país. Não é à toa a precisão de Imperdoáveis (1992), onde sua violência aparece reluzente no meio da escuridão com uma bandeira americana ao fundo. Essa é uma imagem rachada. Clint Eastwood só pode se tornar a América na tensão própria de sua violência. Como ressalta o crítico francês:

“Clint não é mais um homem, não apenas, mas uma terra e um ícone quase religioso.”

Coração de Caçador (1990) — Clint Eastwood

Mas é digno de nota que se Clint consegue fazer toda esse processo com sua própria figura, ele também joga com o significado dos mitos que pretende adaptar ao cinema. A galeria de “heróis americanos” contemporâneos é justamente isto. Sniper Americano (2014), um de seus filmes mais polêmicos e ambíguos, é um exemplo perfeito disso.

Chris Kyle, o assassino do Estado americano, interpretado por Bradley Cooper, se torna uma abstração da própria América. Ele encarna em todos os seus gestos, em todos os seus olhares e falas, uma ideia de guerra. Seu corpo rígido, cansado, automático, assassino parece estar sempre pronto a explodir.

No funeral de um companheiro seu, morto em batalha, entregam para sua mãe uma bandeira no lugar do filho. Esse gesto simples mostra como o vício de Kyle, em “fazer o seu serviço”, em “proteger os seus companheiros”, é em grande uma perda de sua individualidade para essa abstração não humana. Seu corpo encarna isto, é o ícone de uma América que se destrói por dentro.

Sniper Americano (2014) — Clint Eastwood

Portanto, é com essa presença que encarna tantas coisas que o estilo do Clint, ator e diretor, se produz. Ela é seu centro gravitacional. Os filmes que podemos enxergar com toda eficácia dessa construção são seus Western

2. Western e os Fantasmas

O Estranho Sem Nome (1973) — Clint Eastwood

O Western é por excelência um gênero sobre mitos, ícones. Clint nasceu com sua persona deste gênero, é preciso pensar como ele o trabalhou durante toda sua carreira.

Ele realizou quatro longas inseridos neste ambiente imaginário. São considerados westerns revisionistas, pois de alguma maneira subvertem toda uma aparência mais clássica. É notório a influência de Leone e do Spaghetti Western, tanto na encenação da violência, quanto em sua sujeira mais brutal.

Todos os seus quatro protagonistas têm uma potência que os colocam no além. Mas é preciso dizer que estes filmes têm fantasmas precisos. Estes filmes mostram um verdadeiro diálogo com o passado, em que sempre se atualiza em milhões de imagens.

a) O Estranho Sem Nome (1973)

O Estranho Sem Nome (1973) — Clint Eastwood

John Wayne[3] declarou sobre este filme:

“Isto não tem nada a ver com o Oeste. Esses não são os americanos que construíram esse país”

De certo, Clint Eastwood, em seu primeiro Western, retoma não só a figura do estranho sem nome, mas também a encena com uma brutalidade que se aproxima mais do cinema de horror que do gênero em questão.

Essa figura que surge na cidade, como um vingador implacável, tenta preparar seus cidadãos para a chegada de um grupo de bandidos. Não sabemos seus motivos, nem mesmo o que ganhará com isso. Todavia, ele não chega sem destruir toda a ordem moral.

Diga-se de passagem, ele não é uma figura boa, é provável que há maldade nele como em nenhum outro personagem do diretor. Ele insulta, humilha pessoas, estupra mulheres, e logo o filme tem toda uma conotação de filme de horror. Não há nada de uma figura salvadora. Não é à toa que pinta toda cidade de vermelha e a renomeia de Inferno.

O Estranho Sem Nome (1973) — Clint Eastwood

Sua figura aqui se assemelha muito mais ao diabo que a um anjo vingador. Mas que fantasma é esse que paira sobre este filme? O próprio Clint em entrevistas anuncia que a ideia para o filme veio de Matar ou Morrer (1952) de Fred Zinnemann.

Nesse Western, bandidos estão chegando à cidade e o xerife tem apenas 12 horas para reunir pessoas e organizar um plano para vencê-los. Gary Cooper encarna esse xerife, já em sua velhice, o que carrega toda uma potência visual em como esse filme é mais sobre o esfacelamento da Lei e da Comunidade do que formação delas. Afinal, ninguém se dispõe a ajudá-lo.

Matar ou Morrer (1952) — Fred Zinnemann

Clint fez uma pergunta simples. “E se esse xerife tivesse morrido, o que sobraria da cidade de covardes?”. Em seu filme, visões da morte do xerife nos perturbam, pela total conivência dos habitantes da cidade, o diabo chega para vingar o xerife, tantos dos bandidos quanto dos cidadãos, destituir toda ordem como uma punição divina, ou diabólica, pela covardia.

Em sintonia, não só o filme de Clint Eastwood incomodou John Wayne, o filme de Fred Zinnemann o incomodou do mesmo modo, pelos mesmos motivos. Não por acaso, junto com Howard Hawks, também reconstruíram a mesma história, mas com resoluções diferentes em Onde Começa o Inferno (1959).

O Estranho Sem Nome (1973) — Clint Eastwood

b) Josey Wales, O Fora da Lei (1976)

Josey Wales, O Fora da Lei (1976) — Clint Eastwood

O que iguala todos esses filmes em certo aspecto é a organização da relação entre o herói e a comunidade. Herói, talvez seja precipitado, mas a essa figura do forasteiro. A grande diferença deste filme para com seus outros é a ideia da formação de uma nova comunidade.

Se Josey Wales se alia aos sulistas na Guerra Civil não é por concordar com suas ideias, mas sim para obter a vingança daqueles que mataram sua família. Essa história de vingança é guiada mais por seus desvios que por sua linha reta.

É de encontro a encontro que a figura de Clint vai arrastar uma série de excluídos numa espécie de comunidade idílica. É a partir do amor que encontra junto a eles que sua descida ao inferno é desviada. Sua figura ainda carrega a mesma fantasmagoria de outrora, mesmo que agora ele possua um nome e um destino, ainda há algo em seu olhar impassível, enigmático.

Josey Wales, O Fora da Lei (1976) — Clint Eastwood

Robert C. Sickels [4], um estudioso da obra do diretor, espelha por completo este filme com Rastros de Ódio (1956) de John Ford. A história deste filme se dá por um mesmo mote narrativo, a vingança da família destruída.

O personagem de John Wayne, Ethan, é o tio que desce ao inferno, na busca de se vingar. Se a princípio, sua busca era o de salvar suas sobrinhas, ao descobrir que elas se integraram à comunidade indígena, ele quer matá-las tanto quanto. É sobre o enlouquecimento pelo ódio, o preconceito.

Rastros de Ódio (1956) — John Ford

É bom se atentar que Clint não toma Ford pelo avesso, não é isso. No fundo os dois jogam num universo muito próximo em que a sociedade está tomado por um enlouquecimento e violência. Os dois personagens precisam lidar com esse ódio, mas cada um dos seu jeito o enfrenta, o interroga e o coloca em certa posição perante a possibilidade de uma nova comunidade.

c) O Cavaleiro Solitário (1985)

Cavaleiro Solitário (1985) — Clint Eastwood

Esse longa com certeza é o que remete mais diretamente a um filme anterior. Existindo algumas cenas que até mesmo são reconstruídas. O fantasma deste filme é Os Brutos Também Amam (1953) de George Stevens. Um filme que marcou o gênero, não só pela violência e a ternura, mas também pela presença já fantasmática do estranho chamado Shane.

O filme de Stevens faz de sua verve o espaço comunitário da plantação, da ecologia. Cada rito em grupo, seja a festa, ou o funeral, toda a comunhão é feita com base nas colheitas que começam a ser desafiadas por um dono da gados que acredita que as terras usadas por essas famílias são suas.

Os Brutos Também Amam (1953) — George Stevens

A transformação que Clint produz nesta história é poderosa. Como ressalta o crítico David Sterritt[5]:

“(…) do suave mundo orgânico de Os Brutos Também Amam (1953) para o duro mundo mineral de O Cavaleiro Solitário (1985), mais notoriamente representada na metamorfose dos fazendeiros no primeiro filme, que estão fazendo a terra produzir comida em fartura, no filme posterior, os mineradores, estão buscando cavar riqueza material de pedras. Beard acredita que isso é 'um movimento deliberado do Velho Oeste' que vai da importante centralidade dos valores da comunidade quasi-espiritual ao fazer frutífero algo estéril para a crueza materialista na busca da substância inútil, mas que já carrega um alto valor de troca.”

Essa mudança de paisagem reconfigura o cenário do Velho Oeste, seus elementos constitutivos. Aqui o estranho não é pistoleiro, em aparência, mas um padre que busca ajudar essa comunidade mineradores.

Se em O Estranho Sem Nome (1972) seu lado inumano encarnou-se numa figura diabólica, de pura maldade. E Josey Wales, O Fora da Lei (1976) uma figura que de seu lado inumano reconhece o amor daqueles que foram excluídos da sociedade. Aqui, o padre, sem nome, encarna de maneira precisa esses dois polos. Seu ar de fantasma é ainda mais sombrio e estilizado, aqui é onde sua figura culmina na atualização violenta de um mundo mineral.

Cavaleiro Solitário (1985) — Clint Eastwood

d) Os Imperdoáveis (1992)

Os Imperdoáveis (1992) — Clint Eastwood

Seu último Western sabe que trabalha com um gênero morto. Em certo sentido, a humanidade em seu cinismo não sabe mais jogar com seus mitos e suas fábulas. Pode se pensar que Clint Eastwood ao aderir a uma olhar crítico da figura e dos elementos do Velho Oeste nesse longa aderiu ao desejo pueril por “ mais realismo", mas ele precisa se afundar na violência do gênero para isso, no peso das imagens.

Seu personagem, conhecido como um assassino no passado, hoje é um homem de família que não quer saber da morte. Não paramos de pensar em toda maldade, mas também heroísmo que os personagens de Clint Eastwood realizaram, é nesse sentido que O Imperdoáveis (1992) parece encarnar em William Munny todas as figuras de seu ator.

Assim, quando passamos todo o longa a acompanhar sua hesitação em realizar a vingança das prostitutas. Há peso em suas palavras para cada uma das mortes que ocorre, porque sentimos de alguma forma que já conhecemos seu passado, sentimos que matamos com ele tantos outros.

Os Imperdoáveis (1992)

Seria esse filme um anti-western por conta da violência ser abominável? Não. Esse filme é um Velho Oeste por excelência, visto que assume a justiça realizada como uma maldade bondosa, ou vice-versa. O gesto violento e a ternura máxima se conciliam nos gestos de Munny.

E se ao fundo de sua imagem raivosa há de surgir a bandeira americana, é que neste momento é possível ver com maior clareza que a fundação da sociedade americana, como de qualquer outra, se deu com sangue, pólvora e mortes.

O fantasma vingador de Clint Eastwood encerra seu ciclo como que pairando pela América a perguntar se será preciso se vingar de todos aqueles que sofrem, mesmo que ele não aguente mais matar, mesmo que a morte tenha se tornado insuportável.

Os Imperdoáveis (1992) — Clint Eastwood

E é precisamente por esse poder gravitacional que os seus Westerns conseguem encarnar, como ícone, diversas ideias, traços inumanos, poderes que vêm do além. Essa é a presença da figura insistente, quase clássica.

3. Quase Clássico

Muito se diz como Clint Eastwood é um dos últimos diretores clássicos. Afinal, o estilo quase invisível, principalmente em seus filmes contemporâneos, nos remete a essa ideia. Todavia, o conceito mais certeiro para descrever esse seu estilo é o “quase clássico”, que Inácio Araújo[6], crítico brasileiro, utilizou.

De certo, existiram dois mentores. Don Siegel, mais influente, foi aquele que lhe deu o modelo da práxis. Ele era econômico visualmente, mas também veloz em suas gravações, assim como Clint. Um diretor detalhista no preparo, mas veloz no set, onde o foco comanda a já estabelecida sensibilidade. Os dois se influenciaram mutuamente em seus projetos, como o próprio Don Siegel disse[7]:

“ Ele começou a trazer ideias para planos. Eu comecei a chamá-los de planos Clintus e mesmo que eu decidisse não usá-los, eles invariavelmente me davam ideias, me jogavam para um plano Siegelini.”

Seu outro mentor foi Sergio Leone, com quem trabalhou na famosa trilogia dos dólares. É daí que deriva certos maneirismos, precisamente do Spaghetti Western, onde tudo parece estar realçado. Só um perfeccionismo permeado por todo uma sujeira própria poderia ter criado a imagem que o próprio Clint carregará nas costas, é desse ponto precisamente que ele extrai de Leone a possibilidade de rachar com a própria iconografia.

O que compõe sua estética com maior precisão é estar calcado numa parcimônia que o conecta diretamente com os clássicos, não há devaneios, mas há tempo, tempo de olhar. Mas também podar riscar essa imagem, desestabilizá-la, seja com o seu uso de luz e sombra, em que parece sempre obscurecer os personagens, ou ainda com a crise dos ícones quando os desafia no centro da cena.

Bird (1988) — Clint Eastwood

Assim, Inácio Araújo[8] descreve esse estilo:

“a mise en scène clintiana, se retoma o código clássico (equilíbrio, simplicidade, despojamento, eficácia, primazia da história a ser narrada e, dentro dela, do herói), não retorna ao mundo clássico, exceto para constatar seu desaparecimento, o que faz os filmes, em particular os mais bem-sucedidos, se construírem sobre a tensão entre real e ideal, lenda e história, mundo material e ficção (ou imaginação).”

O mundo do clássico existe em sua temporalidade, mas também na dinâmica principal da formação de seus dramas. O trabalho com cada roteirista diferente revela uma tendência na formação de dramas em que o centro da ação se formula com um problema: o herói precisa tomar uma decisão. Mas ele sempre está sendo puxado por uma tensão entre polos opostos que se misturam completamente, pois é um mundo fraturado.

Dave Kehr[9], crítico americano, chega a dividir toda sua obra em dois polos. Os filmes comunitários e os filmes dos outsiders, ressaltando a tensão. No primeiro caso, é fácil notar isto em Bronco Billy (1980), com certeza o seu filme que mais se organiza sobre essa ideia, em que um circo western vive um mundo de fantasia pressionados pela realidade gritante.

Bronco Billy (1980) — Clint Eastwood

Do mesmo modo, temos filmes como O Caso de Richard Jewell (2019), em que um homem que vangloria o Estado Americano e de certo está a todo momento se colocando em prol do que ele acredita ser sua comunidade, acaba por se ver numa enrascada. Pois, ao tentar proteger as pessoas de um atentado terrorista torna-se o principal suspeito do caso.

Percebam a simetria, enquanto Billy vive sua jornada em prol desta fantasia comunitária e é ela que o defende do medo da solidão, do estar sozinho no mundo. No sentido inverso, Richard Jewell ao dedicar sua vida completamente a ser a encarnação de uma comunidade e de uma Lei acaba por se ver traído por essas ideias que o ultrapassavam por completo.

O Caso de Richard Jewell (2019) — Clint Eastwood

É necessário entender que Clint Eastwood, e isso que o torna complexo, não diz “o individualismo é bom”, ou “o compromisso social deve vir antes do indivíduo”, ele não sugere teses sociológicas simples em seus filmes. Ele reconhece a dialética do sujeito e do meio, em que há sempre uma crise de decisão, uma crise eterna, é isso que constituí seus dramas e seus heróis.

O herói que habita seus filmes, em grande parte protagonizado por ele, precisa estar atravessado por essa ambiguidade. Existem algumas figuras exemplares, que encarnam com perfeição o aspecto inumano de sua persona.

Não no sentido do contrário do homem, mas no sentido de certa mística própria do que Bazin chamava de “ambiguidade imanente do real”. Os vingadores do Oeste são escolhas óbvias, mas Red Stovall de Honkytonk Man, A Última Canção(1982), um filme seu quase esquecido é ainda mais certeiro (poderia citar aqui Butch de A Perfect World [1993] ou ainda Harry Callahan em Impacto Fulminante [1983]).

Esse personagem é um músico que quer seguir o seu caminho. Ele tem um comportamento contraditório, bebe demais, comete algumas infrações, se coloca em confusão o tempo inteiro, mas também acaba por criar uma nova comunidade com a presença de seu sobrinho e uma jovem que o conhece na estrada. Por onde vai ele deixa algo, seja as peças de seu carro, o ódio de alguns, seja o amor de outros.

Honkytonk Man, A Última Canção(1982) — Clin Eastwood

É numa cena próxima do fim do filme que ganhamos de forma mais essencial essa imagem, Red Stovall a respirar na cama com dificuldade, onde parece revelar naqueles sopros, naquelas frases guturais, o próprio além. Mas principalmente no uso da luz e sombra, Clint Eastwood demonstrou que o traço essencial de seu estilo se faz na forma que luz constitui todo o seu universo. É ela que rasga a imagem, que a coloca em crise, que expõe as fraturas desta tensão.

Essa sombra que contamina seu rosto e o de seus personagens nos revela esse algo além. Seja em Red Stovall, ou ainda em Steve Everett, Crime Verdadeiro (1999) e Luther Whitney (1997).

Poder Absoluto (1997)

São personagens completamente ambíguos, Luther é um ladrão que decide acabar com seu segredo individual em prol de destruir o mundo das aparências políticas pelo bem de uma comunidade. Do mesmo modo, Everett é um sujeito complicado, péssimo pai, marido infiel, mas que sente o cheiro da verdade e buscar salvar um homem condenado à morte, buscar uma certa salvação que talvez fosse sua.

Mas também em seus filmes da primeira década do século XXI. Filmes que foram engolidos na escuridão, algo que já havia sido anunciado em Bird (1988), a biografia de Charlie Parker. O universo trágico de Menina de Ouro (2004) e Sobre Meninos e Lobos (2003) é o mundo da escuridão, esta necessidade de cortar esses personagens na escuridão não se dá por capricho estético.

O Menino de Ouro (2004)/ Sobre Meninos e Lobos (2003)

O efeito disto é nos colocar diante de um mundo incerto, assustador, em que nossas escolhas tem consequências, um mundo que estamos a todo momento a tatear no escuro. Portanto, se Clint Eastwood trabalha com os elementos do cinema clássico à todo momento, com seus ícones, ele os insere num universo de trevas para subvertê-las, é aí que se dá seu poder iconoclasta.

4. O justo gesto para os perdidos

Um Mundo Perfeito (1993) — Clint Eastwood

Esta temporalidade citada, a parcimônia, traz consigo a possibilidade de trabalhar em cima de gestos mais discretos e discutir especialmente as ações, as mínimas ações, como problemas narrativos. Algo talvez um pouco raro na celeridade da narrativa americana atual, ou na frigidez de certo cinema que se quer alçar como pesado.

Esse talvez seja o principal motivo para Clint Eastwood ser chamado de clássico. Em tempos de um cinema veloz, qualquer sopro para o cotidiano e o simples parecem um retorno ao passado. Longe da grandiloquência dos efeitos especiais e ainda mais das narrativas mirabolantes, ver um foco tão grande a detalhes tão ínfimos soa antiquado.

Seu segundo filme Interlúdio de Amor (1973) já mostrava como os encontros inesperados são fundamentais em suas narrativas. Os filmes que elevaram esse seu encanto pelos encontros e poder desses gestos foram Um Mundo Perfeito (1993) e As Pontes de Madison (1995).

No primeiro, Butcher é o personagem contraditório que marca seu universo. Ele foge da prisão e sequestra um garotinho. Os dois formam uma estranha aliança, marcada por um certo terror, mas também por admiração mútua. De certo, eles nos remetem diretamente aos ícones do cinema de Chaplin à De Sica.

Um Mundo Perfeito (1993) — Clint Eastwood

O que significa a máscara de gasparzinho que compõe o personagem da criança? O que é a dança na fazenda que precede desenrolar caótico da situação numa das cenas chave do filme? Sem esses momentos, essas figuras que articulam o filme como um todo, o filme perde todo o seu sentido.

Há de se pensar se Clint Eastwood quer apenas mostrar que todo homem mal pode ter um bom coração. Se Butcher varia entre o tom paternal e heroico (mesmo que completamente infantil) e certa monstruosidade, a criança que está ao seu lado compartilha de um aprendizado, seja na monstruosidade de sua máscara (mesmo que completamente infantil) e em seu tom de filho em busca de um pai. A maldade e a bondade nunca se reduzem a uma fórmula, mas se expressam aglutinadas em pequenos gestos.

O segundo filme é ainda mais discutido nesse sentido. Afinal, é uma história de amor. A partir de uma carta deixada após o seu falecimento, os filhos descobrem o mundo íntimo de sua mãe, aquilo causa espanto, afinal como é estar dentro das fraturas da figuras que costumam ser ícones próprios da nossa criação?

O que eles descobrem é que a mãe, Francesca, teve uma relação com um fotógrafo que estava de passagem na cidade, Kincaid, enquanto o resto da família estava em viagem. Mas não é a traição como problema moral, ou ainda uma análise sobre o que é o amor que Clint Eastwood trabalha.

As Pontes de Madison (1995) — Clint Eastwood

Ele explora o universo dos gestos eternos. Aqueles olhares que ficam, os sorrisos, a singularidade deste encontro. A fotografia pode surgir como um símbolo óbvio dessa força de eternidade, mas ainda é interessante que a foto sempre é um pequeno instante que some e só pode guardar sua eternidade numa folha de papel.

Clint filma com justeza esses gestos complicados. Podemos achar belo e monstruoso as ações de Butcher, assim como podemos achar moralmente complicada e singela a paixão de Francesca. É dar ênfase ao complexo, fazer jus à aquilo que nos conecta e compõe à vida.

As Pontes de Madison (1995) — Clint Eastwood

Seus filmes contemporâneos falam de gestos, de gestos que foram considerados extraordinários. Mas é preciso notar que a busca do diretor é em evocá-los em sua banalidade. Não é à toa que a frase “eu estava apenas fazendo meu trabalho” é repetida sem parar em Sully, O Herói do Rio Hudson (2016), O Caso de Richard Jewell (2019), 15h17 — Trem Para Paris (2017).

Se há um traço característico nos filmes da segunda década do século XXI do diretor é que nos parece que a imagem se despojou da sua escuridão. Não é que ela não exista mais, porém sua imagem parece querer nos fazer olhar em outra direção. Sua imagem agora nos propõe a conciliar o milagre heroico com a banalidade dos gestos comuns.

Sully, O Herói do Rio Hudson (2016) — Clint Eastwood

Essa galera de “heróis” americanos pode parecer indulgente para alguns, afinal, parece apenas uma variação sobre o mesmo tema. Sully, O Herói do Rio Hudson(2016) nos apresenta a problemática de maneira mais essencial. O piloto precisou pousar o avião no Rio Hudson, por conta de falhas mecânicas, sua manobra foi considerada de alto risco e algo quase impossível.

Ele precisa passar por um júri que acredita que essa ação não era necessária, que era possível pousar no aeroporto mais próximo. A força da história e da simplicidade maior de Eastwood está em reduzir o filme inteiro às questões da possibilidade do gesto e a impassibilidade de Sully. Claro que há memória do ato milagroso, mas sempre lacunar, sempre diferente, sempre com uma tendência ao além.

Em 15h17 — Trem Para Paris (2018), o diretor vai ainda mais longe nesse processo de contaminar a imagem com o banal. É preciso ter noção que todos os filmes desta segunda década são baseados em histórias reais, menos Além da Vida (2010).

15h11 — Trem Para Paris (2018)

Aqui, Clint coloca os próprios participantes do ato heroico para encenarem como eles mesmos no filme. Essa opção, notoriamente, dá certa autenticidade ao filme, do mesmo modo que o faz perder um pouco sua força dramática. De qualquer forma, é neste filme em que observar esses três jovens em suas férias na Europa, ao fazer um turismo qualquer, ou quando reclamam do cotidiano repetitivo, é aqui que entendemos que o mais importante destes seus filmes é a conciliação entre a banalidade e extraordinário presente nestes gestos.

5. Um Questão de Aparências

Para além disso, esses filmes mais recentes se servem de um modelo bem próximo dos filmes Frank Capra. O embate entre os sujeitos e grandes corporações, pessoas que lutam por sua individualidade, mas também acreditam nas regras de uma lógica comunal.

Em 15h17 — Trem para Paris (2017), ao narrar a vida dos jovens, da infância ao tempo presente, nos mostrou o apreço que eles tinham quando pequenos aos ícones, às imagens dos soldados americanos. Mas — e aí é que está toda idiossincrasia dos filmes de Clint Eastwood — ao chegarem onde almejaram perceberam uma grande corporação burocrática, onde o gesto da verdade é considerado um absurdo.

A Troca (2008) — Clint Eastwood

Esse jogo de desvelamento existe nas imagens próprias de seus filmes, mas passou a ser também um dos seus principais motivos narrativos. Em A Conquista da Honra (2006) e Cartas de Iwo Jima (2006) seus dois filmes irmãos de guerra, seu trabalho parte de dois ícones, no primeiro filme, a fotografia da bandeira americana hasteada em solo japonês; no segundo filme, a estética do próprio soldado japonês ainda ligado aos valores imperiais.

No primeiro caso, os Estados Unidos constroem uma perfeita publicidade sobre a foto, colocando estes três soldados sobreviventes (enquanto outros três morreram) como heróis propaganda. Clint Eastwood usa o filme de guerra para questionar as imagens do Governo Americano.

A Conquista da Honra (2006) — Clint Eastwood

No campo de Iwo Jima é possível ver que nenhum deles se sente como herói de verdade. Há uma sensação de perda muito maior, eles não conseguem se reduzir à aparência que dão a eles. Contra essa imagem, essa fotografia, há o relato dos homens mais velhos sobre essa batalha que são intercaladas na montagem entre a batalha na ilha japonesa e a turnê para capitação de verbas.

Já o outro filme, mais do que mostrar o “outro lado”, o lado japonês. Está a fazer o mesmo processo, quando questiona a imagem do japonês sem individualidade, ao japonês como o Kamikaze por excelência. Aquele capaz de sacrificar sua individualidade em prol do Império.

Ele utiliza das cartas como esse recurso de desestabilizar. A revelação do íntimo destes personagens que ficaram perdidas debaixo da terra, assim como esses soldados que cavaram túneis por todo canto e morreram por vezes soterrados. Esse íntimo estava imerso na terra.

Cartas de Iwo Jima (2006) — Clint Eastwood

E se o primeiro filme avança e nos faz discutir o futuro, o segundo filme nos faz olhar o passado. Onde pequenos registros da vida dos três protagonistas da história nos revelam tensão entre aceitar fazer parte da guerra ou manter sua individualidade. Vide a pergunta feita ao general Kuribayashi:

Anfitrião “Suas convicções ou as convicções de seu país?

Kuribayashi “Não são as mesmas?”

Os dois filmes nos permitem enfrentar essas imagens onde existe a dissolução dessas individualidades em prol das nações. A destruição das aparências faz parte do processo de fazer olhar, de se colocar diante dos atos simples, faz parte da construção da justeza dos gestos perdidos na imensidão da história.

A destruição da aparência sempre vem aliada não da consideração de sua inutilidade, muito pelo contrário, ela vem de sua força. Um ícone só precisa ser fraturado, pois ele é eficiente, caso não fosse seria apenas ignorado.

Meia Noite no Jardim do Bem e do Mal (1997) — Clint Eastwood

O jornalista John Kelso, em Meia Noite no Jardim do Bem e do Mal (1997), precisa entrar completamente no universo de aparências para poder fisgar o verdadeiro ali. Ele anda por suas mansões, por suas celebrações, por seus rituais e seus cemitérios. É a partir da imagem que vemos a fratura, a destruição é muito mais um olhar verdadeiro, do que uma negação da imagem, pois afinal a pergunta fica de de onde estava o objeto da verdade.

Em um de seus filmes recente A Mula (2018), ele transforma todo o mote narrativo um jogo poderoso de aparências. Earl Stone — protagonizado por Clint Eastwood — é um pai falho. Sua família não o aceita mais, afinal perdeu tempo por seus caprichos, por ter sido preso a si mesmo demais. Ele acaba aceitando um trabalho como o transportador drogas de um cartel, para ajudar com a família e com os veteranos de guerra.

Todo o estilo do filme é o de trabalhar com sua imagem. Um idoso, americano, branco, como poderia ele estar carregando grandes quantidades drogas no fundo de seu carro? Assim, vemos Earl nesse papel que desafia a sua própria imagem o tempo inteiro.

A Mula (2018) — Clint Eastwood

Ele arrisca sua vida em prol de quê? O personagem parece querer dar fim ao sentimento de culpa que sente, não com esse dinheiro, mas na estrada, ao redor das montanhas americanas, ao redor de suas grande planícies. Essa tentativa de se livrar da culpa é muito presente nos filmes de Eastwood finais, é só lembrar da relação com os padres em diversos de seus filmes, mas aqui Earl aceita sua culpa, não tenta retirá-la de bom grado, ele não se importa de frontalmente reconhecer seus erros.

Se a figura envelhecida de Clint Eastwood nos emociona não é por medo da morte. Sabe-se que a sua insistência será eterna. Mas sim, pois ele se torna ainda mais poderoso em nos fazer perceber a fragilidade, a vulnerabilidade que há naquilo que é de todos. A morte é a sua sombra, desde seu primeiro filme, a morte o persegue, ela não é novidade, é intrínseca ao ethos de sua mise en scene iconoclasta.

A Mula (2018) — Clint Eastwood

6. A Morte

Toda a sombra que paira nestes filmes, esses rasgos da imagem evocam algo em nós. A morte e a vida da imagem são amalgamadas nesses planos. Existem diversos filmes seus que a morte é central, em especial Cowboys do Espaço (2000) e Gran Torino (2008).

O primeiro filme, na superfície nos revela um drama sobre antigos astronautas que são chamados de volta ao trabalho, pela NASA, para realizar uma missão que só eles poderiam fazer. Pois, um satélite tão antigo quanto eles está para morrer. Em grande parte, vemos uma comédia que contrapõe a juventude e velhice, mas também brinca com a virilidade antiquada desses astronautas.

Cowboys do Espaço (2000) — Clint Eastwood

A viagem ao espaço é desejada por eles, afinal nunca puderam fazer uma missão como essa no passado. Em grande parte essa é a aparência do filme, que revela-se uma peça um pouco mais complicada, afinal a morte está presente nos gestos reticentes, nas palavras que faltam. A questão não é se haverá morte ou não, pois ela já está anunciada, é pode escolher o que fazer dela.

É na escuridão dos capacetes de astronautas que podemos ver uma certa felicidade em poder ter essa escolha. Em Gran Torino (2008), algo parecido acontece. O filme já se inicia num funeral e anuncia a incapacidade de se adaptar aos novos tempos de Walt Kowalski.

Mais do que um filme sobre o aprendizado de um homem preconceituoso, atormentado pela guerra. É um filme sobre o reconhecimento que a ideia de América, aquela do American Dream, materializada no carro Gran Torino, sempre foi uma terra de imigrante.

Gran Torino (2008) — Clint Eastwood

Se engana quem acha que ele faz o que faz, pois quer salvar alguém. Ele não ajuda a família hmong, tanto quanto eles o ajudam. Todo o filme é uma preparação para a morte, parece que Walt já sabe que não faz parte desse mundo, mesmo sabendo que existi lugar onde aquilo que ama pode continuar a insistir.

Mas onde vai mais a fundo nisso é em Além da Vida (2010), filme em que a morte se torna a protagonista da história. Três personagens, de diferentes partes do mundo, se conectam como que por base do destino. A única coisa que os liga é uma conexão com o além.

Marie quase morre numa tsunami fatal no sudeste da Ásia. Após sobreviver a esse desastre, ela passa a ter visões do além e fica aficionada pelo tema, descolando-se do mundo ao seu redor, diga-se de passagem o mundo do jornalismo, por isso, mundo das aparências por excelência.

O jovem Marcus perde seu irmão gêmeo, o que também faz com que sua mãe perca sua guarda e ele acabe sendo adotado. O que acontece aqui é uma presentificação muito forte de uma ausência, em que o além toma conta de tudo. Ele passa a buscar por sensitivos de todos os cantos, todos charlatões.

Mas aí é que entra o terceiro personagem da história. Aquele que se comunica com os mortos de fato. George é um operário que não aceita o seu dom/maldição. Esse é um dos seus filmes em que a banalidade da maior partes dos gestos e dos acontecimentos narrativos é central.

Acompanhamos essas três vidas em separados, todos eles atravessados pelo além, em seu aspecto mais mundano. Pois o que interessa à Clint Eastwood com a morte, não é nenhum fetiche pelo morrer, seja bem ou mal, mas sim que o além também nos reconecta com o presente.

Além da Vida (2010) — Clint Eastwood

Seu interesse por esse além, que também é aquilo que há de inumano em seus personagens mais icônicos, não é fixação, mas sim a certeza que nesses figuras fulgurantes, a certeza que do além partimos também para a vida e em grande parte das vezes com mais força.

O além só nos serve como elemento da própria vida, e isso é notado principalmente na forma que trabalha as imagens do além e as sessões espíritas, em como a palavra do espírito se confunde com a palavra do sensitivo. Pois a verdade que vem do além só pode aparecer ao se encarnar em um corpo.

Além da Vida (2010) — Clint Eastwood

É essa a grande fratura do cinema de Eastwood e aquilo que o impede de destruir as aparências em absoluto. Seu cinema iconoclasta não é nenhuma negação das imagens, mas a busca corajosa pela verdade nas rasuras das próprias imagens.

Conclusão

Crime Verdadeiro (1999) — Clint Eastwood

Esse texto teve como intenção passear pelo todo e pelas partes da obra de Clint Eastwood. Entende-se que uma estilo é mais do que seus mecanismos formais, mas é uma expressão que reorganiza os temas, e no caso do cinema, por consequência, evoca-se na própria imagem.

Eu poderia ter trabalhado cada filme de forma cronológica, mas seria complicado trabalhar cada um de seus filmes. São muitos. Cada filme citado valeria uma análise por si própria. Esse é apenas um olhar sintético, e de certo, transversal.

O mote central é a ideia de ícone que surge como centro gravitacional de seus trabalhos, remetendo-se ao além, inumano, monstruoso, abstrato. O corpo da presença está aí para encarnar estas coisas e criar imagens. Assim, seu empreendimento consegue criar ícones rasgados.

Espero que sirva de algum modo de porta de entrada.

Referências:

1 — Eduardo, C. Entre a Ordem e a Lei. In: Clint Eastwood, Clássico e Implacável.

2 — Bouquet, S. Clint Fucking Eastwood. In: Clint Eastwood, Clássico e Implacável.

3 — Sterritt, D. The Cinema of Clint Eastwood, Chronicles of America.

4 — Sickels, R. C. Retrospectives A Politacally Correct Ethan Edwards: Clint Eastwood’s The Outlaw Josey Wales.

5 — Sterritt, D. The Cinema of Clint Eastwood, Chronicles of America.

6 — Araújo, I. Um Cineasta Quase Clássico. In: Clint Eastwood, Clássico e Implacável.

7 — Sterritt, D. The Cinema of Clint Eastwood, Chronicles of America.

8 — Araújo, I. Um Cineasta Quase Clássico. In: Clint Eastwood, Clássico e Implacável.

9 — Kehr, D. Eastwood Noir.

Filmografia

Perversão Paixão (Play Misty For Me) — 1971

O Estranho Sem Nome (High Plains Drifter) — 1973

Interlúdio de Amor (Breezy) — 1973

Escalada Para Morrer (The Eiger Sanction) — 1975

Josey Wales, o Fora da Lei (The Outlaw Josey Wales) — 1976

Rota Suicida (The Gauntlet) — 1977

Bronco Billy (idem) — 1980

Raposa de Fogo (Firefox) — 1982

Honkytonk Man, A Última Canção (Honkytonk Man) — 1982

Impacto Fulminante (Sudden Impact) — 1983

O Cavaleiro Solitário (Pale Rider) — 1985

O Destemido Senhor da Guerra (Heartbreak Ridge) — 1986

Bird (idem) — 1988

Coração de Caçador (White Hunter, Black Heart) — 1990

Rookie: Um Profissional do Perigo (The Rookie) — 1990

Os Imperdoáveis (Unforgiven) — 1992

Um Mundo Perfeito (A Perfect World) — 1993

As Pontes de Madison (The Bridges of Madison) — 1995

Poder Absoluto (Absolute Power) — 1997

Meia Noite no Jardim do Bem e do Mal (Midnight in The Garden of Good and Evil) — 1997

Crime Verdadeiro (True Crime) — 1999

Cowboys do Espaço (Space Cowboys) — 2000

Dívida de Sangue (Blood Work) — 2002

Sobre Meninos e Lobos (Mystic River) — 2003

Menina de Ouro (Million Dollar Baby) — 2004

A Conquista da Honra (Flags of our Fathers) — 2006

Cartas de Iwo Jima (Letter from Iwo Jima) — 2006

A Troca (Changeling) — 2008

Gran Torino (idem) — 2008

Invictus (idem) — 2009

Além da Vida (Hereafter) — 2010

J. Edgar (J. Edgar) — 2011

Jersey Boys, em busca da Música (Jersey Boys) — 2014

Sniper Americano (American Sniper) — 2014

Sully, O Herói do Rio Hudson (Sully) — 2016

15h17, Trem Para Paris (The 15h17 to Paris) — 2018

A Mula (The Mule) — 2018

O Caso de Richard Jewell (Richard Jewell) — 2019

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