Brincadeira Sangrenta
Recentemente, escrevi um texto mapeando o desenvolvimento da poética do slasher, assim como tentei descrever alguns de seus efeitos estilísticos que me parecem mais poderosos. Discuti, em determinado ponto, uma possibilidade de uma nova onda do cinema slasher. No qual a construção da tensão era menos relevante que o susto e a perseguição, assim como a violência crescente torna-se menos grotesca, e talvez até mesmo mais cômica. Isto não quer dizer que estes filmes não possuam esquemas de organização da tensão, mas os produzem de uma maneira menos proveitosa do que outrora.
O novo filme do Eli Roth, conhecido por estar sempre a brincar com o horror, acaba por dar vida a uma ideia própria antiga. Ele retoma alguns elementos do seu curta homônimo, realizado para o projeto do Grindhouse de Quentin Tarantino. Assim como retoma a tradição de alguns slashers de dias festivos, neste caso com um feriado demasiadamente americano, o dia de Ação de Graças.
Eu não sou um connaisseur da obra de Eli Roth, mas do pouco que pude perceber existe um certo satirismo em sua obra que incide sobre alguns tipos que parecem irretocáveis. Então, desde Hostel (2005) temos o jovem em busca de sua liberdade, ou ainda o pai perfeito, o cool guy reprimido de Knock Knock (2015). Então, podemos dizer que ao menos a escolha do dia de Ação de Graças parece ser bem justificada. (Não almejo aqui um forte argumento de elemento autorista, mas é apenas uma ideia de ligação)
O feriado familiar como o melhor véu para esconder uma série de segredos. Em alguns detalhes anedóticos isso fica mais proeminente, como o caso de traição, os problemas da ganância familiar, ou ainda a verdadeira origem dessa tradição na aula de história. Mas Roth preparou toda a sequência inicial para nos entregar o horror da data. A catastrófe que acontece na Black Friday torna-se o trauma ideal para o início de um slasher.
Como de praxe, o trabalho de horror vem acompanhado de um trabalho de humor em seu filme, mas isso nunca o impede de nos fazer sentir tensão, agonia ou desespero. Por essa questão que este filme parece obter, ao menos aos meus olhos, um destaque no mar de novidades batidas do gênero slasher. Não há nada propriamente novo aqui, nenhum cheap trick, nenhum conceito nostálgico de nossos dramas passados. Vejamos duas cenas de construção de tensão que o Eli Roth realiza, que parece estar em total falta em filmes mais recentes. São estas cenas antes da perseguição que dão o sabor ao longa.
Começamos com o primeiro assassinato. O espaço cênico já estava definido por uma cena anterior, então Roth apenas faz uso das caractéristicas do espaço para construir a tensão.
Aqui é basicamente um plano e contraplano bem simples. No primeiro plano, o mais aberto temos duas portas ao fundo, com janelas e a presença do assassino já incide com o contraplano da máscara. Ao vestir a máscara, ao fundo, o rosto do assassino surge. Essa concretização de sua presença, sem um susto, cria a contaminação dos movimentos da câmera e dos gestos da personagem. Para não precisar recortar a sequência toda resumo a ideia cênica aqui como um pequeno jogo infantil do “agora você vê, agora você não vê”, a mesma dos truques de mágica. Os objetos de cena somem, mudam de lugar durante todo filme, para nos dar a certeza de que o perseguidor esta à espreita.
Noutra cena, mais interessante, ainda temos nossa final girl à espera de seus amigos numa escola esvaziada. Toda a condução até o início de uma perseguição é parcimoniosa.
O que é notório é que Roth entendeu que grande parte da tensão se constrói por essa contaminação. Quando nossa final girl caminha em busca de seus amigos, já sabemos que o assassino está na escola, mas não é apenas por termos esse conhecimento efeitivo, essa dado cognitivo, que operamos apenas o susto em sequência. Não é sobre saber ou não saber se há um assassino no espaço, mas sempre de onde ele virá? Que sombra permitirá sua aparição? Então, de plano em plano somos conduzidos pelo espaço da escola, sempre permitindo sombras, espaços abertos, espaços profundos, sensação de aprisionamento, para a cartada final.
Como comentei não é que não exista contrução de tensão nessa nova onda de slasher, mas me parece que os pequenos momentos antes do trovão tem que nos engolir antes de nos aterrorizar com suas perseguições. Um exemplo aqui é o filme Happy death day (2017), talvez o mais popular destes novos high concept slashers. É certo que o filme não possui muitas cenas de tensão, afinal, o dispositivo do dia repetitivo tem por consequência aumentar o pastiche. Assim, apesar das criativas formas de assassinato, perdemos o medo da morte rapidamente, a perseguição não nos parece tão desesperadora. Este é o ponto do filme, ele busca isso, resta saber se ainda consegue encantar. Seu único momento de construção de tensão talvez seja o primeiro assassinato.
O diretor Christopher B. Landon não parece interessado nas possibilidades de tensão de um túnel, o espaço é capturado sem ser propriamente explorado, a aparição do assassino ocorre de maneira rápida, e sua reaparição não possui qualquer poder. Ele apenas corre para lateral e reaparece pulando para o outro lado do túnel.
Curiosamente, o filme de Roth consegue criar uma aura para seu assassino, mesmo o mantendo firmemente no mundo da verossimilhança. Enquanto aqui, mesmo tendo uma narrativa que abre espaço para a fantasia, as aparições e sumiços são realizadas sem nenhuma magia. Podemos dizer que ao menos elas vão se tornando mais cômicas, mas a perseguição torna-se menos intensa e até mesmo menos divertida sem o seu prêambulo.
É essa atenção ao que está no quadro que parece em falta. Um corredor de escola carrega maior tensão que um túnel numa madrugada. Além disso, é sobre o ritmo preciso para alavancar uma perseguição, a parcimônia, alongar os passos, criar desvios, permitir o desconhecido. É claro que Thanksgiving (2023) é também um filme com bastante humor, o escárnio do jantar em família é prova disso, e também demasiadamente violento como os filmes de Roth costumam ser. Mas em nenhum momento perde-se o essencial.