Mas o que é eurocentrismo?
O eurocentrismo, como projeto, deixou rastros históricos. É a própria criação do centro e do periférico, em todos os âmbitos possíveis. Por isso, ainda é um dos maiores obstáculos que temos na forma de compreensão do mundo. Em grande parte porque ele nos parece como algo natural, algo dado. Assim como consideramos nossa forma de civilização a única possível, e todas outras são consideradas inferiores ou regressivas.
Mas isto é algo que tem sido combatido há séculos, desde as primeiras lutas anticoloniais. Gostaria com esse texto apenas precisar melhor o que é o eurocentrismo. Afinal, seria tudo que vem da Europa? Seria toda e qualquer teoria moderna? A estratégia ideal para atravessar o eurocentrismo é o retorno aos saberes dos povos originários?
1. Um pequeno esquema da história da Europa
Enrique Dussel busca demonstrar o que é e como surge o eurocentrismo de forma histórica. Para isso, é preciso perguntar quando é que houve Europa. Prontamente não se pode confundir a Grécia Antiga com a Europa ou ainda com o Ocidente, pois como bem se sabe a formação do povo grego se dá a partir de influências egípcias, orientais e dos povos do norte Macedônia (os bárbaros).
Além disso, a própria noção de “ocidental” só surge com o Império Romano Latino, que compreendia toda uma região da atual Europa, mais o Norte da África. É digno de nota que o Império Macedônio, que continha a Grécia e a Ásia, era considerado o povo oriental.
Para Dussel, acerca do histórico em relação ao uso da filosofia grega, também é importante fazer uma separação entre a Grécia e o que se considera a Europa “definitiva”. Afinal, Aristóteles só foi lido como filósofo pela as tradições católicas muito posteriormente, no século XII. Enquanto os povos mulçumanos já eram extremamente influenciados pelos pensamentos gregos, isto se dá também pelo fato do Império da Macedônia se estender até o Oriente Médio.
Este império católico, derivado do Império Romano, era uma cultura periférica, visto que não possuía a comunicação com o Oriente e seus outros Impérios (China, Índia, Mongólia). As cruzadas são a primeira tentativa de fazer tal investida. Só houve um Império que de fato pode ter sido considerado como central na região euro-asiática, este foi o Império Helenístico.
Vale lembrar que houve uma grande cisão do Império Romano, com sua divisão em Ocidente e Oriente, no qual o Império Bizantino foi aquele que reteve a maior parte das influências gregas. Para demonstrar um pouco melhor esse grande esquema de influências culturais e transformações dos povos e território, Dussel elaborou um esquema.
Percebe-se que a influência grega passa por diversos territórios não considerados “europeus” até chegar à Europa Moderna. Quando de fato está chega é a partir de uma linhagem completamente cristã. Contudo, o mais importante deste esquema é demonstrar a complexidade da formação de um território e que seu sentido é em grande parte realizado em contingência.
O discurso que liga em linha direta e uniforme a Grécia à Europa Moderna só surge de fato no romantismo alemão, inspirando pela intensa efervescência que o Renascimento Italiano realizou das tradições gregas e romanas.
“(…) no Renascimento italiano (especialmente após a queda de Constantinopla em 1453) começa uma fusão que representa uma novidade; o Ocidental latino une-se ao grego Oriental, e enfrenta o mundo turco, o que, esquecendo-se da origem helenístico-bizantina do mundo muçulmano, permite a seguinte falsa equação: Ocidental = Helenístico + Romano + Cristão. Nasce assim a “ideologia” eurocêntrica do romantismo alemão (…).” (p. 25, 2005)
Esse esquema falso é apresentado desta forma por Dussel:
O grande problema desse esquema e o motivo de Dussel o chamar de “ideológico” é simplesmente porque rapta a cultura grega como puramente ocidental, ou seja, cria uma pureza histórica desse pensamento, assim como coloca a Europa como centro da história mundial, quando no fundo, não havia tal história mundial até o início das grandes Navegações.
Agora, já que é possível pensar na Europa, deve-se notar que a Modernidade aparece aí como o ponto culminante dessa construção eurocêntrica. Há duas definições da Modernidade apresentadas pelos esquemas:
1. “O primeiro deles é eurocêntrico, provinciano, regional. A modernidade é uma emancipação, uma “saída” da imaturidade por um esforço da razão como processo crítico, que proporciona à humanidade um novo desenvolvimento do ser humano. Este processo ocorreria na Europa, essencialmente no século XVIII. ” (p. 27, 2005). Nessa Modernidade, ela se dá início com Galileu, Bacon e Descartes, apenas a partir do século XVII.
2. O segundo sentido de Modernidade seria mundial, que se dá com as grandes Navegações. É só com as Descobertas da América que podemos falar de uma História Mundial. A Modernidade só pode ser pensada levando em conta a colonização, não é um processo intrínseco do saber europeu, mas um processo de exploração.
Deste modo, “o eurocentrismo da Modernidade é exatamente a confusão entre universalidade abstrata com a mundialidade concreta hegemonizada pela Europa como Centro. ” (p. 28, 2005). Esta definição nos demonstra que o eurocentrismo é uma espécie de racionalidade que articula a Europa como centro, como mundo primordial, como a própria estrutura de tudo que há.
Contra essa visão de modernidade eurocêntrica, Dussel não irá produzir uma “anti-modernidade”, não se trata de buscar sua negação. Par ele, é necessária uma trans-modernidade. É preciso atravessar a modernidade, é preciso negar o seu mito civilizatório e sua inocência.
2. A operação do universal do Eurocentrismo
Essa crítica aos valores e preceitos universais que são propriamente modernos faz com que diversos autores hoje tenham o que Santiago Castro-Gómez chama de “pensamentos abissais”. É um retorno às origens, uma busca em outros saberes como prática puramente de negação da modernidade. Essa estratégia para ao autor é incoerente, pois acredita na mesma pureza das identidades que o eurocentrismo se baseia.
Ele argumenta que não existe identidades essenciais. “(…) dizer que as identidades sociais não são essenciais, é dizer, que não se constituem só consigo mesmas, com sua própria tradição cultural, e nem tampouco remetem a uma origem, a um espaço ancestral ‘próprio’ que oferecia, sempre e sem relação com a exterioridade, os significados do que um grupo é. ” (p. 66, 2019)
É preciso entender, portanto, as identidades culturais como cristalizações de relações de poder, historicamente formadas, e que não possuem uma essência atemporal; essa costuma ser a principal estratégia do eurocentrismo fazer passar sua exploração como algo natural.
“A fórmula é simples: ali onde há essencialismo, não há política. ” (p. 68, 2019)
Gómez ressalta que essa posição nos coloca diante de uma falsa escolha entre particularismo e o universalismo, mas “o problema que está em jogo não é eleger entre o universal e o particular, mas sim compreender o tipo de relação que se dá entre estes polos. (…) o que hoje chamamos de eurocentrismo não é mais que uma forma específica de agenciar a relação entre universalidade e particularismo que se procede no Iluminismo. ” (p. 73, 2019)
Para fazer uma breve história dessas relações, ele se baseia em Ernesto Laclau que, em seu livro Emancipação e Diferença (2011), divide três momentos precisos da configuração destas relações:
- Filosofia Grega, onde a relação entre universalidade e particularidade é de pura exclusão.
“ (…) que há uma linha divisória incontaminada entre o universal e o particular; e (b) que o polo do universal é inteiramente compreensível pela razão. Nesse caso, não há qualquer mediação possível entre universalidade e particularidade: o particular só pode corromper o universal.”(p. 48, 2011).
2. Cristianismo, em que a relação só pode ser feita por uma articulação divina, através do processo de encarnação.
“O ponto de vista da totalidade existe, mas pertence a Deus, não a nós, de modo que não é acessível à razão humana. (…). Assim, o universal é um mero evento numa sequência escatológica, apenas acessível a nós por meio da revelação (…). Esse tipo de relação foi chamado encarnação, cuja característica distintiva é a seguinte: entre o universal e o corpo que o encarna, não há qualquer vínculo racional. Deus é o único e absoluto mediador ” (pp.48- 49, 2011).
3. Modernidade, substitui Deus pela razão, o que gera consequências paradoxais, visto que elimina a necessidade do processp de encarnação, mas cria uma espécie de essencialismo.
“Deus, a origem absoluta de tudo que existe, foi substituído em sua função de fiador universal da Razão; só que um fundamento e origem racionais têm lógica própria, o que é muito diferente da de uma intervenção divina — a principal diferença é que os efeitos de uma fundamentação racional têm de ser inteiramente transparentes à razão humana. Ora, esse requisito é totalmente incompatível com a lógica da encarnação; se tudo tem de ser transparente à razão, o vínculo entre o universal e o corpo que o encarna também tem de sê-lo; e, nesse caso, a incomensurabilidade entre um universal a ser encarnado e o corpo que o encarna tem de ser eliminada. Precisamos postular um corpo que é em e por si o universal. ” (p 49, 2011).
Essa busca por um novo mediador e um novo processo, diferente da encarnação, é o que gerou em todas as suas facetas o eurocentrismo. “O universal havia encontrado seu próprio corpo, mas este ainda era o corpo de uma particularidade — a cultura europeia do século XIX. Assim, a cultura europeia era particular e ao mesmo tempo a expressão — não mais a encarnação — da essência humana universal (…). O ponto crucial aqui é que não havia quaisquer meios intelectuais de distinguir entre o particularismo europeu e as funções universais que ele deveria encarnar, uma vez que o universalismo europeu havia construído sua identidade precisamente pelo cancelamento da lógica da encarnação e, como resultado, da universalização de seu próprio particularismo. ” (p 50, 2011)
Como bem pudemos observar com Dussel, a construção moderna de Europa e sua leitura da relação entre o universal e o particular que constrói essa operação chamada eurocentrismo. Que ao mesmo tempo que nega as diferenças, também afirma sua própria diferença de maneira paradoxal, sua própria diferença entendida como um privilégio.
Como bem define Gómez:
“A Europa se apresenta como agente universal, sob a convicção que sua cultura expressa princípios incondicionais que derivam em privilégios epistêmicos e ontológicos. O universal não é resultado da ação contingente de forças antagônicas, senão a expressão transcendental de privilégios encarnados em atores específicos, com o qual permanece claro que o problema do eurocentrismo não é a universalidade como tal, mas sim sua concepção universalista do jogo entre universal e particular. ” (p. 75, 2019)
3. Como o eurocentrismo é aplicado?
Wallertsein traz, em seu livro O Universalismo Europeu (2007), três avatares do eurocentrismo.
O autor parte de certos paradigmas para explorar tais avatares. O primeiro deles é “O direito de intervir”, que nada mais é que a crença de valores universais contra os “bárbaros”, exemplificado pelo debate de Sepúlveda e Las Casas. Este debate girou em torno da problemática do extermínio indígena, na Espanha, durante a colonização.
Sintetizando o debate, há quatro argumentos principais, dos quais Las Casas refuta o seu adversário com certa sofisticação.
Esse debate, apesar de parecer antiquado, permanece vivo até hoje, de diferentes formas.
O segundo exemplo paradigmático é o que vai ser chamado de orientalismo, algo que foi bem documentado e estudado por Edward Said. Os orientalistas europeus eram estudiosos do século XIX que acreditavam que só a civilização com suas raízes greco-romanas pôde chegar à modernidade de forma intrínseca.
É realizada uma equação essencial Grécia = Europa = Modernidade. Os povos orientais eram considerados atrasados, pois não puderam produzir a modernidade. Existia, portanto, uma crença de que a Europa poderia levar a modernização a estes lugares.
É notório que todos os sistemas históricos acreditam serem universais, o que gera um certo incômodo em como desviar-se desse problema, pois como não ser orientalista, então? Como não reificar as diferenças? Como não essencializar? Wallerstein coloca a proposta:
“Ser não orientalista significa aceitar a tensão contínua entre a necessidade de universalizar nossa percepção, análise e declarações de valor e a necessidade de defender as raízes particularistas destas contra a invasão da percepção, análise e declarações de valor particularistas de outros que afirmam propor valores universais. É preciso que universalizemos nossos valores particulares e, ao mesmo tempo, que particularizemos nossos valores universais, num tipo de troca dialética constante que nos permita encontrar novas sínteses que, naturalmente, são instantaneamente questionadas. Não é um jogo fácil. ” (pp. 83–84, 2007)
Junto com Said, ele assume que o processo é a crítica e nunca a essência, a substância.
Por fim, o último avatar é o universalismo científico, que em grande parte é a crença que há produção científica fora do meio social, e apenas esta é universal e científica de fato. O seu exemplo paradigmático são as transformações sociais da universidade a partir da modernidade.
Wallerstein revela a virada, no século XIX, na especialização das disciplinas e a função social das universidades sendo desenvolvidas ao lado dos governos como dispositivos técnicos. Do mesmo modo, uma divisão é feita dentro do campo epistemológico, de um lado as Humanidades, do outro a Ciência.
As humanidades apresentam seu universalismo sob a face do orientalismo, buscando a essência do homem em certos valores universais que são possíveis de se compreender por uma sabedoria empática. Já a dita Ciência aqui acredita que a verdade só pode ser encontrada por meio empírico, do qual se retiram as leis gerais dos fenômenos reais.
Wallerstein coloca as ciências sociais num campo ambíguo, pois fica presa entre as duas “culturas”, como ele prefere chamar. Ele acredita que após 1945, dois movimentos no interior de cada uma das culturas produziu uma poderosa mudança nas concepções epistemológicas. Nas ciências, a teoria da complexidade, no qual não se deve mais reduzir o complexo ao simples, mas buscar entender camadas cada vez mais complexas; nas humanidades, os estudos culturais que passaram a historizar os ditos valores universais, assim como quebrar com os essencialismos.
É notório que o autor se posiciona junto com os outros três, dentro do campo da ciência, na própria transmodernidade, sugerida por Dussel. Todos os autores citados não advogam por um particularismo, mas sim por um tensionamento crítico para fugir das generalizações essencialistas. É assim, que Wallerstein vai definir o “universalismo universal”:
“(…) o universalismo universal, que recusa as caracterizações essencialistas da realidade social, historiza tanto o universal quanto o particular, reunifica os lados ditos científicos e humanístico em uma epistemologia e permite-nos ver com olhos extremamente clínicos e bastante céticos todas as justificativas de ‘intervenção’ dos poderosos contra os fracos” (p. 118, 2007)
Conclusão
A partir do que foi discutido, o eurocentrismo acaba por ser uma forma de ideologia, que se espalha por diversas práticas, sejam elas científicas ou não, produzindo uma compreensão específica acerca da relação entre universal e particular, em que certo particularismo é ressaltado, ou melhor, centralizado, ao ponto de se tornar uma entidade abstrata e condicionar tudo a partir dela.
Se no concreto suas consequências foram a própria colonização, suas justificativas surgiam no campo das ideias com uma fomentação da naturalização de processos históricos, tanto como “biológicos” ou “metafísicos”. É exatamente deste contexto que surge o conceito de raça, tão importante para se pensar a realidade hoje.
Albert Memmi expõe muito bem a relação realizada com o racismo:
“1. Descobrir e pôr em evidência as diferenças entre colonizador e colonizado.
2. Valorizar essas diferenças em benefício do colonizador e em detrimento do colonizado.
3. Levas essas diferenças ao absoluto afirmando que são definitivas e agindo para quem passem a sê-lo.” (p. 108, 2007)
É propriamente um constructo possibilitado pelo eurocentrismo, um obstáculo que precisamos lidar criticamente. Sendo importante perceber que o problema não é a Europa em si, mas sim essa operação que pode ser realizada em qualquer continente ou etnia, afinal hoje quem assume este espírito imperial é os Estados Unidos.
Referências (ordem de aparição)
Dussel, E. (2005). Europa, Modernidade e Eurocentrismo. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais Perspectivas latino-americanas.
Castro-Gómez, S. (2019). Qué hacer con los universalismos occidentales. In: El Tontos y Los Canallas, notas para un republicanismo trasnmoderno
Laclau, E. (2011). Universalismo, Particularismo e a questão da Identidade. In: Emancipação e Diferença.
Wallerstein, I. (2007). O Universalismo Europeu, a retórica do poder.
Memmi, A. (2007). Retrato do Colonizado precedido de Retrato do Colonizar.