Algumas voltas no carrossel
Marco Uzal e Fernando Ganzo, na nova edição da Cahiers du Cinema nº 790, anunciam o parentesco da última sequência do novo filme de Peele com o Hatari (1962) de Hawks, pela camaradagem, por transformar o mundo em uma arena. Todavia, se é certo que é na linhagem do aventuresco que esse filme se dá, me parece que ele está muito mais pro lado do Spielberg, do que de Hawks, e isto não significa um demérito, apenas aponta uma diferença acerca do quê e como Nope faz o que faz.
Quais ideias guiam o filme? São muitas, e acredito que algumas estejam demasiadamente espalhadas e se tornem até infrutiféras, mas foquemos no fio que me pus a pensar. Primeiro, há Haywood. O homem que foi esquecido, o homem que colocou um cavalo pronto para ser filmado para as câmeras do espetáculo de Hollywood. De certo, dessa imagem derivam-se alguns caminhos. Quando não se sabe como domar a criatura para ser filmada, ela perde o controle e todos se tornam presas. É essa a história, quase anedótica, do macaco no programa de TV.
OJ vai insistentemente dizer que o problema de Jupe foi ter acreditado que poderia domar uma besta com acordos — lembrem-se do gesto com o macaco, e a repetição de seu olhar perdido quando a criatura não segue o esperado. Nesse sentido, aqueles que só têm um universo fabricado de Hollywood, dessa parafernalha circense, como o próprio parque de Jupe, não podem entender o que é domar uma fera.
É a partir daí que o domador de cavalo esquecido pode retornar, como o verdadeiro agenciador de um cinema. Mesmo com a interferência do megalomaníaco diretor, que com sua câmera analógica parte em direção à criatura, temos grande parte das capturas realizadas com câmeras digitais pelo displicente jovem, que nos remete a todos os excessos contemporâneos. Temos o cavalo, a criatura primordial aqui, que se torna uma moto com Emerald; somos guiados dos planos à cavalo ao plano da moto, de uma relação entre irmãos.
Poderíamos falar que Peele sugere o surgimento de um novo cinema, em sua contemporaneidade, câmeras digitais, equipamentos variados; mas não é bem isso. Se a foto só pode ser tirada no interior do Parque de Jupe é pelo fato de Hollywood ser ainda, em sua estrutura, uma máquina de fantasia que possibilitaria essa imagem existir.
Se isso funciona de maneira poderosa conceitualmente, há algo que não evolui no plano dramático. E é por isso que parece tão difícil lhe colocar numa linhagem como a de Hawks, este que na relação entre os personagens, entre cada espaço vazio, existe a captação do ruído de quando duas pessoas respiram o mesmo ar. Nesse sentido, a relação de Emerald e OJ não tem fricção, e do mesmo modo as outras relações são demasiadas caricatas para serem cruciais (até como caricaturas parecem pouco encantadas).
Um exemplo de Hawks é Rio Bravo. O destino de todos está unido e nos interessa, amplia-se o elemento ruidoso que há entre os personagens. Para quando no fim, na grande sequência do tiroteio, onde é preciso se deparar com os tiros e com a chegada dos “vilões”, exista uma alegria contagiante, compartilhada por estes personagens.
Não é a mesma alegria que temos em Nope, o que parece de fato é uma alegria próxima aos filmes de Spielberg; uma alegria que não deriva dos ruídos produzidos por estes personagens durante o filme, mas sim produzida pelas maquinações de seus sofisticados parques de diversão. Não há nada de errado com parques de diversão, é certo que Spielberg os entende muito bem, muito melhor que qualquer CEO da Disney.
Hawks, no interior da máquina Hollywoodiana produzia filmes daqueles que domam cavalos, isto significa em diversos sentidos que ele entendia da etologia, não de cavalos, mas do ator. É por isso que no plano dramático e na ventura alegre dos grandes embates há uma fricção que nos conduz.
Já Spielberg produz filmes como quem conhece as roldanas das máquinas de um carrossel, sabe como fazer um brinquedo se tornar uma aventura instigante, pensemos claro em Tubarão (1979), mas principalmente em Encontros Imediatos de Terceiro Grau (1980) — visto a ligação e até mesmo visão das nuvens a brilhar, do terror vindo do alto — , e pelo visto Peele está a buscar um pouco dos dois, mas é certo que talvez precise de alguns anos no hipódromo.